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terça-feira, 25 de setembro de 2012

38 anos de espera: prestação jurisdicional eficiente e eficaz?

Giselle Borges

Algo que de tão corriqueiro não deveria me espantar, mas como cidadã que lida diretamente com o Judiciário brasileiro e que ainda tem esperança de uma transformação (mesmo gradual), não deixo de demonstrar uma certa indignação com o nosso "acesso à justiça".

O que me trouxe a escrever hoje foi a notícia publicada no site do Conselho Federal da OAB, no dia 24/09/2012, que segue abaixo para uma leitura crítica:


Aposentado teve de esperar 38 anos para receber precatório no ES



Vitória (ES) -Aos 68 anos de idade, o aposentado José Nascimento realizou um sonho: adquiriu uma casa própria. Ele pagava aluguel por uma residência na Vila Capixaba, em Cariacica/ES, e comprou um imóvel no bairro Eldorado, na região de Vila Bethânia, em Viana, para onde vai se mudar em breve.
“Seu” José Nascimento levou 38 anos para receber um precatório do estado do Espírito Santo. “Fiquei todo esse tempo falando com minha esposa e meus filhos que, quando recebesse o dinheiro, iria comprar uma casinha para gente morar. É o fim do aluguel”, comentou o aposentado.
O sonho começou a ser realizado em 24 de maio deste ano, quando ele e um grupo de mais de 100 pessoas compareceram ao Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJ-ES) e, em uma cerimônia feita pelo presidente do TJES, desembargador Pedro Valls Feu Rosa, receberam os alvarás para sacar no banco o dinheiro do precatório.
“Estou cumprindo a promessa que fiz à minha família. Paguei R$ 25 mil pela casa nova e logo estaremos dentro dela”, disse José Nascimento.
Ele foi servidor público municipal por 28 anos. Entrou na Prefeitura de Viana em 1º de julho de 1969 e se aposentou em abril de 1997. Casado, pai de três filhos e com quatro netos, “Seu” José Nascimento visitou o TJ-ES na segunda-feira da semana passada: “Vim mais uma vez agradecer ao Judiciário o esforço que fez para que todos nós pudéssemos receber nosso precatório”. (Com informações do TJ-ES)
(link para a notícia aqui)


Após a leitura, não pude deixar de fazer as seguintes inferências:
- Há 26 anos se fala em "instrumentalidade do processo" (Dinamarco).
- Há mais de 20 anos se fala em efetividade e celeridade da tramitação processual.
- E mesmo depois de tantos estudos e garantias, um senhor demora 38 anos para receber seu crédito no Espírito Santo.



O pior de tudo é saber que este não é um caso isolado e que muitos outros jurisdicionados estão na mesma situação.

As perguntas que tanto me faço são: (1) "Quando teoria e prática andarão juntas?"; (2) "Quando o sentido de 'justiça' passará pelos conceitos de 'prestação jurisdicional eficiente e eficaz'?

Parece cômico, se não fosse trágico. Pela notícia houve até comemoração no TJES quando finalmente este senhor pode receber o seu crédito.

Um aniversário de quase quatro décadas de espera. Será que devo parabenizar a Fazenda Pública e  o Judiciário nacional?





quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

OS DESAFIOS PARA A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL EFICAZ

GISELLE BORGES ALVES

“Ousar sem o açodamento de quem quer afrontar, inovar sem desprezar os grandes pilares do sistema.” 
                         (Cândido Rangel Dinamarco)




Artigo publicado originalmente no site "Os Constitucionalistas" em 21.12.2011 (link)



 
Para analisar o futuro da prestação jurisdicional no Brasil a primeira pergunta a ser feita, tanto pelos legisladores quanto pelos operadores do direito, não pode ser outra: “Qual o principal objetivo do jurisdicionado ao requerer a tutela do Estado?” Ressalte-se que a discussão não está adstrita ao terreno eminentemente processual; a resposta não se encontra no “depende” típico dos jurisconsultos. Busca algo que não é tão simples quanto parece, pois está circunscrito ao terreno da pacificação social. Pacificar envolve questões complexas (sociais, morais e até psicológicas), por isso muitos estudiosos jurídicos afirmam a dificuldade da tutela jurisdicional abranger a pacificação, restringindo-a apenas à satisfação de pretensões justas.[1]

A busca da efetividade das decisões judiciais tem sido objeto de incansáveis reformas legislativas que passaram a operar com mais força depois da Emenda Constitucional n° 45/2004. O processo no decorrer dos anos deixou de ser visto como um fim em si mesmo[2] e adequou-se a realidade para qual deveria servir (ou ao menos tem sido essa a razão dos estudos e reformas empreendidas), objetivando a satisfação dos interesses do jurisdicionado.

O problema da multiplicação de processos nos últimos anos não é apenas um imbróglio nacional, sendo visto, por muitos juristas, como resultado da própria evolução da sociedade. A judicialização das mais diversas relações humanas, que atualmente não estão pautadas apenas nas questões privadas, mas compreendem cada vez mais as demandas coletivas, bem como as relacionadas a questões éticas, políticas e científicas, em que o Judiciário é acionado para dar a última palavra, servem para contextualizar as dificuldades deste Poder, principalmente na gestão do sistema processual com a preservação das garantias constitucionais.

O escritor francês Antoine Garapon é um dos que ressalta essa crescente demanda de respostas do Judiciário, que se caracteriza não só pelas demandas de massa, mas também por “demandas maciças”, resultantes da própria democracia em que a sociedade se entrega ao controle do juiz:

Chama-se a justiça no intuito de apaziguar o molestar do indivíduo sofredor moderno. Para responder de forma inteligente a esse chamado, ela deve desempenhar uma nova função, forjada ao longo deste século, a qual poderíamos qualificar de magistratura do sujeito. As sociedades modernas geram, na realidade, uma demanda de justiça quantitativa e qualitativamente inédita. Trata-se de uma demanda de massa e de uma demanda maciça. A justiça não apenas deve multiplicar suas intervenções – o que já é em si um desafio – , mas é também, ela própria, objeto de novas solicitações. Quer lhe sejam submetidas questões morais difíceis, como as relativas à bioética ou à eutanásia, quer lhe seja solicitado remediar prejuízos causados pelo enfraquecimento dos vínculos sociais na população marginalizada, a justiça se vê intimada a tomar decisões em uma democracia preocupada e desencantada (GARAPON, 2001, p. 139).

Portanto, a atual prestação jurisdicional é de duas ordens: quantitativa e qualitativa, mas apenas a primeira tem ganhando maior espaço para efetivação, o que é um grave erro. O jurisdicionado não busca apenas um menor tempo de tramitação, mas também a resolução justa, eficaz e, quando possível, a tão sonhada pacificação. A justiça antes de ser célere deve ser satisfatória. Afinal, quando o jurisdicionado chega ao ponto de requerer a tutela do Estado diante de um conflito, é porque todas as tentativas de resolução extrajudicial foram ineficazes. O que ele está a pedir é o resguardo de direitos, que não são expressos em números ou na celeridade a qualquer custo.

Sendo assim é imperioso responder a outro questionamento: “A importância da celeridade processual se sobrepõe as demais garantias constitucionais estabelecidas para o processo?

Desta pergunta depreende-se outra de grande importância: “Qual o preço que queremos pagar (ou que nos será imposto) para a busca da celeridade na prestação jurisdicional?” A Constituição Federal de 1988 enumera no artigo 5º garantias fundamentais que fornecem ao litigante o mínimo de segurança jurídica ao levar o seu conflito para resolução perante o Estado. Apenas a título exemplificativo podem ser citadas a ampla defesa e o contraditório, a inafastabilidade da jurisdição, a presunção de inocência, a dignidade da pessoa humana e a máxima do devido processo legal. Posteriormente, através da Emenda Constitucional nº 45/2004, também foram incluídas entre elas a garantia da razoável duração do processo e a celeridade de sua tramitação (art. 5°, LXXVIII).

A preocupação com o tempo de duração do processo e com a celeridade processual é o foco principal das recentes mudanças. Claras são as vozes que ecoam contra medidas desarrazoadas, mas a ressonância dos favoráveis às boas inovações persiste, o que beneficia os debates sobre a possibilidade de repensar o que já está sendo aplicado e o que advirá das novas modificações legislativas. Todas as reformas devem ser pensadas com minúcia, para que as restrições que estão sendo estabelecidas em longo prazo não resultem desastrosas. O jurisdicionado não se contentará em ver seu processo julgado por “efeito dominó”. Apenas o julgamento célere não é suficiente para a pacificação dos interesses em conflito.  Desta forma, estruturas que rompem o acesso do jurisdicionado a uma decisão qualitativa devem ser afastadas das atuais reformas.

A utilização em demasia de mecanismos que relativizam o direito de obter uma resposta específica para determinado caso concreto não pode ser vista com bons olhos, pois o ofício de julgar não é pautado em um raciocínio matemático ou eminentemente silogístico. O argumento é formado a partir da interpretação de enunciados normativos e dos dados fáticos apresentados. A valoração e a atenção a realidade jamais podem ser dispensadas ou simplesmente relegadas ao segundo plano. A falta de análise detida às peculiaridades do caso concreto, colocando todos os casos “idênticos” em uma mesma “caixa” aguardando a decisão de um recurso em processo paradigma, para então vincular todos os demais, gera o mesmo sentimento de insatisfação dos que sofrem com a demora na prestação jurisdicional.

Entretanto, não se pode negar a existência de uma enorme contingência de demandas que tratam realmente de casos idênticos e reclamam uma solução que não pode fugir a regra. Mas adotar a teoria de precedentes e a vinculatividade das decisões dos Tribunais Superiores exige cautela. O professor Dierle Nunes, ao tratar do assunto, adverte que o Poder Judiciário deve ter a preocupação de julgar as causas que são postas à sua análise e que não podem ser vistas como meras teses para estabelecer “standards interpretativos”. Ressalta, ainda, que mesmo em países onde a utilização dos precedentes é tradicional, estes não são aplicados de maneira mecânica. É necessária a reconstrução histórica da aplicação decisória, sendo necessário discutir sua adaptabilidade. Neste sentido destaca as palavras de Mortimer Sellers sobre a utilização do precedente no sistema americano:

Stare decisis é o caminho preferível, porque ele promove a imparcialidade e uma previsível e consistente construção de princípios jurídicos, fomenta a confiança nas decisões judiciais e contribui para a atual e percebida integridade do processo judicial. Aderir-se ao precedente é usualmente a política sábia, porque na maioria das questões é mais importante que a regra jurídica aplicável seja apenas estabelecida do que estabelecida corretamente. Entretanto, quando não se é viável controlar o rumo das decisões, ou a racionalização/fundamentação é mal feita, esta Corte nunca se sentiu obrigada a seguir o precedente. Stare decisis não é um comando inexorável; é, sobretudo, um princípio político, e não uma fórmula mecânica de aderência à última decisão.[3]

O projeto do novo Código de Processo Civil (PL 8.046/2010) é hoje a maior expressão desta busca da celeridade na prestação jurisdicional e uma vez aprovado precisará de juristas preparados para a nova realidade para o qual foi criado, a justiça de massa, sem esquecer da necessidade de análise do caso concreto para evitar injustiças. Neste prisma, nunca é demais advertir que a mitigação excessiva das garantias constitucionais poderá gerar efeito reverso ao esperado, causando descrédito do jurisdicionado diante de decisões arbitrárias.

A celeridade não pode ser buscada a qualquer custo, esbarrando nos cânones constitucionais. A segurança jurídica não pode ser concebida apenas como julgamentos idênticos evitando as oscilações jurisprudenciais. Se a diversidade é marca da sociedade contemporânea, como aceitar padronizar decisões sobre essas diversas relações jurídicas humanas e torná-las vinculativas sem parâmetros que devem ser seguidos para a aplicação destes institutos? Os legisladores e os magistrados devem estar conscientes de seu papel diante da elaboração e aplicação destas novas normas jurídicas que ganham corpo buscando a razoável duração do processo, caso contrário podem desvirtuar todo o sistema de garantias.

Propostas como a “PEC dos Recursos”, o advento de sobrestamentos de processos diante de um caso paradigma sem análise detida ao caso apresentado ou a ampliação da conotação das súmulas impeditivas de recursos, não podem ter sua aplicação discricionária vista como bons olhos. O Judiciário, com a desculpa de eliminar a burocracia dos recursos, pode acabar desvirtuando seu principal objetivo, estabelecer a justiça no caso concreto. A argumentação ainda é a chave para combater estes entraves. Afinal, justiça limitada e autômata, não é justiça!

Deste contexto, sobressai a pergunta central deste texto: “Quais os verdadeiros enfrentamentos para a consagração da celeridade processual com efetiva pacificação social dos conflitos?

Para responder a esta pergunta partiremos da visualização da postura de todos os sujeitos do processo: as partes (pessoas físicas e jurídicas como sujeitos de direitos), o Estado (como ente regulador e litigante), o magistrado (como Estado-juiz, principalmente com sua atuação na primeira instância), o Ministério Público (como parte e como fiscal da lei) e os advogados (públicos e privados).

De início é imperioso ressaltar que para uma maior celeridade na tramitação processual, hoje a comunidade jurídica deve voltar os olhos principalmente para a atuação dos magistrados na primeira instância, uma vez que a atividade desenvolvida por eles é determinante para desafogar os tribunais de sobreposição. Apesar da sobrecarga de trabalho que enfrentam, são eles que exercem função primordial nos primeiros passos do processo e serão responsáveis por fazer a diferença em números e em qualidade argumentativa, poucos, porém, atentam para este fator.

O Conselho Nacional de Justiça, através da divulgação de relatórios anuais, tem tornado pública a produtividade dos magistrados e principalmente as dificuldades que enfrentam. Em análise aos índices da Justiça Estadual em 2010, com relação à litigiosidade total é possível perceber a insuficiência de magistrados para a enorme contingência de demandas. Apenas no Rio de Janeiro cada juiz possui em média 14.015 processos pendentes de julgamento. Em São Paulo são 8.715 processos por magistrado e em Pernambuco para cada magistrado existem 6.288 processos.[4] Fica deste modo evidente que, apesar de possuírem servidores que os auxiliam no exercício da atividade, o trabalho é sobre-humano. Exige-se hoje dos magistrados, uma produção muito além do que qualquer trabalhador é capaz de realizar, o que fica mais complicado quando analisamos os números sobre o prisma da responsabilidade de cada um deles na condução do processo, uma vez que são responsáveis pelo destino das relações humanas.

Ao considerar a carga de trabalho apenas na magistratura estadual de primeira instância, composta por processos que estão nas fases de conhecimento e execução, mas excluídos os estão em trâmite perante os juizados especiais e turmas recursais, os três Estados em que os magistrados possuem maior carga de trabalho continuam sendo o Rio de Janeiro, com 18.183 processos por magistrado; São Paulo, com 9.300 processos pendentes por magistrado e Pernambuco, com 6.644 processos por magistrado.[5] O enfoque nestes números é apenas para ressaltar, mais uma vez, a insuficiência de profissionais na primeira instância do Judiciário e, principalmente, repensar se apenas a reestruturação das normas processuais e a mitigação de garantias constitucionais serão suficientes se administrativamente medidas efetivas não forem tomadas e os números de litígios continuarem a crescer.

Além disso, outro desafio destes magistrados, diante de toda a reestruturação do Judiciário para atender as demandas de massa, será consolidarem-se como seres pensantes no ambiente jurídico e não como meros reprodutores de decisões dos Tribunais Superiores. Conservar a autonomia na hora de decidir o caso concreto diante da jurisprudência vinculativa, sem medo de ousar para fazer valer suas convicções e argumentos diante dos dados fáticos apresentados se tornará cada vez mais difícil com as atuais reformas. O ideal é sempre que a justiça de massa não se sobreponha ao principal papel do Direito na sociedade, que ainda é fazer justiça. O papel do jurista envolve, também, jamais esquecer de que é articulador entre a sociedade e o Direito.

Dito isso, vislumbra-se agora repensar o papel das partes e dos advogados diante dos desafios da prestação jurisdicional neste século XXI. O uso indiscriminado de instrumentos processuais aumentando a burocracia na tramitação é atitude que merece repulsa e principalmente punição. O momento pede também prioridade para as soluções extrajudiciais de resolução de conflitos, como a mediação e a arbitragem, bem como as tentativas conciliatórias que possuem maior eficácia quando está em jogo a pacificação. Quando as próprias partes são levadas a realizar concessões recíprocas, a sensação de eliminação do litígio é maior, do que quando a solução é delegada ao desgastante contencioso judicial.

Neste mesmo prisma segue a atuação do Ministério Público, cujas funções ganham ainda maior relevo, uma vez que tanto quando assume a função de parte como a de custus legis, deverá preservar a observância da moralidade e boa-fé processual, bem como buscar soluções conciliatórias entre as partes envolvidas cuidando que não existam prejuízos exorbitantes para nenhum dos pólos da relação.

Como dito anteriormente, o aparelhamento do Judiciário é fundamental para a melhora na tramitação processual, sendo que partes e advogados também devem colaborar para a razoável duração do processo. Assim, partindo da análise de que o Estado é agente regulador e em inúmeras demandas também é parte, a atuação deste perfaz-se ainda com maior importância dentro dos desafios a serem superados para a prestação jurisdicional eficaz.

De acordo com os números divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, apenas na Justiça Estadual de primeiro e segundo grau o Poder Público é demandando em uma grande contingência de processos pendentes[6], sendo notório que este usa todos os meios que dispõe para retardar o cumprimento de decisões que lhes são impostas. Apenas para suscitar o debate, como está o processo executivo contra fazenda pública? Precatórios: quantos anos o jurisdicionado leva para receber seu crédito? Assim, a título exemplificativo, o mesmo Estado que tenta limitar a autonomia do particular para buscar a celeridade da prestação jurisdicional é aquele que sancionou a emenda constitucional dos precatórios (EC n° 62/2009), que retarda a satisfação real do jurisdicionado que após anos de litígio ainda deve se sujeitar ao arbítrio do Estado-vencido. Existe algo de sensato nisso?

Há os que dirão que as propostas partiram de setores diferentes. Para estes respondo: a Constituição que eles estão vinculados é a mesma, deve ser observada tanto pelas pessoas de direito público como pela iniciativa privada. Não existem duas Cartas supremas que garante razoável duração do processo e celeridade apenas para alguns. O Estado Democrático e soberano que tem por fim o interesse público não poderia deixar permear no ordenamento normas e diretrizes com sentidos tão contrapostos.

Algo está errado. Usar casos isolados de particulares para desprestigiar a prestação jurisdicional, acusando-os de usarem os recursos processuais disponíveis como meio de atrasar o julgamento definitivo da lide e, enquanto isso, o próprio Estado, que tenta forjar uma atuação célere, utiliza todo e qualquer meandro para atrasar a tramitação de seus processos e o cumprimento efetivo das decisões contra eles impostas. Se os advogados privados devem ater-se a utilizar as ferramentas processuais de maneira racional, assim também deveria fazer o Estado e recomendar aos seus defensores, utilizando menos as instâncias superiores para procrastinar o julgamento de ações contra os entes estatais.

A mudança passa pela consciência de cada um dos envolvidos. De nada adiantam medidas extremas para aumentar o quantitativo de julgamentos se esquecem que a proposta deve passar pela transformação das atitudes de todos os interessados. Não existe fórmula mágica. Uma avalanche de normas subtraindo ou minimizando prerrogativas e garantias na tentativa de eliminar entraves burocráticos, poderá se transformar em letra morta se os operadores do direito continuarem com o mesmo pensamento arcaico do início do século XX. Além disso, o mínimo que o Estado deve oferecer é um aparelhamento condizente com o ofício de julgar, tendo em vista que nenhum dos outros Poderes possui obrigação legal de agir conforme a sua finalidade principal. Apenas o Judiciário não pode se esquivar de cumprir sua missão precípua: julgar.[7]

Caberá a todos os operadores do direito a adequação às perspectivas de reforma efetiva, que implica a diminuição de demandas em tramitação, mas ao mesmo tempo, a satisfação do jurisdicionado. É desta satisfação que não pode olvidar o jurista. O Poder Judiciário também presta serviço à sociedade, não pode apenas implantar medidas de celeridade sem permitir a prestação de uma tutela que possibilite uma decisão justa e satisfatória.

Diante de todas as contingências que atingem essa nova sociedade, cada vez mais fragmentada, onde a igualdade ganha caráter isonômico, ou seja, é analisada diante das desigualdades existentes, na tentativa de dar “segurança jurídica” estamos concebendo uma justiça de massa. O Poder Judiciário não pode andar na contramão para corresponder a apenas uma expectativa. Se o problema é estrutural, como apontam as pesquisas, é necessário repensar a maneira de atuação, o que não significa adotar mecanismos de simplesmente conter o contencioso judicial, negar acesso a verdadeiras decisões. Ao julgar demandas em massa, os tribunais devem estar atentos que elas terão reflexo em cada caso, individualmente.

Retomando a frase que abre estas considerações, de autoria do Prof. Cândido Rangel Dinamarco, doutrinador que é plenamente favorável à releitura de princípios e a renúncia aos dogmas instaurados durante todo o positivismo jurídico, mas que também alerta para a necessidade de “ousar sem o açodamento de quem quer afrontar, inovar sem desprezar os grandes pilares do sistema[8], conclui-se que a revolução na aplicação e efetivação do direito contemporâneo é necessária, mas deve também priorizar, sobretudo, o respeito ao indivíduo.


_________
GISELLE BORGES ALVES é advogada em Unaí/MG, bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior Cenecista (INESC/CNEC) – Unaí/MG e pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Rede Luiz Flávio Gomes em parceria com o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e a Universidade Anhanguera Uniderp – Campo Grande/MS.


REFERÊNCIAS:

BOTELHO, Guilherme. Direito ao processo qualificado: o processo civil na perspectiva do estado constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números: justiça estadual. 2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-numeros/relatorios>. Acesso em: 23 nov. 2011.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 8ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
__________________________. Nova Era do Direito Processo Civil. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999, 2ª. ed., 2001. Título original: Le guardien des promesses.
NUNES, Dierle. O Brasil entre o civil law  e o common law: a tendência de padronização decisória (uso de precedentes) – Iter mínimo para sua aplicação. Diritto brasiliano. Publicado em 07.07.2011. Disponível em: <http://www.diritto.it/docs/31927-o-brasil-entre-o-civil-law-e-o-common-law-a-tend-ncia-de-padroniza-o-decis-ria-uso-de-precedentes-iter-m-nimo-para-sua-aplica-o?page=1>. Acesso em 07.07.2011.


NOTAS
[1] Entre os estudiosos que sustentam a dificuldade de pacificação dos litígios, podemos citar Paulo Henrique dos Santos Lucon. Guilherme Botelho também traz o alerta de John Rawls e Galelo Lacerda sobre a prestação jurisdicional efetiva: “Jamais logrará concretizar uma justiça perfeita, como, aliás, já alertado por John Rawls. A prestação jurisdicional padece sempre de ‘[...] um passivo, material, e também moral – pelas energias gastas, esperanças desfeitas, paixões incontidas. Diminuir esse passivo, sem prejudicar o acerto da decisão, será tender para o ideal de justiça’[LACERDA, Galeno. Despacho saneador. 1990].” (BOTELHO, 2010, p.176).

[2] Neste sentido a clássica obra de Cândido Rangel Dinamarco, “A instrumentalidade do processo”, da qual seguiram estudos de toda a doutrina jurídica moderna.

[3] NUNES, Dierle (2011), sobre os precedentes no sistema americano, com base em relatório de Sellers sobre o precedente Payne v. Tennessee (501 U.S. 808, 827-8, 111 S.Ct. 2597, 260 de 1991). SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of Precedent in the United States of America. American Journal of Comparative Law, Vol. 54, nº. 1, 2006.

[4] Os índices de litigiosidade total, sobre a carga de trabalho dos magistrados (K), divulgados pelo CNJ abrangem casos novos (Cn), pendentes (Cp), recursos internos e incidentes de execução novos (Rintinc), recursos internos e incidentes de execução pendentes (RintinP), divididos pelo total de magistrados (Mag) de cada Estado, segundo a fórmula: K = (Cn + Cp + RInt + RIntP) / Mag. (CNJ. Justiça em números: justiça estadual, 2010, p. 429-431).

[5] CNJ. Justiça em números: justiça estadual, 2010, p. 237-239.

[6] De acordo com o Relatório Justiça em Números – Justiça Estadual, divulgado pelo CNJ, o Poder Público é réu em 1.095.350 processos apenas na justiça estadual em primeiro grau. As causas em segundo grau de jurisdição somam 236.004 processos. É importante esclarecer que em ambos os dados apresentados, o Poder Judiciário de vários Estados não dispunha destes números e, portanto, a quantidade de demandas em nível estadual com certeza é ainda maior do que os números divulgados (CNJ, 2010, p. 459-464).

[7] Neste sentido Antoine Garapon, 2001, p.155-168.

[8] DINAMARCO, em “Relendo princípios e renunciando a dogmas”. In: Nova era do processo civil. 2009, p. 20-31.


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