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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO: evolução, teorias, modalidades e estudo jurisprudencial

 Giselle Borges Alves


1. Conceitos introdutórios


Segundo José Joaquim Gomes Canotilho (1993), a responsabilidade estatal pelos danos causados a terceiros decorre diretamente do Estado de Direito. Assim, a responsabilidade civil do Estado (ou responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público) é a reparação dos danos ligados a situação criada pelo Poder Público, mesmo que o autor do prejuízo não tenha sido o Estado.

Neste sentido, o Estado é uma pessoa jurídica e por isso não possui vontade ou ação própria, assim, se manifesta pelas pessoas físicas que agem na condição de seus agentes. “Logo, a relação entre a vontade e a ação do Estado e de seus agentes é de imputação direta dos atos dos agentes ao Estado, por isso tal relação é orgânica” (DINIZ, 2007, p. 615).

Também se inclui na responsabilidade do Estado, as pessoas jurídicas que são seus auxiliares, ou seja, aquelas que possuem não só personalidade jurídica de direito público, como também as que possuem personalidade jurídica de direito privado e são prestadoras de serviço público no regime de concessão ou delegação, inclusive as sociedades de economia mista. Sendo assim, a responsabilidade civil do Estado não está disciplinada apenas no Direito Civil, mas principalmente no Direito Público (Direito Administrativo, Direito Constitucional, Direito Internacional Público etc.) (DINIZ, 2007).

Cunha Júnior (2013, p. 369) prefere a adoção da nomenclatura responsabilidade extracontratual do Estado por comportamentos administrativos e conceitua como uma “obrigação que lhe incumbe de reparar os danos lesivos a terceiros e que lhe sejam imputáveis em virtude de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”. Subdivide a responsabilidade extracontratual a partir da decorrência de “comportamentos administrativo”, “atos legislativos” e “atos judiciais”.

 

2. Fundamentos da responsabilidade civil do Estado

O principal fundamento que norteia a responsabilidade civil do Estado é o princípio da igualdade (isonomia). Por este, deve haver igual repartição dos encargos públicos entre os cidadãos (DINIZ, 2007).

Quando se trata das relações entre Estado e administrado, a responsabilidade civil funda-se na teoria do risco. Aplica-se, então, a responsabilidade objetiva se o dano é derivado de atos comissivos dos agentes do Estado (art. 37, §6º da CF) e a responsabilidade subjetiva se o dano é advindo de uma prática omissiva (DINIZ, 2007).

De acordo com Cunha Júnior (2013) a responsabilidade por omissão do Estado é subjetiva pela falta/culpa administrativa. Em algumas situações os tribunais aplicam o artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor, invertendo o ônus da prova diante da impossibilidade de comprovação que o serviço existiu de forma insuficiente ou sequer existiu. Cunha Júnior (2013, p. 379-380) exemplifica que pode ocorrer a responsabilidade por ato omissivo, diante de acontecimentos relacionados a fato da natureza e comportamento material de terceiros (atuação danosa não impedida pelo Estado).

Nas relações entre Estado e funcionário, a responsabilidade será sempre subjetiva, pois o direito de regresso do Estado contra o agente faltoso está condicionado à culpa ou dolo deste, conforme definido na Constituição Federal de 1988, no art. 37, §6º e no art. 43 do Código Civil.


3. Divisão da responsabilidade civil do Estado

Para tratar do tema escolhemos a doutrina de Maria Helena Diniz, que subdivide a responsabilidade do Estado em: (a) responsabilidade civil aquiliana do Estado por atos administrativos; (b) responsabilidade civil do Estado por atos legislativos; (c) responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais; (d) Responsabilidade civil do Estado na ordem internacional. Vejamos cada uma das divisões propostas pela autora.


3.1. A responsabilidade civil aquiliana do Estado por atos administrativos

 

Para tratar da responsabilidade aquiliana ou extracontratual é preciso retomar a origem histórica da responsabilidade civil do Estado.

1ª Fase: TEORIA DA IRRESPONSABILIDADE à Surgida no Estado Absolutista. Fundamento: soberania do Estado. Autoridade do Rei era incontestável. Esta primeira fase trouxe o período da irresponsabilidade absoluta do Estado. Neste período, o dano era ressarcido pelo próprio funcionário público e na França existia a Lei de 38 pluvioso do Ano VIII, em que havia previsão da responsabilidade por danos resultantes de obras públicas, por prejuízos causados por gestão do domicílio privado do Estado, ou pelas coletividades públicas locais (DINIZ, 2007).

Essa teoria foi combatida sob o argumento de que o Estado deve tutelar direitos e não se eximir de responder por atos comissivos ou omissivos que venham a lesar terceiros. Segundo os oposicionistas, todos, inclusive o Estado, são titulares de direitos e obrigações. Atualmente a teoria da irresponsabilidade não encontra respaldo.

2ª Fase: TEORIA CIVILISTA à Surgida no século XIX juntamente com o período Iluminista. Passa-se a distinguir os atos de império dos atos de gestão. Nessa fase, segundo Venosa (2012), a responsabilidade do Estado dependia da perquirição de culpa (teoria também conhecida como teoria civilista da culpa, teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva). Vejamos a configuração do período para os atos praticados pelo Estado:

a)            Atos de Império: atos praticados pelo Estado-Administração com prerrogativas e privilégios de autoridade, sem qualquer necessidade de autorização judicial, o que modernamente se aproxima do poder de polícia da Administração. Atos de império pressupõem um direito especial do Estado. Ocorre quando age no exercício de sua soberania e em razão do império, não podendo ser responsabilizado pelos seus atos lesivos.

b)            Atos de Gestão: praticados pelo Estado-Administração em situação de paridade com os particulares. Adotam o direito comum. Ocorre quando o Estado procede como pessoa privada, sendo responsabilizado na gestão de seu patrimônio pelos prejuízos que causa.

A teoria civilista, segundo Diniz (2007), também não foi aceita por muito tempo, pois pouco importa para quem sofreu o ilícito, a origem do ato (de gestão ou de império), o que é sempre necessário é o restabelecimento do status anterior e a recomposição do patrimônio. E, além disso, há enorme dificuldade em caracterizar na atualidade o que seria um ato puramente de gestão ou de império.

3ª Fase: TEORIAS PUBLICISTAS à A responsabilidade civil do Estado sai da teoria civilista e encontra seu fundamento no direito público com base no princípio da igualdade de todos perante a lei, pois os ônus ou encargos devem ser equitativamente distribuídos. Não é justo que, para benefício da coletividade, somente um sofra os encargos. Estes deverão ser suportados por todos indistintamente (DINIZ, 2007).

Dirley da Cunha Júnior (2013) informa que atualmente as teorias publicistas da responsabilidade estatal, se subdividem em duas: teoria da culpa administrativa ou culpa do serviço; e teoria do risco. De acordo com o autor, o administrativista Hely Lopes Meirelles ainda subdivide a teoria do risco em risco administrativo e risco integral.

Abaixo seguem algumas considerações de Dirley da Cunha Júnior (2013, p. 370-372) sobre as teorias publicistas da responsabilidade extracontratual do Estado:

a)    Teoria da culpa administrativa ou culpa do serviço: essa teoria distingue a culpa individual do agente da culpa administrativa ou anônima do serviço. Não indaga sobre a culpa subjetiva individual do agente. Concentra-se na ideia de culpa do serviço. Ocorre quando: (1) o serviço não existiu ou não funcionou, devendo funcionar; (2) o serviço funcionou mal; ou (3) o serviço atrasou. Nestes casos, a responsabilidade continua sendo subjetiva (baseada na culpa lato sensu), mas não está amparada na culpa individual do agente público. Não existe individualização pessoal. Assim, a análise se dá pelo serviço, conforme as hipóteses dos itens 1, 2 e 3.

b)    Teoria do risco: fundamento da responsabilidade objetiva do Estado. Aspectos: (1) risco inerente a atividade administrativa; e (2) necessidade de repartir não apenas os benefícios, mas também o ônus da ação estatal (repartição de encargos suportados). A reparação dos danos causados pelos atos administrativos também deve ser suportada por todos. Não se cogita culpa administrativa (culpa do serviço ou do agente). Conforme destaca o autor, na presença de nexo de causalidade entre o comportamento estatal e o dano a terceiro, o Estado responde. Na esteira de Hely Lopes Meirelles, Cunha Júnior (2013), subdivide a teoria do risco em risco administrativo (admite causas excludentes responsabilidade) e risco integral (não admite excludente de responsabilidade).

Em resumo, pelas ideias do autor, a teoria do risco incide sem perquirir culpa e tanto sobre atos lícitos como sobre atos ilícitos. A teoria da culpa administrativa perquire a culpa administrativa e incide apenas sobre atos lícitos, posto que tem como base o serviço público.

Segundo Diniz (2007) e Venosa (2012), existem algumas teorias que fundamentaram a responsabilidade civil do Estado:

a)  Culpa administrativa do preposto: Por esta teoria não há desvinculação da responsabilidade do Estado da noção de culpa do seu agente. Fala-se, então, em culpa do serviço público prestado (não há pessoalidade). Estado só pode ser responsabilizado se houver culpa do agente, preposto ou funcionário, de maneira que o prejudicado terá de provar o ilícito do agente público para que o Estado responda pelos danos.

b)  Acidente administrativo ou falta impessoal do serviço público: parte do pressuposto de que os funcionários fazem um todo uno e indivisível com a própria administração, e se nessa qualidade de órgãos lesarem terceiros por uma falta cometida, nos limites da função, a pessoa jurídica é responsável. Não cabe indagar culpa do agente público.

c)  Risco integral: A teoria do risco substitui a ideia de verificação do dolo ou culpa para consagrar apenas a necessidade de demonstração do nexo causal, ligando a conduta e o dano advindo, em decorrência do risco inerente à atividade administrativa. Cabe indenização estatal de todos os danos causados por comportamentos comissivos dos funcionários aos direitos de particulares. Trata-se da responsabilidade objetiva do Estado, bastando a comprovação da existência do prejuízo. Assim, com base na teoria do risco basta que haja dano, nexo causal com o ato do funcionário e que este se ache em serviço no momento do evento prejudicial ao particular. Esta foi a teoria adotada pelo Código Civil de 2002 no art. 43 e pela Constituição Federal no art. 37 § 6º. Há tendência doutrinária de que tal responsabilidade funda-se na teoria do risco administrativo, conforme sustentado por Hely Lopes Meirelles (2002) e Diógenes Gasparini (2002).

De acordo com Venosa (2012), seguindo a esteira de Hely Lopes Meirelles, a teoria do risco se subdivide: risco administrativo e risco integral.

è Risco administrativo: admite excludentes de responsabilidade;

è Risco integral: não admite excludente de responsabilidade.

Entretanto, grande parte da doutrina não aceita essa diferenciação e afirma que ambas as hipóteses admitem a análise de excludentes.

O sistema de responsabilização do Estado é basicamente o mesmo do direito privado. O que muda é o sistema de avaliação da culpa para as pessoas de direito público. O ente público responde pela teoria do risco administrativo[1], e o servidor, causador do dano, responde por culpa, na ação regressiva contra ele movida pela Administração.


4ª Fase: TEORIA DO RISCO-PROVEITO (Celso Antônio Bandeira de Mello, 2004) à pressupõe sempre ação positiva do Estado, que coloca terceiro em risco (pessoalmente ou seu patrimônio), em benefício da instituição governamental ou da coletividade, que o atinge individualmente, e atenta contra a igualdade de todos diante dos encargos públicos, lhes atribuindo danos anormais. Jamais será proveniente de omissão, mas sempre de ato positivo. Essa teoria prevalece sempre quando o serviço apresenta falha, causando dano a terceiro, neste caso a responsabilidade será subjetiva.

De acordo com Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (2007), o lesado pode propor indenização contra o funcionário, contra o Estado ou contra ambos, como responsáveis solidários nos casos de culpa ou dolo. Assim, de acordo com Maria Helena Diniz é aplicável a denunciação da lide no caso da responsabilidade civil do Estado (art. 70, III do CPC) (DINIZ, 2007).

O art. 37 § 6º da CF trata da responsabilidade por ato comissivo (atuação positiva). Sem uma ação positiva não há aplicação da responsabilidade objetiva do Estado. Nestes casos, o Estado só se liberará do dever ressarcitório se faltar o nexo entre o ato comissivo e o dano, isto é, se não causou a lesão que lhe é imputada ou se a situação de risco a ele atribuída não existiu ou foi irrelevante para produzir o prejuízo.

Em caso de dano por comportamento omissivo, a responsabilidade é subjetiva. O Estado responde por omissão, quando, devendo agir, não o faz, incorrendo em ilícito (DINIZ, 2007, p. 622). Exemplo: omissão do Estado em prevenir enchentes, por não ter providenciado a canalização de rios, conservação das redes de esgoto ou redes pluviais; negligenciar a conservação de estradas.

Quanto às excludentes de responsabilidade civil, para a força maior (fato da natureza) ser uma excludente da responsabilidade civil do Estado, exige-se que seja realmente comprovado que era irresistível, inevitável e imprevisível para que, assim, fique bem caracterizada a inimputabilidade da entidade pública, caso contrário haverá o dever de indenizar (DINIZ, 2007, p. 624).

 

3.2. Responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público

 

De acordo com decisão do STF do ano de 2005, a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, limita-se ao usuário de serviço, não se estendendo ao não-usuário do serviço prestado (RE 262.651, Relator Ministro Carlos Velloso). Esta jurisprudência de acordo com Cunha Júnior (2013, p. 372-373), se aplicava aos serviços uti singuli, que possui usuários certos e determinados não aplicável aos serviços públicos oferecidos de forma universal: “Quando se cuida, porém, de serviços uti universi, que são prestados a usuários incertos, [...] a responsabilidade será objetiva, pois todos os administrados são usuários universais desses serviços”.

No entanto, em 2009, conforme ressaltado por Cunha Júnior (2013), tivemos uma modificação de entendimento do STF, no julgamento do RE 591.874, com relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, tendo assentado que a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas prestadora de serviço público alcança usuários e não usuários, o que decorre da interpretação do artigo 37, §6º da Constituição Federal, que não faz qualquer diferenciação.

Importante: a responsabilidade dos prestadores de serviço público também pode ser aferida com fundamento no direito do consumidor, tanto na modalidade de consumidor direto como indireto (bystander), pela aplicação dos artigos 2º, 17 e 29 do Código de Defesa do Consumidor. No entanto, é importante salientar que o CDC abrange a prestação de serviço público uti singuli, não abrange nas suas regras, o serviço uti universi.

 

3.3. Responsabilidade civil do Estado por atos legislativos

 

De acordo com Venosa (2012) não pode haver responsabilidade por ato típico (lei) formal, abstrato e de sentido geral. Só há possibilidade de responsabilização no caso de leis concretas e de efeito imediato, que atingem diretamente o patrimônio das pessoas (normas de efeitos concretos), normas que embora sejam chamadas de leis possuem conteúdo de ato administrativo. Em linhas gerais, a edição da lei por si só, não causa dano.

REGRA à irresponsabilidade por danos resultantes de atos legislativos. Não há indenização por lei de efeito impessoal e abstrato, pois é impossível haver dano abstrato.

EXCEÇÃO à Estado responde por danos causados por atos legislativos inconstitucionais que geraram prejuízos concretos a particulares.

Direito de regresso: de maneira geral “o Estado que paga indenização ao lesado terá direito de regresso contra o lesante, mas não haverá tal ação regressiva contra o legislador faltoso, visto que ele se encontra, relativamente aos demais agentes públicos, numa posição mais favorável ante o disposto no art. 53 da CF” (DINIZ, 2007).

 

3.4. Responsabilidade quanto aos atos do Poder Judiciário

 

Por muito tempo prevaleceu a teoria de que o Estado não era responsável pelos atos do Poder Judiciário, sob o fundamento da independência dos poderes. Posição atualmente superada. A orientação anterior era baseada no fato do Executivo não poder interferir nas decisões judiciais.

No entanto, prevaleceu a ideia de que o Estado deve responder pelas falhas dos serviços judiciários (aplicação da teoria francesa da falta do serviço). Se o Estado falha, retardando ou suprimindo as decisões por desídia de servidores, greves ou mazelas do aparelhamento, aplica-se a responsabilidade em sentido lato. Portanto, o Poder Judiciário pode ter soberania, mas não é um superpoder (VENOSA, 2012).

A Constituição de 1988, prevê uma das espécies de responsabilidade do Estado por erro judiciário, no art. 5º, LXXV: “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.  Esta abrange tanto os prejuízos morais quanto os patrimoniais. Entretanto, nas demais hipóteses de má prestação jurisdicional, o sistema indenizatório não poderá interferir no sistema jurisdicional, no mérito das decisões e na coisa julgada, pois para reverter estes danos existe todo o sistema recursal (VENOSA, 2012).

Erro judiciário é julgamento errôneo, decisão equivocada. Então, o art. 5º, LXXV é exceção ao princípio da responsabilidade objetiva descrita no art. 37, §6º da CF (VENOSA, 2012). Aplica-se, portanto, na responsabilidade por atos do Poder Judiciário, como regra geral a responsabilidade subjetiva.

Desde o Código de Processo Civil anterior, o juiz respondia pessoal, civil e criminalmente por dolo ou fraude, quando omite, retarda ou recusa, injustificadamente, providencias que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte (art. 133 do CPC/1973). No Código de Processo Civil de 2015, tivemos a manutenção do entendimento, quando no artigo 143 prevaleceu a previsão de responsabilidade civil, inclusive de forma regressiva, quando o juiz nas suas funções proceder com dolo ou fraude (inciso I) e quando recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte (inciso II), sendo que neste último caso, a hipótese de incidência da norma ocorre após o requerimento da parte e a falta de apreciação do mesmo, no prazo de 10 dias, o que garante objetividade e segurança para as situações que ensejam aplicação do dispositivo.

Entretanto, Venosa (2012) ressalta que independência funcional e liberdade de julgar, que deságuam na liberdade do cidadão, ficariam prejudicados com um juiz amedrontado e sob permanente espada da responsabilização. Sustenta Venosa (2012) que nas hipóteses de dolo ou fraude do juiz, o que deve haver é a responsabilidade do Estado e, se for o caso este deverá acionar regressivamente o magistrado.

 “A tendência da doutrina é admitir somente a responsabilidade subjetiva para as reparações de danos envolvendo a atividade jurisdicional, pois esta se mostra absolutamente incompatível com a responsabilidade objetiva.” (VENOSA, 2012, p. 107).

O STF reconheceu expressamente a responsabilidade subjetiva do Estado, por ato judicial, ao reconhecer o error in judicando do juiz (RE 32.519/RS e RE 69.568/SP).

 


REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

 

BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo. 3. ed. v. 1. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

 

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Manual de Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.

 

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 2008.

 

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. rev. amp. atual., Salvador: Juspodivm, 2013.

 

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil. v.7., São Paulo: Saraiva,  2007.

 

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 7.ed. rev. atual., São Paulo: Saraiva, 2002.

 

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17.ed. rev. atual. amp., São Paulo: Malheiros, 2004.

  

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª ed. São Paulo, 2002.

 

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. v.4. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

 

 

 



[1] Teoria do risco administrativo: O risco administrativo torna o Estado responsável pelos riscos de sua atividade administrativa, mas não pela atividade de terceiros, da própria vítima ou de fenômenos naturais, alheios à sua atividade. Conforme a doutrina de Cavalieri Filho se "o Estado, por seus agentes, não deu causa a esse dano, se inexiste relação de causa e efeito entre a atividade administrativa e a lesão, (...) o Poder Público não poderá ser responsabilizado". (CAVALIERI FILHO, 2008. p.253).


terça-feira, 21 de maio de 2013

Direito de Defesa: Independência das esferas administrativa e penal é mito

Por Pierpaolo Cruz Bottini
Artigo originalmente publicado no Conjur 

Um mantra sempre repetido em doutrina e jurisprudência: processo administrativo e penal são independentes, autônomos, seguem princípios distintos, e as decisões em um deles não se comunicam com o outro.

Com base nisso, é comum que a absolvição de investigado na seara administrativa seja ignorada na seara penal, e vice-versa, como se cada segmento do Poder Público fosse uma unidade hermética e indevassável a valorações feitas em outros terrenos. Isso ocorre nos crimes financeiros, concorrenciais, ambientais, e em outros, em que eventuais decisões dos órgãos que apuram ilícitos administrativos (Banco Central, Cade, Ibama) são praticamente desconsideradas na esfera penal. Ocorre que a cada dia se constata que tal independência é relativa.

Em primeiro lugar, a própria legislação e a jurisprudência têm conferido efeitos cada vez mais relevantes a atos praticados no âmbito administrativo, em especial em relação ao processo penal. Apenas para fins ilustrativos, podemos citar a conhecida Súmula 24 do STF, que faz depender a “materialidade típica do crime fiscal da constituição administrativa do crédito tributário”, e a Lei 12.259/11, que determina a extinção da punibilidade dos crimes de cartel quando cumprido do acordo de leniência, firmado no âmbito do Cade.

Mas, mesmo que a lei não estabeleça relação direta entre as instâncias administrativa e penal, os princípios consagrados neste último impõem uma ligação importante entre elas, em especial nos casos em que o comportamento seja considerado lícito na seara administrativa.

Nessas hipóteses, o princípio da subsidiariedade tem interferência central. Se o direito penal é a ultima ratio do controle social, se é tratado como o instrumento que age apenas diante de ineficácia de outros mecanismos de inibição de condutas, como explicar a legitimidade da pena para uma ação ou omissão considerada lícita na seara cível ou administrativa? Como justificar a necessidade da repressão penal a uma conduta supostamente anticoncorrencial considerada lícita pelo Cade? Ou uma gestão temerária de instituição financeira reputada insignificante pelo Banco Central do Brasil?

É evidente que os valores protegidos pelo Direito Administrativo são distintos daqueles presentes na esfera penal. Ocorre que, a existência de justa causa para a persecução penal exige a verificação do desvalor da conduta para todas as outras esferas de controle social. Do contrário restará subvertido o princípio mais caro ao sistema: a ultima ratio da intervenção penal e sua fragmentariedade.

É sempre oportuno frisar que os valores protegidos pelo Direito Penal são os mais relevantes e importantes para o funcionamento de determinada sociedade. A lógica do princípio da fragmentariedade impõe que a norma penal declare injusto apenas aquele comportamento absolutamente inaceitável, insuportável para o convívio em sociedade, e rechaçado pelo ordenamento jurídico como um todo.

Aceitar que um ato tolerado na esfera administrativa ou cível seja reconhecido como injusto penal seria inverter completamente o princípio da fragmentariedade, que, nas palavras de Roxin “sería una contradiccion axiológica insoportable, y contradiria además la subsidiariedad del Derecho penal como recurso extreo de la política social, que una conducta autiruzada em cualquier campo del Derecho no obstante fuera castigada penalmente”[1]. Na mesma linha, explica Bittencourt:
“Por isso, um ilícito penal não pode deixar de ser igualmente ilícito em outras áreas do direito, como a civil, administrativa, etc. No entanto, o inverso não é verdadeiro: um ato licito civil não pode ser ao mesmo tempo um ilícito penal. Dessa forma, apesar de as ações penal e extrapenal serem independentes, o ilícito penal, em regra, confunde-se com o ilícito extrapenal. Em outros termos, sustentar a independência das instâncias administrativa e penal é uma conclusão de natureza processual, ao passo que a afirmação que a ilicitude é única implica uma conclusão de natureza material”[2]
Não é diferente o entendimento do STF nesta seara:
“1. De acordo com o artigo 20 da Lei n° 10.522/02, na redação dada pela Lei n° 11.033/04, os autos das execuções fiscais de débitos inferiores a dez mil reais serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, em ato administrativo vinculado, regido pelo princípio da legalidade. 2. O montante de impostos supostamente devido pelo paciente é inferior ao mínimo legalmente estabelecido para a execução fiscal, não constando da denúncia a referência a outros débitos em seu desfavor, em possível continuidade delitiva. 3. Ausência, na hipótese, de justa causa para a ação penal, pois uma conduta administrativamente irrelevante não pode ter relevância criminal. Princípios da subsidiariedade, da fragmentariedade, da necessidade e da intervenção mínima que regem o Direito Penal. Inexistência de lesão ao bem jurídico penalmente tutelado. 4. O afastamento, pelo órgão fracionário do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, da incidência de norma prevista em lei federal aplicável à hipótese concreta, com base no art. 37 da Constituição da República, viola a cláusula de reserva de plenário. Súmula Vinculante n° 10 do Supremo Tribunal Federal. 5. Ordem concedida, para determinar o trancamento da ação penal. (STF, HC 92438 / PR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Julgamento: 19/08/2008, Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-04 PP-00925, sem grifo no original).
Cumpre destacar o seguinte trecho do voto do E. Ministro Joaquim Barbosa nos autos do Habeas Corpus supra mencionado (HC 92438)
“Torno a dizer: não é possível que uma conduta seja administrativamente irrelevante e não o seja para o Direito Penal, que só deve atuar quando extremamente necessário para a tutela do bem jurídico protegido quando, quando falham os outros meios de proteção e não são suficientes as tutelas estabelecidas nos demais ramos do direito.”
Também nesse sentido:
“(...) I. - No caso, tendo a denúncia se fundado exclusivamente em representação do Banco Central, não há como dar curso à persecução criminal que acusa o paciente de realizar atividade privativa de instituição financeira, se a decisão proferida na esfera administrativa afirma que ele não pratica tal atividade. Inocorrência, portanto, de justa causa para o prosseguimento da ação penal contra o paciente. II. – HC deferido. (STF, HC 83674, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 16/03/2004, DJ 16-04-2004 PP-00088 EMENT VOL-02147-13 PP-02629)
Em caso bastante similar, o STJ reconheceu a relatividade da independência das instâncias:
“ (...) No Estado Democrático de Direito, o devido (justo) processo legal impõe a temperança do princípio da independência das esferas administrativa e penal, vedando-se ao julgador a faculdade discricionária de, abstraindo as conclusões dos órgãos fiscalizadores estatais sobre a inexistência de fato definido como ilícito, por ausência de tipicidade, ilicitude ou culpabilidade, alcançar penalmente o cidadão com a aplicação de sanção limitadora de sua liberdade de ir e vir.
5. É certo que esta independência também funciona como uma garantia de que as infrações às normas serão apuradas e julgadas pelo poder competente, com a indispensável liberdade; entretanto, tal autonomia não deve erigir-se em dogma, sob pena de engessar o intérprete e aplicador da lei, afastando-o da verdade real almejada, porquanto não são poucas as situações em que os fatos permeiam todos os ramos do direito. (...) (STJ, HC 77228/RS (2007/0034711-6), Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 5ª T., DJ 07/02/2008 p. 1, sem grifo no original)
Ou o seguinte julgado:
“(...) 1. O trancamento da ação penal por ausência de justa causa, medida de exceção que é, somente cabe quando a atipicidade e a inexistência dos indícios de autoria se mostram na luz da evidência, primus ictus oculi. 2. Em resultando manifesta a atipicidade da conduta atribuída ao agente, como nas hipóteses em que, descomprometido com o aferimento de lucro, quanto mais ilícito, tomou medidas urgentes e necessárias ao bom funcionamento do órgão que geria, o trancamento da ação penal é medida que se impõe. 3. Carece de justa causa a ação penal fundada em representação de Autarquia Federal, quando ela própria vem a considerar como lícita a conduta do agente (Precedente do STF). 4. Recurso provido”. (STJ, RHC 12192/RJ (2001/0184954-7), Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, 6ª T., DJ 10/03/2003 p. 311)
Ora, se determinado comportamento é reconhecido por um sistema de controle social menos grave que o direito penal como aceitável — ou ao menos como não intolerável — não há legitimidade para a incidência da norma penal, caracterizada como intervenção de ultima ratio, cuja incidência é mais restrita e limitada. Como atesta Figueiredo Dias: “se uma ação é considerada lícita (sc. conforme ao 'Direito') pelo direito civil, administrativo ou por qualquer outro, essa licitude – ou ausência de ilicitude – tem de impor-se a nível do direito penal” [3].

Por isso, a decisão administrativa que reconhece a licitude do comportamento — se isenta de vícios e cercada das formalidades legais — interfere diretamente na seara criminal, porque afasta a necessidade deste último controle, pelo principio da subsidiariedade.


[1] ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. 2. ed. Madrid: Civitas,1997. p.570
[2] BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal. p.297, sem grifo no original
[3] FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal: parte geral. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 388, sem grifo no original


Sobre o autor:
Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.


Revista Consultor Jurídico, 21 de maio de 2013.


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Cooperação internacional: Corrupção coloca em risco saúde das empresas

Por Antenor Madruga*
Texto publicado originalmente no site Conjur,
em 23/11/2011 (link)

Tramita no Congresso projeto de lei que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública. A ampliação do combate à corrupção para alcançar o setor privado não é iniciativa isolada do Brasil e nem uma visão do futuro. Ao contrário, a colocação das empresas privadas na mira das armas anticorrupção é resultado de um movimento internacional. E, independentemente de alterações legislativas, já é sensível o aumento de consequências para as empresas que se envolvem em situações relacionadas à corrupção.

Risco de processos e restrições penais contra executivos e funcionários, buscas e apreensões, perda de patrimônio, devolução de lucros, multas milionárias, proibições de contratar com o poder público e dano à imagem são apenas alguns dos efeitos do recrudescimento da luta anticorrupção que já atingem o cotidiano do mundo corporativo.

Importantes mudanças – como a atitude dos órgãos de law enforcement (Polícia e Ministério Público), que passaram a focar suas ações também para o lado ativo da corrupção, utilizando novas técnicas de investigação e produção de provas, e o avanço da cooperação jurídica internacional – já se refletem no aumento da probabilidade de graves consequências para empresas em atividades de corrupção. Outra significativa alteração no cenário anticorrupção e nos efeitos sobre o setor privado pode ser atribuída às leis que punem a corrupção de funcionário público estrangeiro e ao empenho que alguns países têm demonstrado em aplicá-las inclusive a atos praticados fora de seus territórios. O exemplo mais contundente dessa alteração é a aplicação do Foreign Corrupt Practices Act – FCPA pelas autoridades americanas.

O FCPA tem servido para os EUA alcançarem não apenas suas empresas como, também, as estrangeiras que negociam ações no seu mercado mobiliário ou cujos negócios utilizaram sua estrutura. As autoridades americanas, por exemplo, consideram ter jurisdição sobre empresas estrangeiras que façam operações em dólares, tendo em vista que essas transações são necessariamente compensadas em bancos localizados nos EUA. Quase a metade das empresas processadas com base no FCPA em 2010 é estrangeira, algumas delas brasileiras.

O envolvimento em problemas de corrupção representa significativo risco à capacidade operacional e à saúde financeira da empresa, muitas vezes não identificado em auditorias e due diligences não especializadas. Esse risco é maior em empresas que não têm efetivos programas de compliance e mecanismos de controle.

Avaliar os riscos decorrentes das leis anticorrupção em fusões e aquisições, portanto, deixa de ser apenas um imperativo ético.



*Antenor Madruga é advogado, sócio do Barbosa Müssnich e Aragão; doutor em Direito Internacional pela USP; especialista em Direito Empresarial pela PUC-SP; professor do Instituto Rio Branco.

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