segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Chico Mendes, legado de coragem em defesa da floresta

 
Texto publicado originalmente no portal Agência Senado (link)

 
Filho de migrantes cearenses, Francisco Alves Mendes Filho nasceu em 1944 num lugar pobre e esquecido pelo poder público: Xapuri, uma região de seringal, no interior do Acre. Aprendeu a ler só por volta dos 19 anos de idade. E teve uma vida curta: morreu assassinado, aos 44 anos de idade. Mesmo assim, tornou-se conhecido internacionalmente, e nesta segunda-feira (16), a uma semana de se completarem 25 anos de sua morte, é lembrado com honras pelo Senado. O que o fez singular? Chico Mendes foi capaz de, com todas as limitações que o cercavam, fazer conhecida sua voz, arriscando a vida pela defesa dos trabalhadores extrativistas e da preservação da floresta amazônica.
 
Sua coragem e capacidade de articulação chamou a atenção do país e do mundo para a dura realidade de seu povo e para a grande ameaça de destruição, já naquela época, da Amazônia. Chico Mendes pagou com a vida para que o olhar do mundo se voltasse àquela região do país, alvo constante de interesses poderosos, para os quais a vida tradicional e a própria existência da floresta amazônica são apenas entraves ao lucro sem medida. Sua morte havia muito anunciada, por fim, deu ainda mais notoriedade a uma luta cuja importância vai muito além das fronteiras do Acre.
 
Em 22 de dezembro de 1988, uma semana após completar 44 anos, Chico Mendes foi assassinado com tiros de escopeta no peito, ao sair pela porta dos fundos de sua casa, em Xapuri. Passados 25 anos do crime que comoveu o país, o nome do seringalista e ativista ambiental permanece como símbolo da luta pela preservação das florestas e em alternativas sustentáveis de aproveitamento de seus recursos em favor dos povos nativos.
 
Sob sua liderança, a luta dos seringueiros pela preservação do seu modo de vida adquiriu grande repercussão mundial. Ele atuou na organização de sindicatos e na fundação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS). Entendeu, no entanto, que a defesa da Floresta Amazônica dependia de união mais ampla dos povos cuja sobrevivência está associada às florestas. Por isso, já em 1985, participou da proposta da União dos Povos da Floresta.
 
O objetivo da aliança era unir os interesses de indígenas, seringueiros, castanheiros, pequenos pescadores e populações ribeirinhas, entre outros povos tradicionais. Buscou convencer o governo federal e as administrações estaduais a criar reservas para a colheita não predatória de produtos como látex, a castanha do Pará e o coco do babaçu. Além de contribuir para a preservação das áreas indígenas e da floresta, essas reservas extrativistas seriam também um instrumento de reforma agrária.
 
Atuando desde antes na luta pela posse da terra contra os grandes proprietários, numa região marcada por irregularidades fundiárias, Chico Mendes já vinha em conflito com os donos de madeireiras, de seringais e de fazendas de gado. Sem se dobrar, ele liderou os famosos “empates”, uma forma de luta não violenta, na qual os seringueiros se dirigiam às áreas que seriam desmatadas, impedindo a destruição. Felizmente, Chico Mendes chegou a assistir a criação das primeiras reservas extrativistas em seu estado.
 
Também garantiu a desapropriação do Seringal Cachoeira, do fazendeiro Darly Alves da Silva, em Xapuri. A partir de então as ameaças de morte se tornaram mais constantes. Chico denunciou a situação às autoridades, indicou nomes e pediu proteção. A essa altura, já com largo trânsito no exterior, ele foi convidado a levar as denúncias ao Congresso americano. Mesmo assim, nada foi feito pelas autoridades de seu estado.
 
Casado com Ilzamar e pai de dois filhos, Sandino e Elenira, Chico Mendes não teve chance de escapar da emboscada armada contra ele em 1988. A Justiça condenou Darly Alves da Silva, como mandante, e seu filho, Darci Alves Pereira, como executor. Depois de fugirem da prisão e serem recapturados, eles finalmente cumpriram a pena de 19 anos de cadeia.
 
Pouco mais de dois anos depois de sua morte, foi criada a primeira reserva extrativista federal, a Reserva Chico Mendes. Identificadas como Resex, essas unidades de conservação já chegam hoje a 59 e somam mais de 12 milhões de hectares. As populações que nelas vivem têm contrato de concessão de direito real de uso, tendo em vista que a área é de domínio público.
 
O líder ambientalista dá nome, hoje, ao Instituto Chico Mendes de Preservação de Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. O órgão foi criado durante o primeiro mandato de Luís Inácio Lula da Silva, na gestão de Marina Silva à frente do Ministério do Meio Ambiente. Enquanto, nos anos 80, Lula deu apoio a Chico Mendes na articulação de seu movimento sindical, Marina, também do Acre, deu seus primeiros passos na defesa do meio ambiente sob a liderança do líder seringueiro.
 
O ICMBio integra o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e a ele cabe executar as ações do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, podendo propor, implantar, gerir, proteger, fiscalizar e monitorar as Unidades de Conservação instituídas pela União.
 
O legado de Chico Mendes, porém, vai muito além. Tornou-se referência persistente, por vezes incômoda até, para a consciência ambiental do país. E inspiração para a nem sempre vencedora luta pela preservação dos ativos ambientais do Brasil.
 
 
 
 
 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

STF: Nulidade de acórdão por ausência de fundamentação específica tem repercussão geral


O Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a existência repercussão geral no tema tratado no Recurso Extraordinário (RE) 719870, em que se discute a validade de acórdão por ausência de fundamentação sobre ponto relevante para a análise de constitucionalidade de norma impugnada por meio de ação direta de inconstitucionalidade estadual. No caso dos autos, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MP-MG) questiona decisão do Tribunal de Justiça mineiro que declarou a constitucionalidade de três leis de Além Paraíba (MG) que criaram cargos em comissão no âmbito daquela municipalidade.

A Corte Especial do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJ-MG) assentou a constitucionalidade das Leis municipais 2.604/2008, 2.186/2003 e 2.079/2001. No entendimento do colegiado, aos cargos em comissão por elas criados corresponderiam funções de chefia, direção e assessoramento, motivo pelo qual não haveria ofensa aos artigos 21, parágrafo 1º, e 23 da Constituição estadual. Aquela corte apontou ainda a necessidade de análise de questão fática, bem como de matéria legal, para verificação da correspondência entre os cargos criados e as suas atribuições.


RE


No RE interposto ao Supremo, o MP mineiro alega inicialmente omissão do TJ-MG que, mesmo após a interposição de embargos de declaração, não teria analisado todas as questão apresentadas, o que afrontaria o artigo 93, inciso IX, da CF, que trata da necessidade de fundamentação das decisões judiciais.

No mérito, o MP-MG aponta violação ao artigo 37, incisos II e V, da Constituição Federal, uma vez que os cargos criados pelos diplomas legais questionados seriam de caráter meramente técnico, e as atividades atinentes a eles não possuiriam vínculo de confiança inerente às funções de chefia e assessoramento. O MP afirma, também, que o STF tem entendimento pacífico no sentido da impossibilidade de criação de cargos em comissão para o exercício de funções técnicas e operacionais.

Ainda conforme o recorrente, o legislador municipal de Além Paraíba não especificou as atividades concernentes a vários dos cargos instituídos pelas mencionadas leis. Aponta, ainda, entre as omissões do TJ-MG, que o voto condutor do julgamento não se teria manifestado sobre o fato de apenas 4 dos 114 cargos de provimento em comissão criados pelas leis impugnadas possuírem as atribuições descritas nos preceitos por ele atacados.

Repercussão

O relator do recurso no STF, ministro Marco Aurélio, ao se manifestar pela repercussão geral da matéria, lembrou que o TJ-MG decidiu que todos os cargos indicados nas normas trazem atividades de chefia, assessoramento e coordenação (direção). Assim, segundo o TJ, não se constataria a incompatibilidade com o texto constitucional.

Conforme destacou o relator, o MP-MG apresentou embargos de declaração buscando ver explicitado pelo tribunal estadual o que está previsto na legislação quanto aos cargos, para a indispensável definição de enquadramento, ou não, na exceção ao concurso público. Contudo os embargos foram desprovidos.

“A persistir o quadro, estará inviabilizado o acesso ao Supremo, brecando o tribunal de origem o exame cabível”, destacou o ministro. Em sua manifestação, o ministro Marco Aurélio destacou que o acórdão da corte mineira inviabilizou o acesso ao STF, violando “norma comezinha alusiva ao devido processo legal”.

Ao reconhecer a repercussão geral do tema, a manifestação foi seguida, por maioria, por deliberação no Plenário Virtual da Corte.


Fonte: Portal STF (link)
Processos relacionados
RE 719870
 
 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Julgado destaque (Inf. 712/STF): Manifestações em vias e logradouros públicos



 (Transcrições)

Rcl 15887/MG*
RELATOR: Min. Luiz Fux

DECISÃO: Trata-se de reclamação, aparelhada com pedido liminar, ajuizada pelo Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais - SIND-UTE, em face de ato do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que teria supostamente desafiado a autoridade da decisão proferida por esta Suprema Corte nos autos da ADI nº 1.969-4/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski.

Em síntese, aduz que a decisão reclamada, ao determinar liminarmente que o Reclamante se abstivesse de realizar manifestações em vias e logradouros públicos em qualquer parte do território estadual (Ação Cautelar nº 1.0000.13.041148-1/000 ajuizada pelo Estado de Minas Gerais), restringiu substancialmente o conteúdo do direito fundamental de livre manifestação do pensamento (CRFB/88, art. 5º, IV) e de reunião (CRFB/88, art. 5º, XVI), nos balizamentos feitos pela Corte na ADI nº 1.969-4/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski. Ademais, assevera que o acórdão paradigma assentou que as limitações ao direito de reunião somente poderiam ser veiculadas por lei em sentido formal, e desde que observado o núcleo intangível do aludido direito fundamental, o que in casu não teria ocorrido. Afirma, ainda, que a decisão judicial nega vigência ao direito de reunião e de manifestação de pensamento, restabelecendo os ideais autoritários do regime militar.

É o relatório suficiente. Decido.

In casu, articula o Reclamante que o decisum reclamado, ao interditar liminarmente manifestações em vias e logradouros públicos dentro do Estado de Minas Gerais, desafiou a autoridade do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI nº 1.969/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski.

Antes, porém, de examinar se houve o desrespeito ao acórdão apontado como paradigma, é preciso verificar se estão presentes os pressupostos para o cabimento da reclamação.

A Reclamação, por expressa determinação constitucional, destina-se a preservar a competência desta Suprema Corte e garantir a autoridade de suas decisões, ex vi do art. 102, I, alínea l, além de salvaguardar o estrito cumprimento das súmulas vinculantes, nos termos do art. 103-A, § 3º, da Constituição da República, incluído pela EC nº 45/2004. Neste particular, reconheço que a jurisprudência desta Suprema Corte estabeleceu diversos condicionantes para a utilização da via reclamatória, de sorte a evitar o uso promíscuo do referido instrumento processual. Disso resulta (i) a impossibilidade de utilizar per saltum a Reclamação, suprimindo graus de jurisdição, (ii) a impossibilidade de se proceder a um elastério hermenêutico da competência desta Corte, por estarem definidas em um rol numerus clausus, e, ao que interessa ao presente caso, (iii) a observância da estrita aderência da controvérsia contida no ato reclamado e o conteúdo dos acórdãos desta Suprema Corte apontados como paradigma. E, no caso vertente, existe tal similitude, uma vez que, tanto no ato reclamado quanto no acórdão paradigma, a discussão gravita em torno da possibilidade de se proceder a restrições ao conteúdo da liberdade de reunião e de expressão em logradouros públicos, razão por que vislumbro a indispensável identidade material entre a questão de fundo debatida no caso vertente e àquela travada nos autos da ADI nº 1.969/DF.

Conheço, pois, da reclamação e passo ao exame liminar de mérito.

No caso sub examine, a controvérsia travada nestes autos versa suposta ofensa ao conteúdo essencial do direito de reunião e de livre manifestação do pensamento (CRFB/88, art. 5º, XVI e IV, respectivamente), na medida em que o decisum reclamado teria interditado, em sede liminar, manifestações em vias e logradouros públicos dentro do Estado de Minas Gerais pelo ora Reclamante. Em sua decisão, o Desembargador do TJ/MG Barros Levenhagem ressaltou o caráter relativo do direito de reunião, cujo exercício encontrar-se-ia limitado pela liberdade de locomoção (CRFB/88, art. 5º, XV), pelo dever do Estado de prover segurança a toda a coletividade (CRFB/88, art. 144), pela restrição imposta ao direito de greve (Lei nº 7.783/89, art. 6º, § 1º) e pela necessidade de se observar a política urbana (Estatuto das Cidades, art. 2º). E, ao proceder a tal restrição, o Desembargador se distanciou dos balizamentos fixados por esta Suprema Corte na ADI nº 1.969/DF. Senão vejamos.

No acórdão paradigma da ADI nº 1.969/DF, a Corte foi instada a se pronunciar acerca da constitucionalidade de norma distrital (Decreto nº 20.098/99), que proscrevia a realização de manifestações públicas, com a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios e Praça do Buriti. Naquela assentada, o Tribunal julgou procedente o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade de norma asseverando que a restrição estabelecida ao direito de reunião não se compatibilizava com o postulado da proporcionalidade e seus subprincípios (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Imperioso, neste ponto, trazer à colação excerto do voto do eminente relator Min. Ricardo Lewandowski, acolhido à unanimidade, que categoricamente afirmou 

“o Decreto distrital 20.098/99 simplesmente inviabiliza a liberdade de reunião e de manifestação, logo na Capital Federal, em especial na emblemática Praça dos Três Poderes, local aberto ao público, que, na concepção do genial arquiteto que a esboçou, constitui verdadeiro símbolo de liberdade e cidadania do povo brasileiro. Proibir a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros, nesse e em outros espaços públicos que o Decreto vergastado discrimina, inviabilizaria por completo a livre expressão do pensamento nas reuniões levadas a efeito nesses locais, porque as tornaria emudecidas, sem qualquer eficácia para os propósitos pretendidos. (…) Ademais, analisando-se a questão sob uma ótica pragmática, cumpre considerar que as reuniões devem ser, segundo a dicção constitucional, previamente comunicadas às autoridades competentes, que haverão de organizá-las de modo a não inviabilizar o fluxo de pessoas e veículos pelas vias públicas. Há que se ter em conta, por outro lado, que a utilização aparelhos de som nas reuniões, que são limitadas no tempo, certamente não causará prejuízo irreparável àqueles que estão nas imediações da manifestação. (…) A restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda a evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung), que é, no presente caso, a permitir que todos os cidadãos possam reunir-se pacificamente para fins lícitos, expressando as suas opiniões livremente. Não vejo, portanto, à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, e em face do próprio texto da Carta Magna, como considerar hígida, do ponto de vista constitucional, a vedação a manifestações públicas que utilizem com a utilização de carros, aparelhos ou objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios, Praça do Buriti e vias adjacentes.”.

Com efeito, a identidade material reside precisamente no fato de que tanto a decisão reclamada quanto o acórdão paradigma cuidam da constitucionalidade da proibição ao exercício do direito de reunião e de livre manifestação de pensamento em espaços públicos que, por suas características sociais e históricas, permitam a maior propagação das ideias e opiniões manifestadas pelos diversos segmentos da sociedade civil.

Trata-se daquilo que o direito norteamericano intitulou como doutrina dos fóruns públicos (public-forum doctrine), segundo a qual uma sociedade livre deve criar uma plêiade de espaços nos quais se assegure, àqueles indivíduos que desejam se expressar, o direito de ter acesso aos lugares necessários para permitir a difusão da sua opinião entre as pessoas, notadamente aquelas áreas onde muitas delas se encontram (SUNSTEIN, Cass. Republic.com 2.0. New Jersey: Princeton University Press, 2007. p. 22-23).

Mas não é só. O direito de reunião consubstancia um componente indispensável à vida das pessoas e à própria existência de um substancial Estado Democrático de Direito. Conquanto a reunião de indivíduos em torno de determinados fins sociais tenha sempre existido no curso da história, é praticamente um consenso, como bem assinala o filósofo político canadense Will Kimlicka, que a vida associativa nos dias atuais encontra um solo fértil para as virtudes cívicas, ao mesmo tempo em que propicia uma base de sustentação para a construção de uma ordem democrática viável (KYMLICKA, Will.
Ethnic Associations and Democratic Citizenship. In: GUTMANN, Amy: Freedom of Association. New Jersey: Princeton University, 1998, p. 177). Nesse cenário, a liberdade de reunião se apresenta como uma das liberdades básicas dos indivíduos, na formulação do filósofo John Rawls (RAWLS, John. As liberdades fundamentais e suas prioridades. In: Liberalismo Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 347). Trata-se, à evidência, de um direito moral, que deve ser reconhecido e protegido, independentemente de juízos morais meramente contingentes ou majoritários em uma determinada comunidade. Justamente por isso, sob um enfoque filosófico, a liberdade de reunião ostenta um status especial, um “peso absoluto”, com relação a razões de bem público, de cariz tipicamente utilitaristas, e a valores perfeccionistas, incompatíveis com o pluralismo existente nas sociedades contemporâneas. Com isso não se pretende afirmar que, sob o prisma jurídico-constitucional, o direito de reunião revista-se de caráter absoluto. Ao revés: o seu exercício pode encontrar-se limitado em virtude da colisão com o conteúdo de outros bens jurídicos de mesma estatura constitucional. Na realidade, o próprio constituinte originário previu expressamente uma restrição ao exercício do direito de reunião, quando decretado o Estado de Defesa (CRFB/88, art. 136, § 1º, I, alínea b).

É inegável, entretanto, a virtude cívica de movimentos sociais espontâneos que conclamem a participação ativa dos cidadãos na vida pública, de sorte a estimular a reflexão acerca de temas caros à ordem jurídica, política e econômica nacional. A democracia, longe de exercitar-se apenas e tão somente nas urnas, durante os pleitos eleitorais, pode e deve ser vivida contínua e ativamente pelo povo, por meio do debate, da crítica e da manifestação em torno de objetivos comuns.

Neste contexto, precisamente adverte o laureado economista indiano Amartya Sen que um grande número de ditadores no mundo tem conseguido gigantescas vitórias eleitorais, mesmo sem coerção evidente sobre o processo de votação, principalmente suprimindo a discussão pública e a liberdade de informação (SEN, Amartya. A ideia de justiça. Trad. Denise Bottman e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 361), o que evidencia o liame indissociável entre a liberdade de expressão e a democracia. Considerando todos os benefícios sociais da argumentação pública, Amartya Sen comprova suas premissas com a constatação de que “nunca houve uma grande ocorrência de fome coletiva em uma democracia com eleições regulares, partidos de oposição, liberdade básica de expressão e uma imprensa relativamente livre (mesmo no caso de países muito pobres e em situação alimentar seriamente adversa)”, sendo de rigor admitir, desse modo, que “as liberdades políticas e os direitos democráticos estão entre os ‘componentes constitutivos’ do desenvolvimento” (op. cit. p. 376 e 381).

Certo é que para a existência de uma democracia robusta este debate não pode cingir-se apenas aos mecanismos governamentais de captação da vontade popular, máxime quando a própria eficácia desses instrumentos é contestada no seio da sociedade. É preciso abrir os canais de participação popular para que os rumos da nação não sejam definidos exclusivamente ao talante dos governantes eleitos, estimulando que os destinatários das prestações estatais sejam co-partícipes da formação da vontade política. No plano filosófico, Frederick Schauer nos recorda que a liberdade de expressão é protegida por ser o meio, por excelência, de chegar-se à verdade. O autor assenta a completa inaptidão do Governo para selecionar o que se deve entender por verdade, sendo que a obtenção desta somente é possível pelo mercado livre de ideias, qualificado pela livre troca de opiniões, pela liberdade de informação e pela liberdade de crítica (SCHAUER, Frederick. Free Speech: A Philosophical Enquiry. Cambridge University Press, 1982. p. 15-34).

O aumento dessa participação cívica, com uma intensa rede de interação entre os diferentes segmentos representativos da sociedade civil, estimula a produção do cognominado “capital social”, formulado inicialmente por James Colmen e difundido na obra do cientista político de Harvard Robert Putnam (COLEMAN, James S. Social Capital in the Creation of Human Capital.
American Journal of Sociology (Supplement), Vol. 94, 1988, p. S100-S101; PUTNAM, Robert. Bowling Alone: America’s Declining Social Capital. Journal of Democracy, Vol 6, nº 1, January, 1995), indispensável para o adequado funcionamento e manutenção da estabilidade das instituições democráticas. O “capital social” é caracterizado pela confiança que os membros de um grupo demonstram em seus pares, o que aumenta as chances de realizarem seus projetos quando comparados a um grupo que careça desse grau de confiabilidade recíproca.

Deve-se valorizar, neste diapasão, a potencialidade democrática que as novas tecnologias representam para a formação do capital social, permitindo a formação de relações de confiança entre pessoas de diferentes lugares, crenças e inclinações políticas. Por meio da internet, a fronteira da tradicional dicotomia entre esquerda e direita se dilui para que a sociedade siga em frente, rumo à era da consciência social, do respeito aos direitos fundamentais, do desenvolvimento econômico responsável, sempre tendo como base e pressuposto a moralidade na gestão da coisa pública.

No caso sub examine, a insatisfação popular com as questões centrais da vida pública, inicialmente veiculada apenas em redes sociais na internet – e que, por isso, já permeava o debate público em um espaço no qual não podia ser notada fisicamente –, tomou corpo e se transmudou em passeatas propositalmente realizadas em locais de grande significação e especial simbolismo, onde essas vozes, antes ocultas, podem ser percebidas com clareza pelos seus alvos, mercê de contribuírem para a edificação de um ambiente patriótico de reflexão sobre os rumos da nação. Além disso, é fato público e notório a anuência dos poderes constituídos ao movimento popular observado nas ruas, de manifestações em prol da democracia, da probidade e do bom emprego dos recursos públicos. A imprensa escrita e falada dá notícia das declarações de autoridades governamentais exaltando e chancelando o caráter legítimo e democrático de tais protestos, desde que sem vandalismo e depredação do patrimônio público e privado.

Cass Sunstein, referindo-se especificamente à liberdade de expressão oriunda da rede mundial de computadores, fecunda e própria da modernidade, como sói ocorrer atualmente no Brasil, deixa claro que esse direito não é absoluto, de modo que o Estado tem não apenas o poder, mas o dever de coibir excessos nocivos à vida social e que podem comprometer o próprio exercício, independente e informado, da livre manifestação. Nas palavras do professor de Harvard, uma infrutífera e reprovável tentativa de solicitar a alguém o cometimento de um crime, por exemplo, continua sendo uma incitação criminosa, ainda que se tente justificá-la com base em ideais democráticos (SUNSTEIN, Cass. Republic.com 2.0. New Jersey: Princeton University Press, 2007. pp. 175- 177).

Nesse mesmo campo, o Reitor da Yale Law School, Prof. Robert Post, divide a “palavra” e a “ação” para a definição do conteúdo da liberdade de expressão. Enquanto que um discurso proferido em uma multidão reunida em praça pública se enquadra na categoria “palavra”, quebrar uma vidraça com um tijolo é uma “ação”. Ambas as categorias de manifestações não são protegidas de maneira plena pela referida garantia constitucional. A liberdade de expressão, em ambos os casos, deve ser protegida apenas enquanto meio para a comunicação de ideias – a palavra não é acobertada pela garantia constitucional para veicular, por exemplo, um discurso de ódio. Mais ainda, não se pode admitir a barbárie a pretexto de transmitir uma mensagem ou proposta. Assim, ainda que alguém atire um tijolo contra uma vidraça para expressar que não concorda com certo ponto de vista ou atitude do proprietário do bem, e por mais clara que seja a mensagem retratada em tal ação, não é possível invocar a liberdade de expressão para excluir a prevenção e a repressão, civil e penal, contra o vandalismo (POST, Robert.
Democracy, Expertise, and Academic Freedom. A First Amendment Jurisprudence for the Modern State. New Haven: Yale University Press, 2012. p. 2).

Ademais, ressoa absolutamente contraditório protestar contra a malversação de recursos públicos por meio da depredação de prédios e bens custeados e mantidos por toda a sociedade. Esse tipo de conduta não deve ser tolerada, seja pelo seu caráter violento, seja porque não é capaz de transmitir qualquer tipo de mensagem útil ao debate democrático.

Presente o fumus boni iuris quanto à liceidade das passeatas ordeiras, o periculum in mora se evidencia pelo fato de que manifestações têm sido realizadas diariamente em diversas cidades do país, de modo que a manutenção da eficácia da decisão impugnada tolhe injustificadamente o exercício do direito de reunião e de manifestação do pensamento por aqueles afetados pela ordem judicial, contrariando o quanto estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 1.969/DF.

Ex positis, concedo a liminar, cassando a decisão reclamada, nos termos do art. 21, V, do RISTF, porquanto consideradas legítimas as manifestações populares realizadas sem vandalismo, preservado o poder de polícia estatal na repressão de eventuais abusos.

Publique-se. Int..
Brasília, 19 de junho de 2013

Ministro LUIZ FUX
Relator

*decisão publicada no DJe de 24.6.2013.



Jurisprudência STF: Processo civil - Nulidades. Administrativo - Concurso - Nota de Corte - Expectativa de Direito.




MS N. 28.651-DF e MS 28.666-DF
RED. P/ O ACÓRDÃO: MIN. MARCO AURÉLIO

NULIDADE – MÉRITO – AUSÊNCIA DE DECLARAÇÃO. Consoante dispõe o artigo 249 do Código de Processo Civil, presente a utilidade dos pronunciamentos judiciais, cabe afastar a declaração de nulidade se for possível decidir sobre o mérito a favor da parte a quem aproveitaria.
NULIDADE – ARTIGO 249 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – AUSÊNCIA DE DECLARAÇÃO. O Colegiado pode considerar a disciplina própria à nulidade, prevista no referido preceito, partindo para a concepção primeira da procedência ou improcedência do que pleiteado quanto ao mérito.
CONCURSO PÚBLICO – NOTA DE CORTE – ELEVAÇÃO. Fica longe de implicar ilegalidade a elevação da nota de corte, visando a passagem para outra fase do concurso, quando, observada a primitiva, resta grande número de vagas, concorrendo os candidatos em igualdade de condições. Óptica robustecida pelo aproveitamento imediato daqueles situados no patamar inicialmente formalizado, não sendo viável sequer a alegação de prejuízo indireto ante o critério de classificação.
EXPECTATIVA DE DIREITO – PROTEÇÃO – AUSÊNCIA. A ordem jurídica não protege simples expectativa de direito no que poderiam evocá-lo futuros candidatos a preencherem cargos em novo concurso público.

(Ementa transcrita no Informativo 712 do STF e noticiada no Informativo 643).





Jurisprudência STF: Concurso público - Comprovação de habilitação.





AG. REG. NO ARE N. 728.049-RJ
RELATOR: MIN.
GILMAR MENDES
Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Concurso público. 3. Comprovação de habilitação. Momento da posse. Exigência de apresentação de diploma e registro no órgão de classe competente após a conclusão do curso de formação que, no caso, consiste em etapa do referido concurso. 3. Precedentes da Corte. 4. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.


(Fonte: STF – Informativo 712, composto por publicações extraída do DJE 24 de junho a 1º de julho de 2013).





segunda-feira, 19 de agosto de 2013

"Função do colegiado é justamente promover o dissenso", por Damares Medina.



E se fosse chicana?

Função do colegiado é justamente promover o dissenso



Por Damares Medina*
Artigo publicado originalmente no Conjur em 18/08/2013.

“O processo não é somente ciência do direito processual, não é somente técnica de sua aplicação prática, senão que é também leal observância das regras do jogo, é dizer, fidelidade aos cânones não escritos de correção profissional que marcam o limite entre a elegante e meritória mestria do esgrimista perfeito e as torpes arteirices do fulheiro”.[1]

O segundo dia do julgamento dos recursos dos réus do mensalão (como ficou popularmente conhecida a Ação Penal 470) foi marcado por desentendimentos entre os ministros relator e revisor, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, respectivamente, do Supremo Tribunal Federal. Para o ministro Joaquim Barbosa a sessão se delongara demais e o ministro Lewandowski estaria a fazer chicana ao votar. O fato não é inédito, já no julgamento do mérito da AP 470, revisor e relator desentenderam-se a ponto de o então presidente do STF, ministro Ayres Britto, assegurar “o direito de prosseguir no livre exercício de seu voto” ao ministro Lewandowski.

De lá, para cá, mudaram a fase processual (trata-se de recurso e da última chance de revisão do julgamento) e a função do relator (o ministro Joaquim Barbosa é, ao mesmo tempo, relator e presidente do tribunal, o que lhe permitiu encerrar imediatamente a sessão em razão do desentendimento).

Uma leitura institucional remete-nos a algumas questões relevantes como a razão de ser dos órgãos colegiados, o papel do dissenso, os papéis do revisor, do relator e do presidente, os embargos nas ações penais originárias do STF e o direito de decidir do juiz.

Todo órgão judicial revisional deve ser colegiado. A função do colégio não é outra senão promover o dissenso, a discordância, a divergência, caso contrário, não seria preciso mais de um. No popular: ‘duas cabeças pensam melhor que uma’. Muito antes de a filosofia destacar a função da antítese no aperfeiçoamento das reflexões e do pensamento filosófico (seja a partir da dialética hegeliana, da alteridade kantiana ou do consenso habermasiano), a teoria darwiniana já apoiava evolução das espécies na diversidade, na contradição, no dissenso. Até o senso comum denuncia: ‘toda unanimidade é burra’.

É por amor ao dissenso que os órgãos colegiados não podem ter um número par de membros. Desde Minerva, havendo o empate, o presidente deverá ser o fiel da balança. No STF, ao contrário de Minerva (que votou exclusivamente em função do empate), o presidente sempre vota, e, no caso de empate, poderá votar em dobro, um verdadeiro voto de qualidade (que foi exercido uma vez pelo ministro Cezar Peluso, então presidente, por ocasião do processo que ficou conhecido como Ficha Limpa, nos Embargos de Declaração interpostos pelo senador Jader Barbalho).

O exercício dialético recomenda: se para alguns a sessão se delongara, para quem está ou poderá um dia se vir na situação de réu, com a sua liberdade ameaçada, com certeza não há demora. Afinal, o jogo só acaba quando a última decisão transitar em julgado. O que parece chicana a uns, para outros pode ser a mais genuína pedra de salvação. Esse é o papel fundamental do contraditório, seja ele entre as partes, seja ele entre os pares, ministros do STF. Sem o contraditório em sua mais ampla acepção, não existe processo válido, e sem o processo válido não se alcança a Justiça.

A função do revisor ancora-se na imprescindibilidade da antítese e do dissenso para o aperfeiçoamento dos julgamentos penais. O revisor deve atuar como antítese do relator, de forma a alcançar o mais aperfeiçoado resultado, essa é sua função institucional. O exercício do voto revisional deve ser assegurado livre de quaisquer tipos de censura, pressões ou coações, sob pena de mácula ao devido processo legal, um direito e garantia fundamental de todos nós cidadãos. O presidente do tribunal tem o dever de assegurar aos seus pares o livre exercício do direito de voto. Por isso a acumulação das funções de relator e presidente, pelo ministro Joaquim Barbosa, mereceu repúdio dos defensores dos réus, haja vista a evidente concentração de poder que pode desequilibrar o jogo processual.

Essa problemática torna-se ainda mais sensível nos casos de competência originária do STF, órgão de cúpula do Poder Judiciário. Se, de um lado, os réus do mensalão possuem direito a foro privilegiado, de outro, eles perdem o direito ao duplo grau de jurisdição. O STF é, ao mesmo tempo, julgador e revisor. O julgamento dos embargos é a única e última oportunidade de revisão da decisão, seja mediante a correção de erros, omissões ou contradições, ou mediante a revisão do entendimento. Ainda que essa revisão signifique uma volta atrás. Trata-se última chance de os réus verem sua liberdade salvaguardada.

Dir-se-á que os embargos não se prestam a efeitos infringentes. Com toda láurea devida ao dissenso (unânime, majoritário ou não), no caso das ações penais originárias do STF, os embargos funcionam como um duplo grau, se não de jurisdição, pelo menos de julgamento. Está na constituição que todos merecem uma segunda chance, por que não os “mensaleiros”?

Ao fim, mas não menos importante, a decisão do juiz é a culminância do processo judicial e o ápice da Jurisdição, o poder do Estado de dar o Direito. Ao decidir o juiz está investido do Estado, sendo ele próprio o Estado. Todo juiz tem o direito e o dever de decidir, divergir e corrigir a sua decisão sem nenhum tipo de hostilização (seja do presidente, dos pares, seja pela delonga ou até mesmo pela inverosimilhança dos argumentos). Mais do que princípio constitucional, o livre convencimento do juiz é um dos pilares da construção do Brasil democrático. É um direito do ministro, do réu e de seu advogado. É um direito de todos nós advogados e de todos nós cidadãos! Por isso, para que o dissenso não desborde em desentendimento, é sempre bom lembrar que o Supremo Tribunal constrói mais do que Justiça, constrói o Brasil.





[1] CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 1999, v. 3, p. 229.



*Damares Medina é advogada especializada em contencioso constitucional, mestre e doutoranda em Direito e professora de Direito Constitucional. Autora do livro "Amicus Curiae, Amigo da Corte ou Amigo da Parte".


Revista Consultor Jurídico, 18 de agosto de 2013.

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