segunda-feira, 27 de junho de 2011

Questão: matérias de ordem pública em sede de recurso extraordinário

Giselle Borges Alves
27.06.2011


É possível suscitar matérias de ordem pública em sede de recurso extraordinário, ainda que o tema não tenha sido ventilado em instâncias inferiores, nem mesmo tenha sido objeto deste recurso excepcional?

A questão proposta é controvertida tanto na doutrina como na jurisprudência pátria. Os extremos vão desde a negativa total do conhecimento da matéria de ordem pública em virtude da ausência do requisito de prequestionamento, até a admissão da matéria não suscitada por medida de economia e efetividade processual independentemente da existência de outro requisito de admissibilidade.

Segundo o professor Humberto Theodoro Júnior, a arguição de relevância como mecanismo de filtragem do recurso extraordinário, advento da reforma proposta pela EC nº 45/2004, tem como objetivo controlar e reduzir o volume de recursos perante o STF que vinha comprometendo o desempenho desta Corte Constitucional.[1] Desta forma, a normatização constante dos artigos 543-A, 543-B do CPC e art. 102, §3º da CF/88 apresenta requisitos de admissibilidade para apreciação e julgamento do recurso extraordinário.

O que parece ter sido o intuito do legislador é deixar claro através deste dispositivo que o STF não irá mais exercer jurisdição sobre causas envolvendo simplesmente interesses individuais. Com o novo dispositivo, o Supremo deverá restringir seu julgamento àquelas causas que tenham o condão de produzir efeitos em uma série de outros processos cuja relação jurídica seja a mesma, uma vez que a relevância deverá ultrapassar os limites subjetivos da causa. Isto nada mais significa que a decisão poderá produzir efeitos em relação a quem não participa da relação processual. (SILVA, 2007).
Mas ao tratar de questões de ordem pública, ou seja, quando há supremacia do interesse público e não-incidência da preclusão, segundo Edward Carlyle Silva, ocorre o que a doutrina denominada de efeito translativo, comum nos recursos ordinários, mas que ainda suscita controvérsia nos recursos excepcionais. Pelo efeito translativo, determinadas questões chegam ao conhecimento do Tribunal mesmo sem alegação pelos sujeitos da relação processual. É exatamente este efeito que ocorre com relação às questões de ordem pública, uma vez que elas podem ser examinadas independentemente de menção anterior pela parte, por força do princípio inquisitório, contrariando o princípio da voluntariedade recursal.[2]

No âmbito do recurso extraordinário, por razão da existência do prequestionamento e da transcendência da matéria para que seja admitido o julgamento pelo STF, haja vista que a repercussão geral impõe que objetivamente as questões suscitadas tenham relevância do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico[3] e que, sobretudo, ecoem para fora do processo[4], o efeito translativo deste recurso mesmo quando envolva questão de ordem pública causa polêmica na doutrina e jurisprudência pátria.

O professor Humberto Theodoro Júnior é enfático ao declarar que o recurso extraordinário possui apenas um efeito, o devolutivo e por força de lei:

A interposição e recebimento do recurso extraordinário gera efeitos de natureza apenas devolutiva, limitados à questão federal controvertida. Não fica a Suprema Corte investida de cognição quanto à matéria de fato, nem quanto a outras questões de direito não abrangidas pela impugnação do recorrente e pelos limites fixados pela Constituição para o âmbito do recurso.[5]
A posição deste doutrinador é a exclamada pela maioria da doutrina jurídica pátria[6], uma vez que por ser o recurso extraordinário uma espécie recursal excepcional, com regras expressamente delimitadas pela Constituição Federal, o prequestionamento é requisito indispensável, diante da “finalidade eminentemente política” nele contida, ou seja, “tutelar a integridade da lei magna federal”.[7]

Edward Carlyle Silva[8] discorda do posicionamento majoritário acima delineado quanto à inadmissibilidade do efeito translativo nos recursos excepcionais e afirma:

Mas isto não significa que apesar de ter sido interposto por um motivo, os Tribunais Superiores estejam proibidos de examinar os demais fundamentos porventura existentes. Por outras palavras. Se algum desses recursos (especial ou extraordinário) é interposto com base em alguma das causas de pedir anteriormente suscitadas e discutidas no processo e é admitido, quando do exame de seu mérito ocorrerá a ampla devolução de todas as questões que tenham sido suscitadas e discutidas anteriormente, independentemente do recorrente tê-las ou não alegado naqueles recursos.

Ao conhecer e passar ao julgamento do mérito do recurso, o Colendo STF ou o Egrégio STJ podem conhecer de ofício ou por provocação, de todas as matérias que podem ser alegadas a qualquer tempo (matérias de ordem pública) bem como daquelas que tenham sido suscitadas e discutidas anteriormente, mesmo que o Tribunal não as tenha julgado por inteiro (art. 515, §§ 1º e 2º do CPC). Na feliz expressão de Fredie Didier Júnior e Leonardo José Carneiro da Cunha, admitido o recurso pelo fundamento alegado pelo recorrente, “... a jurisdição do tribunal superior é aberta”, podendo o Tribunal passar ao exame das questões de ordem pública, bem como daquelas que tenham sido suscitadas e discutidas anteriormente.
Diante de tais considerações é forçoso ressaltar que por força do caráter publicista do direito processual moderno, com primado no processo célere, efetivo e, por conseqüência, justo é necessário desmistificar posicionamentos extremos quanto ao tema.

O recurso extraordinário contém, por força de lei, matéria vinculativa e requisitos específicos, mas é também inegável que se houver questão de ordem pública (tal como a prescrição, por ser o exemplo mais corriqueiro em nossos Tribunais) e tendo conhecimento da questão, os eméritos julgadores não podem simplesmente negar a análise por ausência de prequestionamento. Por ser de conhecimento compulsório, a questão de ordem pública deve ser conhecida em qualquer instância ou tribunal. Mas não há aqui uma posição extremada, ao contrário. Sendo o recurso extraordinário de fundamentação vinculada, a questão de ordem pública só poderá ser conhecida pelo STF caso o recurso tenha passado com êxito pelo crivo do exame de admissibilidade por verificação de outro requisito. A fundamentação apenas na questão de ordem pública sem atender aos outros critérios objetivos de admissibilidade deve ser rejeitada, sob pena do STF perder o caráter de Corte constitucional. Vislumbra-se aqui uma posição intermediária para a busca da verdadeira justiça no caso concreto.

O rigorismo processual pode chegar a digressões insanáveis, que mesmo manejando a ação rescisória do julgado podem gerar o sentimento de insatisfação no jurisdicionado, uma vez que este não consegue vislumbrar a economia processual tão amplamente perquirida na atual fase do direito processual moderno, perpetuando um litígio que poderia ter sido resolvido nos autos principais.


Notas:
[1]THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 724-725.
[2]Neste sentido Edward Carlyle Silva (2007, p. 339), que cita os doutrinadores Nelson Nery Júnior e Luiz Guilherme Marinoni quanto à distinção dos efeitos devolutivo e translativo, identificando os princípios da voluntariedade e o princípio inquisitório recursal. Pelo primeiro a parte é quem decide se quer recorrer e qual o pedido que formulará em âmbito recursal; pelo segundo o juiz é instado a agir de ofício por força de lei ou pela manutenção dos interesses da coletividade que transcendem a causa.
[3]Disposição explícita do artigo 543-A §1º do CPC.

[4]THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 725.
[5]THEODORO JÚNIOR, 2009, p. 727.
[6]De acordo com Carlyle Silva (p. 440) são partidários desta posição Eduardo Arruda Alvim e Nelson Nery Júnior. Em sentido contrário estão Rodolfo de Camargo Mancuso, Fredie Didier Júnior e Leonardo José Carneiro da Cunha.

[7]Neste sentido Humberto Theodoro Júnior, p. 727.

[8]Carlyle Silva, p. 440.

Referências:
BRASIL. Código de Processo Civil (1973). Vade Mecum Compacto. Antônio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes (Colaboração). 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

SILVA, Edward Carlyle. Direito processual civil. Niterói, RJ: Impetus, 2007.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

Texto elaborado para a Disciplina de Processo Civil nos Tribunais Superiores do curso de pósgraduação em Direito Processual Civil, Rede de Ensino Luís Flávio Gomes em parceria com a Universidade Anhanguera Uniderp - Campo Grande/MS e Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Turma 10. Ano 2010/2011.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Direito e Cooperativismo: STJ decide que Cooperativa não pode acionar em nome próprio direito de cooperados

As cooperativas não têm o poder de substituir seus cooperados em processos judiciais do interesse destes. Para a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o caráter da cooperativa, de sociedade simples, não lhe dá direitos similares aos de associações ou sindicatos.

Para o ministro Luis Felipe Salomão, a “regra de ouro” da legitimidade para ingressar com ações judiciais é a de que o indivíduo não pode ser exposto a situação da qual não quer tomar parte, já que sofrerá as consequências da sentença. É o que prevê o Código de Processo Civil: “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei” (artigo 6º).

A Cooperativa de Arroz de São Lourenço do Sul (RS) alega que tal poder era conferido pelo artigo 83 da Lei n. 5.764/71, que dispõe: “A entrega da produção do associado à sua cooperativa significa a outorga a esta de plenos poderes para a sua livre disposição, inclusive para gravá-la e dá-la em garantia de operações de crédito realizadas pela sociedade, salvo se, tendo em vista os usos e costumes relativos à comercialização de determinados produtos, sendo de interesse do produtor, os estatutos dispuserem de outro modo.”

Por isso, a cooperativa entende ter direito a agir como substituta processual de seus cooperados em ações que envolvem a comercialização dos produtos estocados em seus armazéns. Ela ingressou com ação na Justiça para discutir se os produtos comercializados pelo programa de preços mínimos do governo federal recebiam remuneração adequada ou se, por excluírem dos cálculos taxas de juros e custos de produção, os pagamentos acabavam por ficar abaixo do mínimo legal.

Conforme o voto do relator, a Lei n. 5.764/71, em seu artigo 4º, enquadra as cooperativas como sociedades de pessoas, tendo por característica a prestação de assistência aos associados. Assim, ponderou o ministro, “é possível que a cooperativa propicie a prestação de assistência jurídica aos seus cooperados – providência que em nada extrapola os objetivos das sociedades cooperativas”. Mas isso não significa que possa ajuizar ações coletivas, esclareceu.

Quanto ao artigo 83 da lei, o ministro Luis Felipe Salomão concluiu que nem mesmo em interpretação sistemática da lei seria permitido concluir que há autorização para a substituição processual pretendida pela cooperativa.


Fonte: STJ
Notícia refere-se ao seguinte processo: REsp 901782
Data da publicação: 22.06.2011

Decisão STJ - Imóvel não substitui depósito em dinheiro na execução provisória por quantia certa

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