sábado, 13 de junho de 2015

BRASIL + 30: O LEGADO DE 30 ANOS DE DEMOCRACIA E OS DESAFIOS PELA FRENTE, por Luís Roberto Barroso (Min. STF)


Fonte: Portal Migalhas (link)


Durante evento na prestigiada Harvard, intitulado “Harvard Brazil Conference”, o ministro Barroso participou apresentou em uma das conferências de encerramento uma reflexão sobre o Brasil: um olhar para o passado, para o presente e para o futuro.
Sob o título "O legado de trinta anos de democracia e os desafios pela frente" —, Luís Roberto Barroso destacou pontos positivos e negativos desse período, a complexidade do momento atual e o que reserva o futuro.
A ênfase de S. Exa. recaiu sobre a importância de, para melhorar as práticas no espaço público, melhorar, também, a ética privada.

Veja a íntegra abaixo.
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BRASIL + 30: O LEGADO DE 30 ANOS DE DEMOCRACIA E OS DESAFIOS PELA FRENTE
SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO
Parte I
O LEGADO DE TRINTA ANOS DE DEMOCRACIA
II. TRÊS DESTAQUES POSITIVOS
1. Estabilidade institucional
2. Estabilidade monetária
3. Inclusão social
III. DOIS DESTAQUES NEGATIVOS
1. Constitucionalização excessiva e instabilidade do texto constitucional
2. Deficiências do sistema político
Parte II
OS DESAFIOS PELA FRENTE
I. A COMPLEXIDADE DO MOMENTO ATUAL
1. No plano econômico
2. No plano político
3. No plano da percepção social e da opinião pública
II. ALGUMAS OUTRAS CONSTATAÇÕES
III. O QUE RESERVA O FUTURO
1. Avanços importantes e as novas exigências
2. Três itens de uma agenda de avanço social
3. Brasil: um sucesso a celebrar
I. INTRODUÇÃO
A história da minha vida adulta começa dez anos antes da redemocratização do Brasil, em 1975. Eu tinha 17 anos e me preparava para ingressar na Faculdade de Direito. Os chamados “anos de chumbo” estavam ficando para trás, com a abertura “lenta, gradual e segura” do Governo Geisel. Mas a imprensa ainda se encontrava sob censura prévia, havia forte repressão aos opositores do regime militar e episódios de tortura ainda ocorriam aqui e ali. Um fato específico, ocorrido em outubro de 1975, foi o meu rito de passagem para o Brasil real: a morte do jornalista Vladimir Herzog em dependências do Segundo Exército, em São Paulo. A versão oficial era a de que ele fora detido para averiguações, sob suspeita de integrar uma organização (não violenta) de esquerda, e cometera suicídio. No entanto, juntando diversos fragmentos de notícias publicadas na imprensa, eu fui capaz de figurar que ele morrera sob tortura e que a história do suicídio era uma farsa1. A partir dali, com o maniqueísmo da primeira juventude, eu já sabia quem era o inimigo e de que lado eu queria estar.
Em 1976, ao ingressar na Faculdade, eu me juntei ao movimento estudantil de oposição ao regime militar. No ano seguinte, em 1977, apoiamos a deflagração da campanha pela anistia “ampla, geral e irrestrita” aos presos políticos e aos brasileiros no exílio. E um ano à frente, em 1978, participamos do início da mobilização pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Pois bem: a ditadura terminou em 1985; a Lei da Anistia veio em 1979; e a nova Constituição, em 1988. Aprendi, dessas experiências, que a história, por vezes, caminha devagar; e, outras vezes, se move rapidamente. É difícil adivinhar quando será de um jeito ou de outro. Mas, a despeito disso, o nosso papel é empurrá-la. É esta a nossa missão, como cidadãos, como intelectuais e como agentes do progresso social: empurrar a história.
Apenas para completar a linha do tempo, relembro mais duas datas marcantes que antecederam a redemocratização. Em 1981, o inquérito do Riocentro, que deveria apurar atos de terrorismo praticados por agentes do Exército foi arquivado, tendo apresentado uma conclusão grosseiramente falsa. Ali se deu a morte moral do regime militar. E em 1984, quando mais de um milhão de pessoas foram à ruas pedir o fim da ditadura, no movimento conhecido como “Diretas já”, deu-se a sua morte política. A eleição de Tancredo Neves e José Sarney, em 15 de janeiro de 1985, foi a certidão de óbito da ditadura e o início da superação do trauma que ela provocara. Na frase histórica que Mikhail Gorbachev iria pronunciar alguns anos depois: “Matar o elefante é fácil. Difícil é remover o cadáver”.
Parte I
O LEGADO DE TRINTA ANOS DE DEMOCRACIA
I. TRÊS DESTAQUES POSITIVOS
1. Estabilidade institucional
Desde o fim do regime militar e, sobretudo, tendo como marco histórico a Constituição de 1988, o Brasil vive o mais longo período de estabilidade institucional de sua história. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, o país conviveu com a persistência da hiperinflação – de 1985 a 1994 –, com sucessivos planos econômicos que não deram certo – Cruzado I e II (1986), Bresser (1987), Collor I (1990) e Collor II (1991) – e com a destituição, porimpeachment, do primeiro presidente da República eleito após a redemocratização. Sem mencionar escândalos graves, como o dos “Anões do Orçamento”, o chamado “Mensalão” ou o “Petrolão”, ainda em curso. Todas essas crises foram enfrentadas e superadas dentro do quadro da legalidade constitucional. É impossível exagerar a importância desse fato, que significou a superação de muitos ciclos de atraso. O Brasil sempre fora o país do golpe de Estado, da quartelada, das mudanças autoritárias das regras do jogo. Desde que Floriano Peixoto deixou de convocar eleições presidenciais, ao suceder Deodoro da Fonseca, até a Emenda Constitucional nº 1, quando os Ministros militares impediram a posse do vice-presidente, o golpismo foi uma maldição da República. Nessa matéria, só quem não soube a sombra não reconhece a luz.
2. Estabilidade monetária
Todas as pessoas no Brasil que têm 40 anos ou mais viveram uma parte de sua vida adulta dentro de um contexto econômico de hiperinflação. A memória da inflação é um registro aterrador. Os preços oscilavam diariamente, quem tinha capital mantinha-o aplicado no overnight e quem vivia de salário via-o desvalorizar-se a cada hora. Generalizou-se o uso da correção monetária – reajuste periódico de preços, créditos e obrigações de acordo com determinado índice –, que realimentava drasticamente o processo inflacionário. Até hoje, um percentual relevante de ações que tramitam perante a Justiça brasileira está relacionado a disputas acerca da correção monetária e de diferentes planos econômicos que interferiram com sua aplicação. Pois bem: com o Plano Real, implantado a partir de 1º de julho de 1994, quando Fernando Henrique Cardoso era Ministro da Fazenda, a inflação foi finalmente domesticada, tendo início uma fase de estabilidade monetária, com desindexação da economia e busca de equilíbrio fiscal. Este é outro marco histórico cuja importância é impossível de se exagerar. Para que se tenha uma ideia do tamanho do problema, a inflação acumulada no ano de 1994, até o início da circulação da nova moeda, o real, que se deu em 1º de julho, era de 763,12%. Nos 12 meses anteriores, fora de 5.153,50%. A inflação, como se sabe, é particularmente perversa com os pobres, por não terem como se proteger da perda do poder aquisitivo da moeda. Como consequência, ela agravava o abismo de desigualdade do país.
3. Inclusão social
A pobreza e a desigualdade extrema são marcas indeléveis da formação social brasileira. Apesar de subsistirem indicadores ainda muito insatisfatórios, os avanços obtidos desde a redemocratização são muito significativos. De acordo com o IPEA, de 1985 a 2012, cerca de 24,5 milhões de pessoas saíram da pobreza, e mais 13,5 milhões não estão mais em condições de pobreza extrema. Ainda segundo o IPEA, em 2012 havia cerca de 30 milhões de pessoas pobres no Brasil (15,93% da população), das quais aproximadamente 10 milhões em situação de extrema pobreza (5,29% da população. O Programa Bolsa Família, implantado a partir do início do Governo Lula, em 2003, unificou e ampliou diversos programa sociais existentes. Trata-se de um programa de transferência condicionada de renda, em que as condicionalidades são: crianças devem estar matriculadas nas escolas e terem frequência de no mínimo 85%; mulheres grávidas devem estar em dia com os exames pré-natal; crianças devem estar com as carteiras de vacinação igualmente atualizadas. O Bolsa Família, conforme dados divulgados em 2014, retratando uma década de funcionamento, atende cerca de 13,8 milhões de famílias, o equivalente a 50 milhões de pessoa, cerca de um quarto da população brasileira.
Nas últimas três décadas, o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH do Brasil, medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), foi o que mais cresceu entre os países da América Latina e do Caribe. Nessas três décadas, os brasileiros ganharam 11,2 anos de expectativa de vida e viram a renda aumentar em 55,9%. Na educação, a expectativa de estudo para uma criança que entra para o ensino em idade escolar cresceu 53,5% (5,3 anos). Segundo dados do IBGE/PNAD, 98,4% das crianças em idade compatível com o ensino fundamental (6 a 14 anos) estão na escola. Os avanços, portanto, são notáveis. Porém, alguns dados ainda são muito ruins: o analfabetismo atinge ainda 13 milhões de pessoas a partir de 15 anos (8,5% da população) e o analfabetismo funcional (pessoas com menos de 4 anos de estudo) alcança 17,8% da população. Também no tocante à desigualdade, houve avanços expressivos, mas este continua a ser um estigma para o país, como atesta o coeficiente GINI, que mede a desigualdade de renda. O Brasil ostenta uma incômoda 79a posição em matéria de justa distribuição de riqueza.
II. DOIS DESTAQUES NEGATIVOS
1. Constitucionalização excessiva e instabilidade do texto constitucional
A redemocratização do país foi institucionalizada pela Constituição de 1988. Não é o caso aqui de se analisarem os seus muitos pontos positivos, dentre os quais se destaca a transição bem sucedida para um regime democrático. O que é fora de dúvida é que a Constituição, mais do que analítica, é uma Constituição prolixa, que trata de temas demais e com excessivo grau de detalhamento. A Constituição brasileira cuida de um conjunto amplo de matérias que na maior parte da democracias do mundo são deixadas para a política e a legislação ordinária. Disso resultou que qualquer mudança de alguma relevância na realidade fática ou na conjuntura política exige uma alteração da Constituição. Isso acarreta dois problemas. O primeiro é que a política ordinária no Brasil acaba sendo feita por emendas constitucionais. Isso significa a necessidade de maiorias de 3/5 (três quintos), que é o quorum de reforma da Constituição, em lugar de maiorias simples, suficientes para a aprovação de leis ordinárias. A segunda consequência negativa é a instabilidade do texto constitucional: a Constituição de 1988 já sofreu, em 26 anos, 86 emendas. Por certo, um recorde mundial do qual, todavia, não devemos nos orgulhar. Mas há um consolo: a maioria das emendas se refere a matérias que nem deveriam estar na Constituição. O conjunto de normas materialmente constitucionais – relativas à separação de poderes, organização da Federação e aos direitos fundamentais – sofreu poucas alterações ao longo do período e permaneceu, portanto, relativamente estável.
2. Deficiências do sistema político
O sistema político brasileiro, no qual os membros da Câmara dos Deputados são eleitos pelo sistema proporcional com lista partidária aberta, tornou-se uma usina de problemas e de notícias ruins. Três de suas maiores deficiências são (i) a baixa representatividade, (ii) a centralidade do dinheiro (e não da cidadania) e (iii) o fato de ser indutor da corrupção. A baixa representatividade decorre da circunstância de que menos de 10% (dez por cento) dos candidatos são eleitos com votação própria. A grande maioria é eleita por transferência de votos, já que cada partido político tem direito a um número de cadeiras proporcional à votação que recebeu. Disso resulta que o eleitor não sabe exatamente quem elegeu. Pior; semanas após a eleição, não lembra sequer em quem votou. Os custos das campanhas são estratosféricos. Cada candidato disputa com todos os outros – inclusive e notadamente com os de seus próprio partido – em toda a extensão geográfica do Estado, já que não há divisão em distritos. Para eleger-se, um candidato precisa investir muitas vezes mais do que vai receber a título de remuneração nos quatro anos de mandato.
Sem surpresa, o financiamento eleitoral se tornou a maior fonte de corrupção e de desvio de dinheiro no país, como documentam os sucessivos escândalos, dentre os quais se destacam o do “Mensalão” e o do “Petrolão”, ora em curso. E, ouso dizer, os muitos outros que ainda podem aparecer. O país precisa deseperadamente de uma reforma política, mas não consegue produzir consenso mínimo sobre o que fazer. Há interesses demais sobre a mesa. Um bom começo seria eleger os objetivos que uma reforma política deveria buscar realizar, que a meu ver devem incluir: (i) aumentar a representatividade; (ii) baratear o custo das eleições; e (iii) reduzir drasticamente o número de partidos e dar a cada um deles um mínimo de autenticidade programática.
Parte II
OS DESAFIOS PELA FRENTE
I. A COMPLEXIDADE DO MOMENTO ATUAL
Faço a seguir uma breve descrição objetiva do momento atual, complexo e delicado, vivido pelo país. Trata-se de uma mera exposição de fato, sem qualquer juízo de valor, cuidando de três planos distintos: o econômico, o político e o da percepção da sociedade.
1. No plano econômico
No plano econômico, o país vive um momento reconhecidamente desfavorável, no qual avulta um conjunto de problemas, que incluem:
1. Baixo crescimento: o país cresceu apenas 0,1% em 2014, o pior resultado entre os BRICS (que inclui, além do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Nos últimos três anos o PIB já tivera uma expansão mais tímida do que em anos anteriores (2,7%, 1% e 2,5%). A perspectiva para 2015 não é promissora.
2. Inflação alta: em 2014, 6,41%, superando a meta de 4,5%. Em fevereiro, o índice acumulado de 12 meses era de 7,7%, a sexta mais alta do mundo2.
3. Contas externas ruins: o item transações correntes, no Balanço de Pagamentos, teve déficit de US$ 91 bilhões.
4. Gasto público elevado e dificuldades na aprovação do Ajuste Fiscal.
5. Redução de investimentos privados e sinais de aumento de desemprego (de acordo com a OIT, a taxa passou de 6,5% em 2013 para 6,8% em 2014 e deverá chegar a 7,3% em 2015).
2. No plano político
No plano político, por igual, uma série de circunstâncias desfavoráveis se acumularam, podendo-se assinalar dentre elas as seguintes:
1. A Presidente ganhou as eleições por maioria mínima (51,64% contra 48,36%) (pouco mais de 3 pontos percentuais de diferença).
2. A Câmara dos Deputados elegeu um Presidente que é adversário da Presidente da República (atuou na campanha do candidato por ela derrotado e tem adotado postura de clara oposição).
3. O Presidente do Senado Federal e da Câmara dos Deputados foram incluídos na investigação requerida pelo Procurador-Geral da República e acusam o governo de haverem interferido para que isso acontecesse.
4. As acusações de corrupção feitas em delação premiada envolvem partidos da base de apoio do governo, inclusive e sobretudo o Partido dos Trabalhadores.
5. Há um conjunto de manifestações populares, algumas espontâneas e outras orquestradas, muitas delas com palavras de ordem pelo impeachment.
3. No plano da percepção social e da opinião pública
Por fim, no âmbito da sociedade civil, uma onda de insatisfação e ceticismo tem contaminado o momento presente, por motivos diversos, dentre os quais:
1. O escândalo de corrupção na Petrobras tem um efeito devastador sobre o sentimento social, tanto por sua extensão quanto por envolver uma empresa de grande valia simbólica para o país.
2. Todas as grandes empreiteiras, responsáveis pelas principais obras do país, aparentemente estão envolvidas. Isso dá à corrupção uma dimensão endêmica e generalizada. De repente, tudo ficou sob suspeita, de aeroportos a hidrelétricas, passando por estradas e estádios.
3. Há temor de que existam mais escândalos por vir, em outras empresas e fundos estatais ou paraestatais.
4. A classe média, a imprensa e a maior parte dos formadores de opinião votaram na oposição e não nutrem simpatia pela Presidente.
5. Algumas providências urgentes na área econômica e relativas ao ajuste fiscal, além de impopulares, contrariam em alguma medida o discurso de campanha.
II. ALGUMAS OUTRAS CONSTATAÇÕES
1. Há uma saturação da sociedade em relação ao modelo político do país e sua baixa identificação com a cidadania.
2. Há uma saturação em relação à corrupção endêmica no país.
3. Há uma saturação em relação à qualidade dos serviços públicos.
4. A insatisfação social é ampla e difusa. Ela não se concentra em lideranças específicas. Pelo contrário, nenhuma liderança política atual simboliza efetivamente este sentimento de mudança. Em muitas manifestações, é inequívoca a hostilidade à classe política em geral.
5. O país enfrenta dificuldades éticas não apenas no governo, mas na sociedade em geral. Pessoas apontam o dedo incisivamente, mas vivem sob a égide de uma moral dupla, quando não da mais pura hipocrisia.
Exemplo 1. O país tem problemas civilizatórios básicos em relação ao respeito ao outro, a não buscar vantagens indevidas e a agir com boa-fé. Entre eles se incluem a dificuldade em respeitar a fila, as barbaridades no trânsito (uso do acostamento, estacionamento na calçada, embriaguez ao volante, atropelamentos com fuga), a prática costumeira de não dar nota em restaurantes, a cobrança de preços diferentes por prestadores de serviços se há exigência de recibo pelo usuário, a vandalização de lugares e monumentos públicos etc.
Exemplo 2. Um caso concreto emblemático. Tenho um casal de conhecidos que me contou, incidentalmente, a seguinte história. Ambos manifestaram indignação com a empregada doméstica, que pedira para não assinar a carteira para poder continuar a receber a Bolsa Família. Pouco à frente na conversa, contaram que a filha vivia conjugalmente com um companheiro há muitos anos, mas que não havia se casado para não perder a substancial pensão que recebia do avô, que somente beneficia neta solteira. Como disse, há uma moral dupla. Mas não se trata de uma atitude deliberada de má-fé: as pessoas nem se dão conta. Foram criadas nessa cultura e a consideram um dado da realidade, e não uma escolha pessoal.
Repito, para que não haja dúvida: não estou endossando ou negando qualquer desses pontos. Trata-se de uma mera fotografia do momento atual, como eu consegui captar do meu ponto de observação.
III. O QUE RESERVA O FUTURO
1. Avanços importantes e as novas exigências
Não se impressionem excessivamente com a complexidade do momento atual. Crises e insucessos momentâneos fazem parte da história dos povos e do seu processo de amadurecimento. Nas horas de aflição, é sempre bom lembrar o quanto avançamos. Tome-se o exemplo dos direitos fundamentais. A liberdade de expressão, tardiamente, mas com grande ímpeto, desfruta o status de liberdade preferencial. Ações afirmativas de vários graus têm ajudado a enfrentar a discriminação e a exclusão social de afrodescendentes. Há uma visível ascensão social da mulher na vida brasileira, inclusive com o combate severo à violência doméstica (Lei Maria da Penha). O direito dos homossexuais à igualdade plena vem sendo progressivamente reconhecido, inclusive quanto às uniões civis e ao casamento. A crise brasileira hoje é de outra natureza: a de uma sociedade que melhorou o seu nível de vida, que passou a ter mais consciência de seus direitos e tornou-se mais exigente em relação às práticas políticas e aos serviços públicos que recebe. Nossos desafios no presente são os do aprofundamento democrático e os da mudança de patamar econômico e social, inclusive com o aumento do nível de renda. Somos muito melhores do que já fomos, ainda que não tão bons quanto queremos ser.
3. Três itens de uma agenda de avanço social
Para superar este atraso, a agenda do país deve incluir, além da Reforma Política, diversos outros itens essenciais. Selecionei três para compartilhar aqui:
1. Em matéria de EDUCAÇÃO, alcançada a universalização do ensino fundamental, é preciso investir em qualidade efetiva; o ensino médio, por sua vez, deve ter a sua universalização elevada à condição de prioridade máxima; e, no tocante ao ensino superior, precisamos criar instituições de ponta, em um modelo totalmente diverso do que está aí (mas sem enfrentar ou desfazer o que já existe): público nos seus propósitos, privado no seu financiamento, com bolsas de estudo para recrutar os melhores alunos, com professores contratados em seleções internacionais e aulas em português, inglês e espanhol. Não é possível detalhar aqui esse projeto, no qual eu trabalhava quando fui indicado para o Supremo Tribunal Federal, mas considero-o essencial para o país.
2. Em matéria de ECONOMIA, precisamos superar o preconceito contra a livre-iniciativa e o empreendedorismo. Esse preconceito decorre do capitalismo de Estado que desde o início do processo de substituição de importações e de industrialização se praticou no Brasil. O imaginário brasileiro ainda associa o capitalismo doméstico a (i) concessões com favorecimentos, (ii) obra pública com licitações duvidosas, (iii) golpes no mercado financeiro e (iv) grandes latifúndios, sucessores das sesmarias ou produtos de grilagens. É uma percepção que vem do tempo em que toda riqueza era injusta, quando não desonesta. Precisamos de marcos regulatórios claros, respeito aos contratos, estímulo à competição e ao capital de risco. Ah, sim: e de empresários que não sejam viciados em financiamento público.
3. E, por fim, em matéria de COMPORTAMENTO SOCIAL, precisamos do florescimento da sociedade civil, independente do Estado, criativa e solidária, com empreendedores sociais que conduzam uma agenda verdadeiramente cívica. Necessitamos de boas causas, boas ideias e de filantropia. Pessoas e instituições que funcionem como agentes do bem e do progresso social. Iniciativas pequenas ou grandes, que incluem a adoção de uma praça, o financiamento de uma biblioteca de bairro, a ajuda material a uma escola carente, a difusão do acesso à internet, a manutenção de um posto de saúde, a prestação de assistência judiciária, o apoio financeiro e logístico a abrigos de menores, projetos de arborização de comunidades, ensino à distância pela rede mundial de computadores, recuperação de drogados, reinserção de presidiários etc3. Em muitos desses domínios já existem iniciativas relevantes e virtuosas, mas longe de serem suficientes. Mudando de patamar, pode-se incluir a subvenção a um museu, a uma orquestra, a jovens promissores. Se queremos mais sociedade e menos Estado, a sociedade tem de fazer a vida acontecer. A crise atual seria menor se o Estado não fosse protagonista de tudo.
3. Brasil: um sucesso a celebrar
É preciso ter em conta que o Brasil só começou, verdadeiramente, em 1808, com a vinda da família real. Até então, os portos eram fechados ao comércio, era proibida a fabricação de produtos na colônia, bem como a abertura de estradas. Inexistia qualquer instituição de ensino médio ou superior, e cerca de 98% da população era analfabeta.
Mais grave ainda, um terço dos habitantes eram escravos, o que constituía uma chaga moral e uma bomba-relógio social. Além disso, fomos herdeiros de uma tradição que, apesar de muitas virtudes, era a do último país da Europa a abolir a Inquisição, o tráfico de escravos e o absolutismo. Tivemos que construir um país quase do zero, a partir do início do século XIX. Pois bem: em pouco mais de 200 anos, o Brasil se transformou em uma das dez maiores economias do mundo. Nos últimos tempos, cerca de 30 milhões de pessoas saíram da linha de pobreza. Temos uma das maiores democracias de massas da Terra, com estabilidade institucional e alternância no poder. Nosso sistema de urnas eletrônicas é original, confiável e admirado por toda parte. Em suma: o Brasil foi um dos maiores sucessos do século XX. Eu olho para trás e vejo realizada boa parte dos meus sonhos de juventude. Agora, ao longo do século XXI, vamos enfrentar o abismo social brasileiro, com educação, empreendedorismo e serviços públicos de qualidade. E, então, com atraso, mas não tarde demais, chegaremos finalmente ao futuro, oferecendo um exemplo de civilização para o mundo, com justiça social, liberdades públicas, diversidade racial, pluralismo cultural e alegria de viver.
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1 Algumas coisas que estavam fora de lugar: Herzog era judeu, mas não fora enterrado na ala reservada aos suicidas no cemitério israelita. Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo, celebrou um culto ecumênico na Praça da Sé em sua memória. Uma multidão comparecera ao evento. Como peças embaralhadas de um quebra-cabeças, eu tentava entender porque uma autoridade católica celebrara uma cerimônia pública para um judeu que havia se suicidado, atraindo milhares de pessoas. A partir desses dados, minha pequena investigação pessoal confirmou a evidencia: Herzog fora preso arbitrariamente e morrera sob tortura nas mãos das autoridades militares.
3 Para outros exemplos, v. Daniel Barcelos Vargas, Creative Society in the Making, mimeografado, dezembro de 2013, p. 2; e Rony Meisler, Quando culpar o Estado sairá de moda?, O Globo, 11 out. 2014, p. 15.





segunda-feira, 8 de junho de 2015

Será que vale a pena ser consumidor sem liberdade e sem direitos básicos?


Por Rizzatto Nunes
(texto publicado originalmente no portal Migalhas - link)




Como estudante de Direito, vivi muito tempo a ilusão de que o Estado pudesse, de fato, intervindo na sociedade, criar bem-estar social. Um Estado democrático, naturalmente, e no qual os agentes públicos representassem os interesses dos governados e também o que existisse do melhor no pensamento jurídico garantidor da dignidade da pessoa humana. Haveria de se implantar políticas e regras que beneficiassem a todos.

Infelizmente, com o passar do tempo, minha ilusão foi se esvaindo. Estou cada vez mais convencido de que, muitas vezes, é o Estado (ainda que democrático) que se torna um entrave ao desenvolvimento das pessoas e da sociedade.

A liberdade, por exemplo, esse direito natural e civil, que toda pessoa deveria poder gozar, tem sido limitada, violada, vilipendiada; o Estado democrático tornou-se centralizador, onipotente, opressor; ao invés de garantir a liberdade individual, ampliando e garantindo espaços para seu exercício ele, ao contrário, passou a estabelecer obstáculos, muitos deles ilegítimos quando não ilegais (ou inconstitucionais).


Em vários fóruns e textos tem-se discutido esse papel que o Estado contemporâneo assumiu e esse exagero precisaria ser limitado. No mundo todo, os Estados têm agentes que causam danos à população, de maneira mais ou menos evidente. As diversas polícias, em muitos lugares, são uma catástrofe de ineficiência e abusos, o que se observa até em países do primeiro mundo como nos Estados Unidos de América, por exemplo. Esse braço repressor, muitas vezes mal dirigido e mal treinado, que se faz mostrar em fotos e vídeos, está também em vários outros setores da administração pública, de forma mais oculta dentro das mentes de seus agentes.


A liberdade individual tem sido uma vítima constante dessa mentalidade centralizadora e das ações que a ela correspondem. Para nossa reflexão, apresentarei duas hipóteses: uma, digamos assim, no plano micro e outra no plano macro.


Faço referência a uma citação de meu amigo Outrem Ego que já aqui indiquei: "Uma das claras diferenças entre uma democracia e uma ditadura é a de que nesta toda pessoa da sociedade civil é suspeita (de algo...); naquela, todo cidadão é inocente até prova (contundente) em contrário. Numa democracia, ninguém é suspeito até agir como tal".

N'outro dia, ouvi o jornalista Ricardo Boechat contar que uma vez ele estava preso num congestionamento enorme e viu muitos motoristas serem assaltados exatamente porque estavam parados sem nada poderem fazer. Mais à frente, descobriu que o congestionamento era causado por uma blitz policial que fazia investigação da lei seca ou algo semelhante. Ele disse que não aguentou e foi falar para os policiais que por causa deles as pessoas estavam sendo assaltadas e acabou sendo admoestado por eles. Ou seja, a polícia que deveria dar segurança à população estava não só não exercendo sua função, como facilitando a vida dos meliantes.

Aliás, como já perguntei aqui nesta coluna: se uma pessoa anda pela rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente e não está cometendo nenhum delito e nem apresenta uma atitude suspeita, qual o fundamento para ela ser abordada por um policial? De onde ele extrai esse direito?


Não parece que as coisas estão fora do lugar? Pessoas de bem sendo abordadas a torto e a direito e, ao mesmo tempo, a violência e a insegurança correndo solta. E em todos os cantos do país.


Agora, proponho que pensemos uma questão mais macro. O da implementação, no Brasil dos últimos anos, de uma política econômica que se supunha de inclusão social das populações mais carentes. Lembro o pensamento da filósofa (ou cientista política, como ela preferia) Hannah Arendt a respeito da aquisição de direitos nas sociedades democráticas, capitalistas e de massa. Ela dizia que o primeiro direito a ser instituído é o "direito a ter direitos". Ela via que em muitas sociedades, milhares de pessoas não tinham um mínimo de direitos garantidos.


Pergunto: quais seriam esses direitos básicos a serem garantidos?


Como é muito grande o poder simbólico e real das sociedades de consumo atuais, houve uma espécie de sedução para o consumo: a política implementada permitiu que as pessoas que não tinham direitos básicos passassem a ser consumidoras. O Estado, ao invés de oferecer e garantir direitos sociais fundamentais tais como educação, moradia, saneamento básico, atendimento hospitalar etc., ampliou o acesso a bens de consumo. Muitas pessoas que não têm onde morar ou habitam favelas e cortiços e/ou não têm empregos regulares, possuem televisores de 40 polegadas, aparelhos celulares e iphones, micro-ondas ou geladeiras modernas, computadores e até automóveis adquiridos com financiamentos de muitos anos. 


Se Hannah Arendt fosse viva talvez constatasse que, nesses casos, deu-se um salto: às pessoas que não tinham direitos, ofereceram-se produtos de consumo. Elas continuam sem as garantias básicas, mas podem assistir à novela das oito numa tevê de plasma.


Pergunto novamente: não parece a você leitor que algo está fora de lugar?


Claro que, quando se fala em liberdade, há que haver uma garantia mínima para seu exercício. E daí, a presença do Estado é fundamental. De nada adianta "ser livre para dormir debaixo da ponte", como se diz. O exercício de liberdade começa na garantia mínima do direito a ter direitos. É preciso que sejam oferecidas condições para que todas as pessoas possam usufruir dos benefícios sociais e também se realizar como indivíduos, fazendo escolhas dentro de um quadro regular.


Não parece fácil e não é. Mas, pelo que se vê, nos tempos atuais, há um distanciamento muito grande entre Estado e sociedade; entre direitos estabelecidos constitucionalmente e a implementação de políticas que permitam sua eficácia. Não basta haver produção e consumo. É preciso também respeito aos direitos democraticamente estabelecidos e a criação de um espaço para que as pessoas, após beneficiarem-se de direitos sociais mínimos, decidam como e quando desejam ser consumidores.






*Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.



quinta-feira, 9 de abril de 2015

Nova súmula vinculante é aprovada pelo Plenário do STF






Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) aprovaram, na sessão plenária desta quinta-feira (9), mais uma Súmula Vinculante (SV) a partir da conversão do verbete 722 da Súmula do STF. A nova SV receberá o número 46 e teve a redação ligeiramente alterada em relação ao anterior, para que o texto ficasse na ordem direta e para que fosse enfatizada a natureza privativa da competência legislativa em questão. A Súmula Vinculante 46, resultante da Proposta de Súmula Vinculante (PSV) 106, terá a seguinte redação: “A definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são de competência legislativa privativa da União”.
Já a PSV 109, que sugeria a transformação da Súmula ordinária 730 do STF em súmula vinculante, foi rejeitada pelo Plenário. A Súmula 730, que continua em vigor, porém sem efeito vinculante, tem o seguinte teor: “A imunidade tributária conferida a instituições de assistência social sem fins lucrativos pelo art. 150, VI, "c", da Constituição, somente alcança as entidades fechadas de previdência social privada se não houver contribuição dos beneficiários”. O ministro Dias Toffoli manifestou-se contra a conversão da súmula em efeito vinculante neste momento. Seu voto foi seguido pelos ministros Marco Aurélio, Cármen Lúcia e Teori Zavascki.
O ministro Marco Aurélio afirmou que o dispositivo constitucional em questão não distingue as entidades de assistência social, se apenas são beneficiárias da imunidade aquelas que não contam com a contribuição dos beneficiários ou se todas as entidades. “Creio que é uma matéria sobre a qual devemos refletir um pouco mais e não chegar, portanto, à edição de verbete vinculante, já que estaríamos estabelecendo uma distinção não contida na alínea “c” do inciso VI do artigo 150 da Constituição Federal”, salientou. O ministro Dias Toffoli disse que é preciso ter parcimônia na edição de Súmulas Vinculantes, especialmente em matérias tributária e penal, diante das peculiaridades dos casos concretos que se apresentam.

Fonte: STF (link)


quarta-feira, 8 de abril de 2015

Adoção de adulto pelo padrasto dispensa consentimento de pai biológico

Fonte: STJ (link)

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a adoção de jovem maior de idade pelo padrasto, mesmo sem o consentimento do pai biológico. Segundo a decisão, uma vez estabelecido o vínculo afetivo, a adoção de pessoa maior não pode ser recusada sem justa causa pelo pai biológico, em especial quando existe manifestação livre de vontade de quem pretende adotar e de quem pode ser adotado.
No caso, um homem ajuizou ação de adoção de maior de idade combinada com destituição do vínculo paterno. Ele convive com a mãe do jovem desde 1993 e o cria desde os dois anos. Sem contato com o filho há mais de 12 anos, o pai biológico foi citado na ação e apresentou contestação.
O juiz de primeiro grau permitiu a adoção, considerando desnecessário o consentimento do pai biológico por se tratar de pessoa maior de idade, e determinou a troca do nome do adotando e o cancelamento do registro civil original.
A apelação do pai biológico foi negada em segunda instância, o que motivou o recurso ao STJ. Ele alegou violação do artigo 1.621 do Código Civil e do artigo 45 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pois seria indispensável para a adoção o consentimento de ambos os pais biológicos, mesmo quando um deles exerce sozinho o poder familiar.

Interesse do adotando

De acordo com o processo, o próprio pai biológico reconheceu que não tinha condições financeiras nem psicológicas para exercer seu direito de visitas e que preferiu permanecer afastado. O último contato pessoal ocorreu quando o filho tinha cerca de sete anos. Quando a ação de adoção foi proposta, ele estava com 19 anos.
O ministro Villas Bôas Cueva, relator do recurso, afirmou que o ECA deve ser interpretado sob o prisma do melhor interesse do adotando. “A despeito de o pai não ser um desconhecido completo, a realidade dos autos explicita que nunca desempenhou a função paternal, estando afastado do filho por mais de 12 anos, tempo suficiente para estremecer qualquer relação, permitindo o estreitamento de laços com o pai socioafetivo”, observou.
O ministro destacou que o direito discutido envolve a defesa de interesse individual e disponível de pessoa maior e plenamente capaz, que não depende do consentimento dos pais ou do representante legal para exercer sua autonomia de vontade. Nesse sentido, o ordenamento jurídico autoriza a adoção de maiores pela via judicial quando constituir efetivo benefício para o adotando (artigo 1.625 do Código Civil).



Improbidade administrativa: É possível aplicar somente pena de ressarcimento de danos em ação de improbidade

Fonte: STJ (link)

Ao julgar ação civil pública por ato de improbidade, o magistrado não é obrigado a aplicar cumulativamente as penalidades previstas no artigo 12 da Lei de Improbidade Administrativa – LIA (Lei 8.429/92). Assim, dependendo do caso, é possível a aplicação exclusiva da pena de ressarcimento integral e solidário dos danos causados aos cofres públicos.
A tese foi aplicada no julgamento de recurso da União, que pretendia a aplicação da pena de ressarcimento cumulada com multa e suspensão dos direitos políticos do ex-prefeito de Maetinga (BA) Enídio Vieira de Aguiar e de dois ex-secretários de Saúde do município.
Eles foram condenados por utilizar verbas do Programa de Atenção Básica no pagamento de folha de pessoal que não executava atividades do programa.
Os agentes públicos também foram condenados por uso indevido de recursos destinados à epidemiologia e ao controle de doenças na aquisição de sofá, colchão, travesseiro e telefone para a Secretaria de Saúde. Eles foram condenados solidariamente a devolver R$ 60 mil aos cofres do município.
Jurisprudência
Por maioria de votos, a Segunda Turma negou o recurso da União e manteve os termos da condenação. O relator, ministro Og Fernandes, afirmou que é possível a aplicação da pena de ressarcimento do dano de forma isolada, sem que se cogite de ofensa às finalidades previstas na LIA.
O ministro citou precedentes do STJ que admitem o ressarcimento do dano ao erário como condenação exclusiva por ato de improbidade.
Segundo o relator, o cabimento da ação de improbidade está relacionado com a tipologia descrita nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA, e não propriamente com a necessidade de aplicar em bloco as sanções do artigo 12, pois isso envolve a ponderação de valores a ser realizada caso a caso pelo magistrado, valendo-se da razoabilidade, proporcionalidade e finalidade social da lei.
Og Fernandes explicitou ainda que a Justiça Federal na Bahia aplicou a sanção de ressarcimento do dano ao erário, sem a necessidade de outras punições previstas no artigo 12 da LIA, a partir da análise das peculiaridades da conduta imputada aos agentes públicos envolvidos e das provas colhidas na demanda.
“Destacou-se, na oportunidade, que, embora a verba pública não tenha observado a destinação legal, a utilização da quantia deu-se em benefício do próprio município, o que justifica o temperamento da sanção que fora cominada”, explicou o ministro.
Acompanhando o voto do relator, a maioria dos ministros concordou que para rever essa conclusão seria necessário o reexame de provas, que é vedado pela Súmula 7 do STJ.



quarta-feira, 1 de abril de 2015

Um sonho sem restrições


Ricardo Cassiano

Especial do TRF da 1ª Região (link)

ESPECIAL: Um sonho sem restrições

O sonho de ser mãe tem levado milhares de mulheres a buscar métodos alternativos de fertilização. E para uma ampla maioria, as técnicas vêm funcionando bem. Estima-se que, em todo o mundo, mais de um milhão de crianças já vieram à luz por meio da reprodução humana assistida. À medida que os procedimentos evoluem, mais e mais pessoas enxergam, na ciência, a esperança de conquistar o bem mais almejado: uma nova “vida”.

Nessa trilha, contudo, candidatas a mamães encontram inúmeros desafios, que vão desde limitações financeiras e fatores genéticos até restrições impostas por lei. Nesse contexto, recaiu sobre a Justiça Federal da 1ª Região a análise de uma restritiva que afeta uma parcela expressiva da população feminina interessada nas técnicas alternativas de reprodução. Em decisão recente, a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), confirmou liminar garantindo que uma mulher com mais de 50 anos se submeta a tratamento para engravidar.

A limitação havia sido estabelecida dois anos atrás pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). A Resolução CFM 2.103/2013 estipulou a idade máxima para as pacientes, como forma de assegurar a saúde das mães e dos futuros bebês. No processo movido por um casal de Uberlândia/MG, no entanto, o impedimento foi derrubado liminarmente pela 1ª Vara Federal na cidade. O mérito da ação (pedido principal) ainda não foi julgado em primeira instância, mas o Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM/MG) recorreu ao TRF1 na tentativa de anular a liminar. O pedido acabou negado pela desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso.

Com a concessão da liminar, o casal está temporariamente autorizado a realizar o procedimento de fertilização in vitro – com a utilização de óvulos cedidos por um doador anônimo –, sem a interferência do CRM, que, de acordo com a Resolução 2.103, poderia intervir abrindo processo ético-disciplinar contra o médico.

Para o ex-diretor da Rede Latino-americana de Reprodução Assistida, Selmo Geber, a idade da paciente é um fator que não pode ser cegamente ignorado nos procedimentos de fertilização. Quanto mais velha, mais vulnerável a mulher ficará. E os riscos são maiores depois dos 50 anos. “Há um aumento no risco de pressão alta, diabetes e prematuridade”, aponta Geber. O médico, contudo, é ponderado ao afirmar que é baixa a incidência de complicações mais sérias, e que, assim como em mulheres jovens, a maioria dos casos podem ser acompanhados e tratados. Para ele, a fixação de idade máxima deveria ser apenas uma recomendação em vez de uma regra.

A Resolução do CFM prevê que apenas mulheres com boa condição de saúde, avaliadas individualmente pelos conselhos regionais de medicina, sejam autorizadas a se submeter às técnicas de reprodução assistida. Para a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso, a medida representa afronta à garantia de liberdade de planejamento familiar prevista no artigo 226 da Constituição Federal (regulada pela Lei 9.263/1996). “A generalização do limite etário estabelecido na Resolução, conquanto demonstre a preocupação do Conselho Federal de Medicina com riscos e problemas decorrentes da concepção tardia, desconsidera peculiaridades de cada indivíduo e não pode servir de obstáculo à fruição do direito ao planejamento familiar, a afetar, em última instância, a dignidade da pessoa humana”, pontuou a magistrada.

Na decisão que confirmou a liminar favorável ao casal de Uberlândia, a desembargadora também destacou o conteúdo do Enunciado 41, aprovado na I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em maio de 2014. O texto reforça a tese de que o limite de 50 anos contraria a liberdade de planejamento familiar.

Números

O impacto da Resolução 2.103 é sentido por uma parcela significativa das mulheres que buscam tratamento para engravidar. De acordo com dados do Registro Latino-americano de Reprodução Assistida (RLA), dos 47,3 mil procedimentos registrados na América Latina em 2012 – pesquisa mais recente –, 31% foram realizados em pacientes acima dos 40 anos de idade e 8% em mulheres com mais de 43 anos.

No Brasil, o mercado de produção e doação de embriões humanos para fertilização artificial ou para pesquisas com células-tronco é regulamentado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A Anvisa reconhece 93 clínicas em atividade no país, chamadas de Bancos de Células e Tecidos Germinativos (BCTGs). Juntas, as unidades somaram, em 2013, 52.690 transferências de embriões para pacientes por meio da fertilização in vitro – técnica mais comum. O dado consta do último relatório anual do Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio), divulgado em julho de 2014 pela Anvisa. A Região Sudestes lidera o ranking de embriões congelados, com 66% dos 38 mil embriões armazenados no país.

Nos últimos três anos, a reprodução assistida atingiu padrões internacionais no Brasil e, desde então, vem se mantendo nesse patamar. A média nacional de sucesso nos procedimentos foi de 74% em 2013, segundo o SisEmbrio. A taxa de fertilização sugerida na literatura internacional varia entre 65% e 75%. Para garantir a qualidade dos serviços prestados pelas clínicas, no entanto, a fiscalização é um fator essencial.  Na decisão contrária à limitação de idade imposta pelo CFM, a desembargadora Maria do Carmo Cardoso ressaltou a competência fiscalizatória, prevista em lei, dos conselhos regional e federal de medicina.

“Embora se deva afastar, in casu, a restrição etária para a reprodução assistida, a fiscalização das conclusões médicas decorrentes da avaliação clínica, da utilização da técnica e dos efeitos daí decorrentes – em relação à gestante e ao feto, se efetivamente concebido – permanecem na seara de atuação dos agravantes”, alertou a magistrada. Com bom planejamento, com a escolha certa da clínica médica e do tratamento mais adequado, e com o olhar atento das autoridades, a frustração de não poder gerar um filho de forma natural pode transformar-se na alegria de uma gestação saudável e tranquila. Mesmo depois dos 50 anos.



Assessoria de Comunicação Social
Tribunal Regional Federal da 1ª Região

Decisão STJ - Imóvel não substitui depósito em dinheiro na execução provisória por quantia certa

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