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terça-feira, 23 de julho de 2013

Entrevista com Raúl Eugenio Zaffaroni: "Cada país tem o número de presos que decide politicamente ter"


Entrevista realizada por Viviane Tavares, publicada originalmente no site Última Instância (link), Zaffaroni aborda o combate/descriminalização das drogas, a redução de maioridade penal e a responsabilidade do Estado no que tange às políticas de encarceramento.
Vale a leitura!

"Cada país tem o número de presos que decide politicamente ter", diz ministro do Supremo argentino

O ministro da Suprema Corte Argentina e professor titular e diretor do Departamento de Direito Penal e Criminologia na Universidade de Buenos Aires, Raúl Eugenio Zaffaroni, fala em entrevista à Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz sobre o direito penal na América Latina e como ele vem sendo usado para fazer uma "limpeza social".

Segundo Zaffaroni, a demanda da redução da maioridade penal e o combate às drogas seguem esta mesma linha de criminalização e exclusão do pobre.

Vivane Tavares/Fiocruz: Por que o sr. defende a necessidade de uma identidade latina no direito penal?

Raúl Zafforoni: Nossos países estão vivendo um crescimento da legislação repressiva, porém, deveríamos caminhar para fortalecer a solidariedade pluriclassista em nosso continente. Não podemos seguir os modelos europeus e, muito menos, o norte-americano, em que a política criminal é marcada por uma agenda midiática que provoca emergências passageiras, resultando em leis desconexas que, passada a euforia midiática, continuam vigentes.

VT - No Brasil, estamos diante de um cenário em que a guerra contra as drogas mata mais do que a droga em si. Como o sr. analisa isso?

RZ - É um fenômeno mundial. Quantos anos demoraria para que o México alcançasse a cifra de 60 mil mortos por overdose de cocaína? No entanto, já alcançou, em cinco anos, como resultado da competição para ingressar no mercado consumidor dos EUA.

VT - Atualmente, a grande questão do sistema penal brasileiro é a redução da maioridade penal. Qual é a sua opinião sobre isso? O que deve ser levado em conta para se limitar essa idade?

RZ - A redução da maioridade penal é também uma demanda mundial que se relaciona à política de criminalização da pobreza. A intenção é pôr na prisão os filhos dos setores mais vulneráveis, enquanto os da classe média continuam protegidos. Embora haja alguns adolescentes assassinos, a grande maioria dos delitos que eles cometem são de pouquíssima relevância criminal. O Brasil tem um Estatuto [Estatuto da Criança e Adolescente] que é modelo para o mundo. Lamento muito que, por causa da campanha midiática, ele possa ser destruído.

VT - Na Argentina existe um modelo de responsabilidade penal para adolescentes de 16 anos. Como isso se dá?

RZ - Na Argentina, a responsabilização penal começa aos 16 anos, de maneira atenuada, e somente é plena a partir dos 18 anos. Não obstante, somos vítimas da mesma campanha, embora os menores de 16 anos homicidas na cidade de Buenos Aires, nos últimos dois anos, sejam apenas dois. A ditadura reduziu a idade de responsabilização para 14 anos e logo teve que subir de novo para 16, ante ao resultado catastrófico dessa reforma brutal, como tudo o que fizeram, claro. Ninguém pode exigir que um adolescente tenha a maturidade de um adulto. Sua inteligência está desenvolvida, mas seu aspecto emocional, não. O que você faria se um adolescente jogasse um giz em outra pessoa na escola? Em vez disso, o que você faria se eu jogasse um giz no diretor da faculdade de direito em uma reunião do conselho diretivo? Não se pode alterar a natureza das coisas, uma adolescente é uma coisa e um marmanjo de 40 anos, outra.

VT - Muitos especialistas consideram esse modelo atual de encarceramento dos jovens falido. Por que a sociedade continua clamando por isso? Qual seria a alternativa? 

RZ - Não creio que a sociedade exija coisa alguma. São os meios de comunicação que exigem, e a sociedade, da qual fazem parte os adolescentes, é vítima dos monopólios midiáticos que criam o pânico social. Melhorem a qualidade de vida das pessoas, eduquem, ofereçam possibilidades de estudo e trabalho, criem políticas públicas viáveis. Essa é a melhor forma de lidar com os jovens. O Brasil é um grande país, e tem um povo extraordinário, o que vocês fazem é muito importante para toda a região, não se esqueçam disso. E não caiam nas garras dos grupos econômicos que manipulam a opinião através da mídia. O povo brasileiro é por natureza solidário e de uma elevada espiritualidade, quase mística. Não podem se deixar levar por campanhas que só objetivam destruir a solidariedade e a própria consciência nacional.

VT - Como o sr. avalia o sistema de encarceramento? 

RZ - As prisões são sempre reprodutoras. São máquinas de fixação das condutas desviantes. Por isso devemos usá-las o menos possível. E, como muitas prisões latinoamericanas, além disso, estão superlotadas e com altíssimo índice de mortalidade, violência etc., são ainda mais reprodutoras. O preso, subjetivamente, se desvalora. É um milagre que quem egresse do sistema não reincida. Enquanto não podemos eliminar a prisão, é necessário usá-la com muita moderação. Cada país tem o número de presos que decide politicamente ter. Isso explica porque os EUA tenham o índice mais alto do mundo e o Canadá quase o mais baixo de todo o mundo. Não porque os canadenses soltem os homicidas e estupradores, mas porque o nível de criminalidade média é escolhido de forma política. Não há regra quando se trata de casos de delinquência mediana, a decisão a respeito é política, portanto, pode ser arbitrária ou não. Ademais, a maioria de nossos presos latino-americanos não estão condenados, são processados no curso da prisão preventiva. Como podemos discutir o tratamento, quando não sabemos se estamos diante de um culpado?

VT - Como podemos explicar este foco no tráfico de drogas como o principal mal da sociedade atual? Ele precisa ser combatido? 

RZ - A proibição de tóxicos chegou a um ponto que não sei se tem retorno sem criar um gravíssimo problema ao sistema financeiro mundial. A única solução é a legalização, porém não acho que seja possível. A queda acentuada do preço do serviço de distribuição provocaria uma perda de meio bilhão de dólares, no mínimo. Esta mais-valia totalmente artificial entra na espiral financeira mundial, através da lavagem de dinheiro, que o hemisfério norte monopoliza. Sem essa injeção anual, se produziria uma recessão mundial. Como se resolve isso? Sinceramente, não sei. Só sei que isso é resultado de uma política realmente criminal, no pior sentido da palavra.

VT - No Brasil estamos vivendo um fenômeno com o crack. Em estados como Rio de Janeiro e São Paulo, os usuários estão sendo encaminhados para uma internação compulsória, uma espécie de encarceramento para o tratamento. Como o sr. avalia isso? 

RZ - Não sei o que é esse crack, suponho que seja um tóxico da miséria, como o nosso conhecido "paco". O "paco" é uma mistura de venenos, vidro moído e um resíduo da cocaína. É um veneno difundido entre as crianças e adolescentes de bairros pobres, deteriora e mata em pouco tempo, provoca lesões cerebrais. Como se combate? Quem deve ser preso? Os meninos que são vítimas? Isso não pode ser vendido sem a conivência policial, como todos os outros tóxicos proibidos. Porém, nesse caso, é muito mais criminal a conivência. Seria preferível distribuir maconha. Isso é o resultado letal da proibição. Nós chegamos a isso, a matar meninos pobres.
 
VT - Existe alguma forma de combater a violência sem produção de mais violência por parte do Estado?

RZ - Na própria pergunta está a resposta. Se o Estado produz violência não faz mais que reproduzi-la. Cada conflito requer uma solução, temos de ver qual é a solução. Não existe o crime em abstrato, existem, sim, conflitos concretos, que podem ser solucionados pela via da reparação, da conciliação, da terapêutica, etc., esgotemos antes de tudo essas soluções e apenas quando não funcionarem pensemos na punição e usemos, ainda assim, o mínimo possível a prisão. Não podemos pensar em soluções com a polícia destruída, mal paga, não profissionalizada, infestada por cúpulas corruptas, etc. Ou não estou descrevendo uma realidade latinoamericana ?




terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Revista Fórum - Entrevista com Jacques Rancière sobre os movimentos de ocupação e a democracia

A dica de leitura de hoje é a publicação do site da Revista Fórum (link) da entrevista do Jacques Rancière, filósofo contemporâneo, falando sobre o dever de repensarmos a democracia; conceitos e ações que a envolvem.
Segue abaixo a publicação completa.

"A democracia, no sentido forte do termo, é a realidade de um poder do povo que não pode jamais coincidir com uma forma de Estado".

Por Paula Corroto [17.01.2012 08h15]

Tradução e nota introdutória de Idelber Avelar


Jacques Rancière, um dos principais filósofos contemporâneos, herdeiro do pensamento de Maio de 1968, acaba de lançar, na França, Momentos Políticos, uma seleção de seus escritos dos últimos trinta anos sobre política. Ele acaba de conceder a El Público, da Espanha, esta entrevista, que a Fórum publica em português em primeira mão.

Estamos vivendo na Europa um "momento político"? Como o Sr. descreveria este momento? 

Prefiro dizer que estão dadas as condições para um momento assim, na medida em que nos encontramos numa situação na qual, a cada dia, se torna mais evidente que os Estados nacionais agem apenas como intermediários para impor aos povos as vontades de um poder inter-estatal, que é, por sua vez, altamente dependente dos poderes financeiros. Em toda a Europa, os governos, tanto de direita como de esquerda, aplicam o mesmo programa de destruição sistemática dos serviços públicos e de todas as formas de solidariedade e proteção social que garantiam um mínimo de igualdade no tecido social. Em todas partes, então, revela-se a oposição brutal entre uma pequena oligarquia de financistas e políticos, e a massa do povo submetida a uma precariedade sistemática, despojada de seu poder de decisão, tal como revelado espetacularmente no referendo planejado e imediatamente anulado na Grécia. Portanto, estão dadas, de fato, as condições de um momento político, isto é, um cenário de manifestação popular contra o aparato de dominação. Mas para que esse momento exista, não é suficiente que se dê uma circunstância, é também necessário que esta seja reconhecida por forças suscetíveis de transformá-la numa demonstração, ao mesmo tempo intelectual e material, e de converter essa demonstração numa alavanca capaz de modificar o equilíbrio de forças, mudando a própria paisagem do perceptível e do pensável.

O que você acha do caso espanhol, em particular?

A Europa apresenta situações muito diferentes. A Espanha é, certamente, o país no qual a primeira condição foi cumprida da forma mais evidente: o movimento 15-M mostrou claramente a distância entre um poder real do povo e instituições chamadas democráticas, mas na verdade completamente entregues à oligarquia financeira internacional. Resta a segunda condição: a capacidade de transformar um protesto em uma força autônoma, não só representativa e independente do sistema estatal, mas também capaz de arrancar a vida pública das garras desse sistema. Na maioria dos países europeus, ainda estamos muito longe da primeira condição.

Os movimentos 15-M e Ocupar Wall Street são política?

Esses movimentos certamente respondem à ideia mais fundamental da política: o poder próprio daqueles que nenhum motivo particular destina ao exercício do poder, a manifestação de uma capacidade que é de todos e de qualquer um. E esse poder se materializou de uma maneira que também está de acordo com esta ideia fundamental: afirmando esse poder do povo mediante uma subversão da distribuição normal dos espaços. Geralmente há espaços, como as ruas, destinados à circulação de pessoas e bens, e espaços públicos, como parlamentos ou ministérios, destinados à vida pública e ao tratamento de assuntos comuns. A política sempre se manifesta através de uma distorção dessa lógica.

O que deveríamos fazer com os partidos políticos atuais?


Os partidos políticos que conhecemos hoje são só aparatos destinados a tomar o poder. Um renascimento da política passa pela existência de organizações coletivas que se subtraiam a essa lógica, que definam seus objetivos e seus meios de ação independentemente das agendas estatais. “Independentemente” não significa “desinteressando-se de” ou “fingindo que essas agendas não existem”. Significa construir uma dinâmica própria, espaços de discussão e formas de circulação de informação, motivos e formas de ação que visem, em primeiro lugar, o desenvolvimento de um poder autônomo de pensar e agir.

Em Maio de 68, as pessoas discutiam as ideias de Marx ... mas não parece haver nenhum filósofo no 15-M ou no OWS.

Até onde eu sei, ambos os movimentos se interessam pela filosofia. E é preciso lembrar a recomendação que os ocupantes da Sorbonne, em Maio de 68, deram ao filósofo que tinha vindo apoiar a causa: "Sartre, seja breve". Quando uma inteligência coletiva se afirma no movimento, é hora de prescindir dos heróis filosóficos doadores de explicações ou slogans. Não se trata, na verdade, da presença ou da ausência dos filósofos. Trata-se da existência ou da inexistência de uma visão de mundo que estruture naturalmente a ação coletiva. Em Maio de 68, embora a forma do movimento estivesse afastada dos cânones da política marxista, a explicação marxista do mundo funcionava como um horizonte do movimento. Apesar de não serem marxistas, os militantes de Maio situavam a sua ação no âmbito de uma visão história em que o sistema capitalista estava condenado a desaparecer sob os golpes de um movimento liderado por seu inimigo, a classe trabalhadora organizada. Os manifestantes de hoje já não possuem nem chão nem horizonte que dê validade histórica ao seu combate. Eles são, em primeiro lugar, indignados, pessoas que rejeitam a ordem existente sem poder considerar-se agentes de um processo histórico. E é isso que alguns aproveitam para denunciar interesseiramente, o seu idealismo ou o seu moralismo.

O Sr. escreve que, durante os últimos 30 anos, vivemos uma contra-revolução. Essa situação mudou com os movimentos populares?

Certamente, alguma coisa mudou desde a Primavera árabe e os movimentos dos indignados. Houve uma interrupção da lógica da resignação à necessidade histórica preconizada por nossos governos e sustentada pela opinião intelectual. Desde o colapso do sistema soviético, o discurso intelectual contribuía para endossar de forma hipócrita os esforços dos poderes financeiros e estatais para implodir as estruturas coletivas de resistência ao poder do mercado. Esse discurso acabou impondo a ideia de que a revolta não era apenas inútil, mas também prejudicial. Seja qual for o seu futuro, os movimentos recentes, pelo menos, põem em xeque esta suposta fatalidade histórica. Eles terão se lembrado que não estamos lidando com uma crise de nossas sociedades, e sim com um momento extremo da ofensiva destinada a impor em todos os lugares as formas mais brutais de exploração, e que é possível que os 99% façam ouvir a sua voz contra essa ofensiva.

O que podemos fazer para restaurar os valores democráticos?

Para começar, seria necessário chegar a um acordo sobre o que chamamos de democracia. Na Europa, nos acostumamos a identificar a democracia com o sistema duplo de instituições representativas e do livre mercado. Hoje, esse idílio é uma coisa do passado: o livre mercado se mostra cada vez mais como uma força de constrição que transforma as instituições representativas em simples agentes da sua vontade e reduz a liberdade de escolha dos cidadãos às variantes de uma mesma lógica fundamental. Nessa situação, ou denunciamos a própria ideia de democracia como uma ilusão, ou repensamos completamente o que a democracia, no sentido forte do termo, significa. Para começar, a democracia não é uma forma de Estado. Ela é, em primeiro lugar, a realidade de um poder do povo que não pode jamais coincidir com uma forma de Estado. Sempre haverá tensão entre a democracia como exercício de um poder compartilhado de pensar e agir, e o Estado, cujo princípio mesmo é apropriar-se desse poder. Evidentemente, os estados justificam essa apropriação argumentando a complexidade dos problemas, a necessidade de se pensar a longo prazo etc. Mas a verdade é que os políticos estão muito mais submetidos ao presente. Recuperar os valores da democracia é, em primeiro lugar, reafirmar a existência de uma capacidade de julgar e decidir, que é a de todos, frente a essa monopolização. É também reafirmar a necessidade de que essa capacidade seja exercida através de instituições próprias, distintas do Estado. A primeira virtude democrática é essa virtude da confiança na capacidade de qualquer um.

No prefácio de seu livro, o Sr. critica os políticos e os intelectuais, mas qual é a responsabilidade dos cidadãos na atual situação e na crise econômica?

Para caracterizar os fenômenos do nosso tempo é necessário, em primeiro lugar, questionar o conceito de crise. Fala-se da crise da sociedade, da crise da democracia etc. É uma maneira de culpar as vítimas da situação atual. Pois bem, essa situação não é o resultado de uma doença da civilização, e sim da violência com que os senhores do mundo dirigem hoje a sua ofensiva contra os povos. O grande defeito dos cidadãos continua sendo, hoje, o mesmo de sempre: deixar-se despojar de seu poder. Ora, o poder dos cidadãos é, acima de tudo, o poder de agir por si próprios, de constituir-se em força autônoma. A cidadania não é uma prerrogativa ligada ao fato de haver sido contabilizado no censo como habitante e eleitor em um país; ela é, acima de tudo, um exercício que não pode ser delegado. Portanto, é preciso opor claramente esse exercício da ação cidadã aos discursos moralizantes que se  ouvem em quase todos os lugares sobre a responsabilidade dos cidadãos na crise da democracia. Esses discursos lamentam o desinteresse dos cidadãos pelo vida pública e o imputam à deriva individualista dos indivíduos consumidores. Essas supostas chamadas à responsabilidade cidadã só têm, na verdade, um efeito: culpar os cidadãos para prendê-los mais facilmente no jogo institucional que só consiste em selecionar, entre os membros da classe dominante, aqueles por quem os cidadãos preferirão deixar-se despojar de sua potência de agir.




quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O culto da criatividade individual e da meritocracia. Riscos para a democracia.



Entrevista publicada no site Instituto Humanitas Unisinus - IHU, em 09/11/11. (link)



"Está declinando a ideia da democracia como igualdade, e isso é muito perigoso. O culto da criatividade individual pode minar o vínculo entre as pessoas". Em seu último livro, Pierre Rosanvallon explica por que a promoção das diferenças econômicas é um risco.


A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 08-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Somente uma sociedade fundamentada na verdadeira igualdade pode garantir a coesão social necessária para enfrentar as difíceis provas do nosso tempo. Para Pierre Rosanvallon, essa é uma certeza. O célebre estudioso das formas da política reforça essa ideia em seu último livro, La société des egaux (Ed. Seuil), recém-lançado na França e que já está sendo traduzido para muitas línguas.

O intelectual francês que leciona no Collège de France e dirige La Republique des idées analisa nessa obra a crise do conceito de igualdade em uma sociedade, como a nossa, dominada por diferenças sociais mais acentuadas. Análise a partir da qual nasce, depois, a proposta da "sociedade dos iguais", que soa quase como uma contribuição teórica ao movimento dos indignados.

"O indignados são apenas a ponta do iceberg de um protesto social generalizado que denuncia o desvio intolerável das desigualdades. Um desvio que, além de ser um desastre moral, favorece a "desconstrução social", explica Rosanvallon. "Infelizmente, no entanto, a indignação não se traduz quase nunca em escolhas concretas de reforma. Ou melhor, enquanto nos indignamos, as rupturas sociais aumentam. A consciência política cresce, mas a coesão social retrocede".

Eis a entrevista.

Como isso se explica?                             

A sociedade condena fatos produzidos por mecanismos que, no entanto, são parcialmente aceitos. Por exemplo, denunciam-se as retribuições escandalosas dos traders, mas não nos surpreendemos diante das compensações muito superiores dos jogadores de futebol ou dos artistas. Ou aceitamos, sem muitos problemas, a ideia de que o mérito pode produzir enormes diferenças econômicas. Tudo isso é um sinal do descompasso entre a democracia como regime político e a democracia como forma social. No plano político, as democracias são globalmente mais fortes e críticas hoje do que há 30 anos, podem contar com contrapoderes mais organizados e uma maior informação. Mas a democracia como vínculo social baseado na igualdade está diminuindo perigosamente.

No passado, a dimensão social da democracia contava mais?

Certamente. Para as revoluções americana e francesa, mais do que o regime político, contava a ideia de uma sociedade sem privilégios e diferenças sociais. Por isso a palavra "igualdade" era tão importante, como Tocqueville logo entendeu. Hoje, ela retrocede em toda a parte. Mas uma democracia certamente não pode continuar progredindo se entre os indivíduos falta o sentido de pertença a uma sociedade comum e compartilhada. Na ruptura social, corremos o risco de que o populismo se insinue, ou seja, a patologia da democracia-regime que explora a desconstrução da democracia-sociedade. Diante da crise do sentido de pertença, o populismo responde com a exaltação de um sentimento de comunidade fictício, baseado em uma ideologia nacionalista feita de exclusão, xenofobia e ilusória homogeneidade. Para responder ao populismo, é preciso, portanto, promover uma sociedade em que a palavra igualdade tenha novamente sentido.

Por que nos últimos 20 anos a igualdade social retrocedeu?

A sociedade abandonou progressivamente o modelo redistributivo que, durante quase todo o século passado, atenuou gradualmente as desigualdades sociais. A escolha da redistribuição estava ligada à recordação das grandes provas vividas coletivamente, sobretudo as duas guerras mundiais e ao medo do comunismo que levou até os regimes mais conservadores rumo às reformas sociais. Hoje, a vivência coletiva e o reformismo do medo não atuam mais, contribuindo assim para tornar muito mais frágil o impulso à solidariedade.

Qual foi o peso do triunfo do individualismo?

Foi um fator estrutural determinante, além do mais, favorecido pelo advento do novo capitalismo da inovação, que valoriza a produtividade e a criatividade individuais. A partir dos anos 1980, a meritocracia e a igualdade de oportunidades tornaram-se cada vez mais importantes, sustentadas por uma transformação quase antropológica do individualismo.

Em que sentido?

No alvorecer da democracia, o individualismo era universalizante. Ser um indivíduo significava sobretudo ser como os outros, com os mesmos direitos e a mesma liberdade. Daí a ideia de uma sociedade de indivíduos semelhantes e iguais. Hoje, ao contrário, prevalece a demanda por singularidade, o individualismo que nos distingue dos outros, a necessidade de nos sentirmos únicos que ganha espaço de escolha na sociedade de consumo. Temos a impressão de ter um poder suplementar sobre a nossa vida só porque nos consideramos consumidores conscientes, mas escolher entre cinco operadoras de telefonia não faz de nós cidadãos responsáveis. A verdadeira singularidade é construir a própria vida como indivíduos autônomos, existir como pessoas. O neoliberalismo, ao contrário, respondeu à necessidade de singularidade sacralizando consumidor e indicando como ideal da sociedade a concorrência generalizada.

Como fazer para colocar a igualdade novamente no centro da sociedade?

Insistir sobre o mérito e a igualdade de oportunidades não é suficiente. É preciso elaborar uma verdadeira filosofia da igualdade, que naturalmente não significa igualitarismo. Da igualdade como método de redistribuição, é preciso passar para a igualdade como relação, que deve se tornar a espinha dorsal de uma sociedade de iguais, articulando-a, porém, com a necessidade de singularidade. Hoje, de fato, não podemos mais pensar na igualdade como homogeneidade e nivelamento. É preciso dar a cada um os meios da sua própria singularidade, sem discriminações. Mas, ao lado dessa igualdade "de posição", deve ser promovida a igualdade "de interação", da qual depende o sentimento de reciprocidade, que é fundamental para a coesão social.

Por que a reciprocidade é tão importante?

Há reciprocidade quando cada um contribui de modo equivalente com uma sociedade em que o equilíbrio dos direitos e dos deveres é o mesmo para todos. A ausência de reciprocidade produz a desconfiança social e a falta de confiança com relação à coletividade. Quanto mais se perde confiança, mais os cidadãos se afastam uns dos outros. A reciprocidade está na base das chamadas "instituições invisíveis" que regulam a vida social: a saber, a confiança, a legitimidade, o respeito à autoridade. Hoje, as instituições invisíveis custam a manter o seu status e a sua eficácia. É por isso que é necessário colocar a igualdade no centro do espaço social, tornando possível, dentre outras coisas, aquela igualdade "de participação" que está no cerne da vida política democrática. A possibilidade para todos de intervir na vida pública, mesmo para além do exercício do voto. Favorecer esse tipo de igualdade, da qual também depende, depois, a redistribuição econômica, é do interesse de todos. Um mundo de desigualdades, de fato, além de ser um insulto aos mais pobres, também é um mundo dominado pela insegurança, pela violência e por custos sociais cada vez mais elevados. A sociedade da desigualdade não é apenas injusta, mas também uma ameaça para todos.


                                                                                                                              

Decisão STJ - Imóvel não substitui depósito em dinheiro na execução provisória por quantia certa

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