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segunda-feira, 20 de setembro de 2021

STF: incompatibilidade do instituto da “candidatura nata” com a Constituição Federal de 1988


O Supremo Tribunal Federal decidiu a ADI 2530/DF, estabelecendo a incompatibilidade do instituto da "candidatura nata" com o regime jurídico estabelecido pela Constituição Federal de 1988, uma vez que o instituto viola o princípio da isonomia e a autonomia partidária.


Selecionamos o resumo do julgado divulgado por meio do Informativo 1026/2021:


DIREITO ELEITORAL – ELEIÇÃO

Candidatura nata: violação à autonomia partidária e à isonomia entre postulantes a cargos eletivos - ADI 2530/DF


O instituto da “candidatura nata” é incompatível com a Constituição Federal de 1988 (CF), tanto por violar a isonomia entre os postulantes a cargos eletivos como, sobretudo, por atingir a autonomia partidária (CF, arts. 5º, “caput”, e 17) (1). A denominada “candidatura nata” — entendida como um direito potestativo de detentor de mandato eletivo à indicação pelo partido para as próximas eleições, independentemente de aprovação em convenção partidária — é absolutamente incompatível com a atual atmosfera de liberdade de ação partidária. A imunização pura e simples do detentor de mandato eletivo contra a vontade colegiada do partido acaba sendo um privilégio completamente injustificado, que contribui tão-só para a perpetuação de ocupantes de cargos eletivos, em detrimento de outros pré-candidatos, sem qualquer justificativa plausível para o funcionamento do sistema democrático, e sem que haja meios para que o partido possa fazer imperar os objetivos fundamentais inscritos no seu estatuto. Num contexto em que a fidelidade partidária é um princípio fundamental da dinâmica dos partidos políticos, especialmente no que diz respeito aos titulares de cargos eletivos obtidos pelo sistema proporcional (2), cabe ao candidato submeter-se à vontade coletiva do partido, e não o contrário. A “candidatura nata” contrasta profundamente com esse postulado e, por esse aspecto, esvazia toda a ideia de fidelidade partidária em favor de um suposto “direito adquirido” à candidatura dos detentores de mandato eletivo pelo sistema proporcional. Com base nesse entendimento, o Plenário julgou procedente o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade do § 1º do art. 8º da Lei 9.504/1997, com modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

 (ADI 2530/DF, relator Min. Nunes Marques, julgamento em 18.8.2021)


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(1) CF/1988: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...) Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: I - caráter nacional; II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes; III - prestação de contas à Justiça Eleitoral; IV - funcionamento parlamentar de acordo com a lei.” (2) Precedente: ADI 3.999

 



sábado, 13 de junho de 2015

BRASIL + 30: O LEGADO DE 30 ANOS DE DEMOCRACIA E OS DESAFIOS PELA FRENTE, por Luís Roberto Barroso (Min. STF)


Fonte: Portal Migalhas (link)


Durante evento na prestigiada Harvard, intitulado “Harvard Brazil Conference”, o ministro Barroso participou apresentou em uma das conferências de encerramento uma reflexão sobre o Brasil: um olhar para o passado, para o presente e para o futuro.
Sob o título "O legado de trinta anos de democracia e os desafios pela frente" —, Luís Roberto Barroso destacou pontos positivos e negativos desse período, a complexidade do momento atual e o que reserva o futuro.
A ênfase de S. Exa. recaiu sobre a importância de, para melhorar as práticas no espaço público, melhorar, também, a ética privada.

Veja a íntegra abaixo.
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BRASIL + 30: O LEGADO DE 30 ANOS DE DEMOCRACIA E OS DESAFIOS PELA FRENTE
SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO
Parte I
O LEGADO DE TRINTA ANOS DE DEMOCRACIA
II. TRÊS DESTAQUES POSITIVOS
1. Estabilidade institucional
2. Estabilidade monetária
3. Inclusão social
III. DOIS DESTAQUES NEGATIVOS
1. Constitucionalização excessiva e instabilidade do texto constitucional
2. Deficiências do sistema político
Parte II
OS DESAFIOS PELA FRENTE
I. A COMPLEXIDADE DO MOMENTO ATUAL
1. No plano econômico
2. No plano político
3. No plano da percepção social e da opinião pública
II. ALGUMAS OUTRAS CONSTATAÇÕES
III. O QUE RESERVA O FUTURO
1. Avanços importantes e as novas exigências
2. Três itens de uma agenda de avanço social
3. Brasil: um sucesso a celebrar
I. INTRODUÇÃO
A história da minha vida adulta começa dez anos antes da redemocratização do Brasil, em 1975. Eu tinha 17 anos e me preparava para ingressar na Faculdade de Direito. Os chamados “anos de chumbo” estavam ficando para trás, com a abertura “lenta, gradual e segura” do Governo Geisel. Mas a imprensa ainda se encontrava sob censura prévia, havia forte repressão aos opositores do regime militar e episódios de tortura ainda ocorriam aqui e ali. Um fato específico, ocorrido em outubro de 1975, foi o meu rito de passagem para o Brasil real: a morte do jornalista Vladimir Herzog em dependências do Segundo Exército, em São Paulo. A versão oficial era a de que ele fora detido para averiguações, sob suspeita de integrar uma organização (não violenta) de esquerda, e cometera suicídio. No entanto, juntando diversos fragmentos de notícias publicadas na imprensa, eu fui capaz de figurar que ele morrera sob tortura e que a história do suicídio era uma farsa1. A partir dali, com o maniqueísmo da primeira juventude, eu já sabia quem era o inimigo e de que lado eu queria estar.
Em 1976, ao ingressar na Faculdade, eu me juntei ao movimento estudantil de oposição ao regime militar. No ano seguinte, em 1977, apoiamos a deflagração da campanha pela anistia “ampla, geral e irrestrita” aos presos políticos e aos brasileiros no exílio. E um ano à frente, em 1978, participamos do início da mobilização pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Pois bem: a ditadura terminou em 1985; a Lei da Anistia veio em 1979; e a nova Constituição, em 1988. Aprendi, dessas experiências, que a história, por vezes, caminha devagar; e, outras vezes, se move rapidamente. É difícil adivinhar quando será de um jeito ou de outro. Mas, a despeito disso, o nosso papel é empurrá-la. É esta a nossa missão, como cidadãos, como intelectuais e como agentes do progresso social: empurrar a história.
Apenas para completar a linha do tempo, relembro mais duas datas marcantes que antecederam a redemocratização. Em 1981, o inquérito do Riocentro, que deveria apurar atos de terrorismo praticados por agentes do Exército foi arquivado, tendo apresentado uma conclusão grosseiramente falsa. Ali se deu a morte moral do regime militar. E em 1984, quando mais de um milhão de pessoas foram à ruas pedir o fim da ditadura, no movimento conhecido como “Diretas já”, deu-se a sua morte política. A eleição de Tancredo Neves e José Sarney, em 15 de janeiro de 1985, foi a certidão de óbito da ditadura e o início da superação do trauma que ela provocara. Na frase histórica que Mikhail Gorbachev iria pronunciar alguns anos depois: “Matar o elefante é fácil. Difícil é remover o cadáver”.
Parte I
O LEGADO DE TRINTA ANOS DE DEMOCRACIA
I. TRÊS DESTAQUES POSITIVOS
1. Estabilidade institucional
Desde o fim do regime militar e, sobretudo, tendo como marco histórico a Constituição de 1988, o Brasil vive o mais longo período de estabilidade institucional de sua história. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, o país conviveu com a persistência da hiperinflação – de 1985 a 1994 –, com sucessivos planos econômicos que não deram certo – Cruzado I e II (1986), Bresser (1987), Collor I (1990) e Collor II (1991) – e com a destituição, porimpeachment, do primeiro presidente da República eleito após a redemocratização. Sem mencionar escândalos graves, como o dos “Anões do Orçamento”, o chamado “Mensalão” ou o “Petrolão”, ainda em curso. Todas essas crises foram enfrentadas e superadas dentro do quadro da legalidade constitucional. É impossível exagerar a importância desse fato, que significou a superação de muitos ciclos de atraso. O Brasil sempre fora o país do golpe de Estado, da quartelada, das mudanças autoritárias das regras do jogo. Desde que Floriano Peixoto deixou de convocar eleições presidenciais, ao suceder Deodoro da Fonseca, até a Emenda Constitucional nº 1, quando os Ministros militares impediram a posse do vice-presidente, o golpismo foi uma maldição da República. Nessa matéria, só quem não soube a sombra não reconhece a luz.
2. Estabilidade monetária
Todas as pessoas no Brasil que têm 40 anos ou mais viveram uma parte de sua vida adulta dentro de um contexto econômico de hiperinflação. A memória da inflação é um registro aterrador. Os preços oscilavam diariamente, quem tinha capital mantinha-o aplicado no overnight e quem vivia de salário via-o desvalorizar-se a cada hora. Generalizou-se o uso da correção monetária – reajuste periódico de preços, créditos e obrigações de acordo com determinado índice –, que realimentava drasticamente o processo inflacionário. Até hoje, um percentual relevante de ações que tramitam perante a Justiça brasileira está relacionado a disputas acerca da correção monetária e de diferentes planos econômicos que interferiram com sua aplicação. Pois bem: com o Plano Real, implantado a partir de 1º de julho de 1994, quando Fernando Henrique Cardoso era Ministro da Fazenda, a inflação foi finalmente domesticada, tendo início uma fase de estabilidade monetária, com desindexação da economia e busca de equilíbrio fiscal. Este é outro marco histórico cuja importância é impossível de se exagerar. Para que se tenha uma ideia do tamanho do problema, a inflação acumulada no ano de 1994, até o início da circulação da nova moeda, o real, que se deu em 1º de julho, era de 763,12%. Nos 12 meses anteriores, fora de 5.153,50%. A inflação, como se sabe, é particularmente perversa com os pobres, por não terem como se proteger da perda do poder aquisitivo da moeda. Como consequência, ela agravava o abismo de desigualdade do país.
3. Inclusão social
A pobreza e a desigualdade extrema são marcas indeléveis da formação social brasileira. Apesar de subsistirem indicadores ainda muito insatisfatórios, os avanços obtidos desde a redemocratização são muito significativos. De acordo com o IPEA, de 1985 a 2012, cerca de 24,5 milhões de pessoas saíram da pobreza, e mais 13,5 milhões não estão mais em condições de pobreza extrema. Ainda segundo o IPEA, em 2012 havia cerca de 30 milhões de pessoas pobres no Brasil (15,93% da população), das quais aproximadamente 10 milhões em situação de extrema pobreza (5,29% da população. O Programa Bolsa Família, implantado a partir do início do Governo Lula, em 2003, unificou e ampliou diversos programa sociais existentes. Trata-se de um programa de transferência condicionada de renda, em que as condicionalidades são: crianças devem estar matriculadas nas escolas e terem frequência de no mínimo 85%; mulheres grávidas devem estar em dia com os exames pré-natal; crianças devem estar com as carteiras de vacinação igualmente atualizadas. O Bolsa Família, conforme dados divulgados em 2014, retratando uma década de funcionamento, atende cerca de 13,8 milhões de famílias, o equivalente a 50 milhões de pessoa, cerca de um quarto da população brasileira.
Nas últimas três décadas, o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH do Brasil, medido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), foi o que mais cresceu entre os países da América Latina e do Caribe. Nessas três décadas, os brasileiros ganharam 11,2 anos de expectativa de vida e viram a renda aumentar em 55,9%. Na educação, a expectativa de estudo para uma criança que entra para o ensino em idade escolar cresceu 53,5% (5,3 anos). Segundo dados do IBGE/PNAD, 98,4% das crianças em idade compatível com o ensino fundamental (6 a 14 anos) estão na escola. Os avanços, portanto, são notáveis. Porém, alguns dados ainda são muito ruins: o analfabetismo atinge ainda 13 milhões de pessoas a partir de 15 anos (8,5% da população) e o analfabetismo funcional (pessoas com menos de 4 anos de estudo) alcança 17,8% da população. Também no tocante à desigualdade, houve avanços expressivos, mas este continua a ser um estigma para o país, como atesta o coeficiente GINI, que mede a desigualdade de renda. O Brasil ostenta uma incômoda 79a posição em matéria de justa distribuição de riqueza.
II. DOIS DESTAQUES NEGATIVOS
1. Constitucionalização excessiva e instabilidade do texto constitucional
A redemocratização do país foi institucionalizada pela Constituição de 1988. Não é o caso aqui de se analisarem os seus muitos pontos positivos, dentre os quais se destaca a transição bem sucedida para um regime democrático. O que é fora de dúvida é que a Constituição, mais do que analítica, é uma Constituição prolixa, que trata de temas demais e com excessivo grau de detalhamento. A Constituição brasileira cuida de um conjunto amplo de matérias que na maior parte da democracias do mundo são deixadas para a política e a legislação ordinária. Disso resultou que qualquer mudança de alguma relevância na realidade fática ou na conjuntura política exige uma alteração da Constituição. Isso acarreta dois problemas. O primeiro é que a política ordinária no Brasil acaba sendo feita por emendas constitucionais. Isso significa a necessidade de maiorias de 3/5 (três quintos), que é o quorum de reforma da Constituição, em lugar de maiorias simples, suficientes para a aprovação de leis ordinárias. A segunda consequência negativa é a instabilidade do texto constitucional: a Constituição de 1988 já sofreu, em 26 anos, 86 emendas. Por certo, um recorde mundial do qual, todavia, não devemos nos orgulhar. Mas há um consolo: a maioria das emendas se refere a matérias que nem deveriam estar na Constituição. O conjunto de normas materialmente constitucionais – relativas à separação de poderes, organização da Federação e aos direitos fundamentais – sofreu poucas alterações ao longo do período e permaneceu, portanto, relativamente estável.
2. Deficiências do sistema político
O sistema político brasileiro, no qual os membros da Câmara dos Deputados são eleitos pelo sistema proporcional com lista partidária aberta, tornou-se uma usina de problemas e de notícias ruins. Três de suas maiores deficiências são (i) a baixa representatividade, (ii) a centralidade do dinheiro (e não da cidadania) e (iii) o fato de ser indutor da corrupção. A baixa representatividade decorre da circunstância de que menos de 10% (dez por cento) dos candidatos são eleitos com votação própria. A grande maioria é eleita por transferência de votos, já que cada partido político tem direito a um número de cadeiras proporcional à votação que recebeu. Disso resulta que o eleitor não sabe exatamente quem elegeu. Pior; semanas após a eleição, não lembra sequer em quem votou. Os custos das campanhas são estratosféricos. Cada candidato disputa com todos os outros – inclusive e notadamente com os de seus próprio partido – em toda a extensão geográfica do Estado, já que não há divisão em distritos. Para eleger-se, um candidato precisa investir muitas vezes mais do que vai receber a título de remuneração nos quatro anos de mandato.
Sem surpresa, o financiamento eleitoral se tornou a maior fonte de corrupção e de desvio de dinheiro no país, como documentam os sucessivos escândalos, dentre os quais se destacam o do “Mensalão” e o do “Petrolão”, ora em curso. E, ouso dizer, os muitos outros que ainda podem aparecer. O país precisa deseperadamente de uma reforma política, mas não consegue produzir consenso mínimo sobre o que fazer. Há interesses demais sobre a mesa. Um bom começo seria eleger os objetivos que uma reforma política deveria buscar realizar, que a meu ver devem incluir: (i) aumentar a representatividade; (ii) baratear o custo das eleições; e (iii) reduzir drasticamente o número de partidos e dar a cada um deles um mínimo de autenticidade programática.
Parte II
OS DESAFIOS PELA FRENTE
I. A COMPLEXIDADE DO MOMENTO ATUAL
Faço a seguir uma breve descrição objetiva do momento atual, complexo e delicado, vivido pelo país. Trata-se de uma mera exposição de fato, sem qualquer juízo de valor, cuidando de três planos distintos: o econômico, o político e o da percepção da sociedade.
1. No plano econômico
No plano econômico, o país vive um momento reconhecidamente desfavorável, no qual avulta um conjunto de problemas, que incluem:
1. Baixo crescimento: o país cresceu apenas 0,1% em 2014, o pior resultado entre os BRICS (que inclui, além do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Nos últimos três anos o PIB já tivera uma expansão mais tímida do que em anos anteriores (2,7%, 1% e 2,5%). A perspectiva para 2015 não é promissora.
2. Inflação alta: em 2014, 6,41%, superando a meta de 4,5%. Em fevereiro, o índice acumulado de 12 meses era de 7,7%, a sexta mais alta do mundo2.
3. Contas externas ruins: o item transações correntes, no Balanço de Pagamentos, teve déficit de US$ 91 bilhões.
4. Gasto público elevado e dificuldades na aprovação do Ajuste Fiscal.
5. Redução de investimentos privados e sinais de aumento de desemprego (de acordo com a OIT, a taxa passou de 6,5% em 2013 para 6,8% em 2014 e deverá chegar a 7,3% em 2015).
2. No plano político
No plano político, por igual, uma série de circunstâncias desfavoráveis se acumularam, podendo-se assinalar dentre elas as seguintes:
1. A Presidente ganhou as eleições por maioria mínima (51,64% contra 48,36%) (pouco mais de 3 pontos percentuais de diferença).
2. A Câmara dos Deputados elegeu um Presidente que é adversário da Presidente da República (atuou na campanha do candidato por ela derrotado e tem adotado postura de clara oposição).
3. O Presidente do Senado Federal e da Câmara dos Deputados foram incluídos na investigação requerida pelo Procurador-Geral da República e acusam o governo de haverem interferido para que isso acontecesse.
4. As acusações de corrupção feitas em delação premiada envolvem partidos da base de apoio do governo, inclusive e sobretudo o Partido dos Trabalhadores.
5. Há um conjunto de manifestações populares, algumas espontâneas e outras orquestradas, muitas delas com palavras de ordem pelo impeachment.
3. No plano da percepção social e da opinião pública
Por fim, no âmbito da sociedade civil, uma onda de insatisfação e ceticismo tem contaminado o momento presente, por motivos diversos, dentre os quais:
1. O escândalo de corrupção na Petrobras tem um efeito devastador sobre o sentimento social, tanto por sua extensão quanto por envolver uma empresa de grande valia simbólica para o país.
2. Todas as grandes empreiteiras, responsáveis pelas principais obras do país, aparentemente estão envolvidas. Isso dá à corrupção uma dimensão endêmica e generalizada. De repente, tudo ficou sob suspeita, de aeroportos a hidrelétricas, passando por estradas e estádios.
3. Há temor de que existam mais escândalos por vir, em outras empresas e fundos estatais ou paraestatais.
4. A classe média, a imprensa e a maior parte dos formadores de opinião votaram na oposição e não nutrem simpatia pela Presidente.
5. Algumas providências urgentes na área econômica e relativas ao ajuste fiscal, além de impopulares, contrariam em alguma medida o discurso de campanha.
II. ALGUMAS OUTRAS CONSTATAÇÕES
1. Há uma saturação da sociedade em relação ao modelo político do país e sua baixa identificação com a cidadania.
2. Há uma saturação em relação à corrupção endêmica no país.
3. Há uma saturação em relação à qualidade dos serviços públicos.
4. A insatisfação social é ampla e difusa. Ela não se concentra em lideranças específicas. Pelo contrário, nenhuma liderança política atual simboliza efetivamente este sentimento de mudança. Em muitas manifestações, é inequívoca a hostilidade à classe política em geral.
5. O país enfrenta dificuldades éticas não apenas no governo, mas na sociedade em geral. Pessoas apontam o dedo incisivamente, mas vivem sob a égide de uma moral dupla, quando não da mais pura hipocrisia.
Exemplo 1. O país tem problemas civilizatórios básicos em relação ao respeito ao outro, a não buscar vantagens indevidas e a agir com boa-fé. Entre eles se incluem a dificuldade em respeitar a fila, as barbaridades no trânsito (uso do acostamento, estacionamento na calçada, embriaguez ao volante, atropelamentos com fuga), a prática costumeira de não dar nota em restaurantes, a cobrança de preços diferentes por prestadores de serviços se há exigência de recibo pelo usuário, a vandalização de lugares e monumentos públicos etc.
Exemplo 2. Um caso concreto emblemático. Tenho um casal de conhecidos que me contou, incidentalmente, a seguinte história. Ambos manifestaram indignação com a empregada doméstica, que pedira para não assinar a carteira para poder continuar a receber a Bolsa Família. Pouco à frente na conversa, contaram que a filha vivia conjugalmente com um companheiro há muitos anos, mas que não havia se casado para não perder a substancial pensão que recebia do avô, que somente beneficia neta solteira. Como disse, há uma moral dupla. Mas não se trata de uma atitude deliberada de má-fé: as pessoas nem se dão conta. Foram criadas nessa cultura e a consideram um dado da realidade, e não uma escolha pessoal.
Repito, para que não haja dúvida: não estou endossando ou negando qualquer desses pontos. Trata-se de uma mera fotografia do momento atual, como eu consegui captar do meu ponto de observação.
III. O QUE RESERVA O FUTURO
1. Avanços importantes e as novas exigências
Não se impressionem excessivamente com a complexidade do momento atual. Crises e insucessos momentâneos fazem parte da história dos povos e do seu processo de amadurecimento. Nas horas de aflição, é sempre bom lembrar o quanto avançamos. Tome-se o exemplo dos direitos fundamentais. A liberdade de expressão, tardiamente, mas com grande ímpeto, desfruta o status de liberdade preferencial. Ações afirmativas de vários graus têm ajudado a enfrentar a discriminação e a exclusão social de afrodescendentes. Há uma visível ascensão social da mulher na vida brasileira, inclusive com o combate severo à violência doméstica (Lei Maria da Penha). O direito dos homossexuais à igualdade plena vem sendo progressivamente reconhecido, inclusive quanto às uniões civis e ao casamento. A crise brasileira hoje é de outra natureza: a de uma sociedade que melhorou o seu nível de vida, que passou a ter mais consciência de seus direitos e tornou-se mais exigente em relação às práticas políticas e aos serviços públicos que recebe. Nossos desafios no presente são os do aprofundamento democrático e os da mudança de patamar econômico e social, inclusive com o aumento do nível de renda. Somos muito melhores do que já fomos, ainda que não tão bons quanto queremos ser.
3. Três itens de uma agenda de avanço social
Para superar este atraso, a agenda do país deve incluir, além da Reforma Política, diversos outros itens essenciais. Selecionei três para compartilhar aqui:
1. Em matéria de EDUCAÇÃO, alcançada a universalização do ensino fundamental, é preciso investir em qualidade efetiva; o ensino médio, por sua vez, deve ter a sua universalização elevada à condição de prioridade máxima; e, no tocante ao ensino superior, precisamos criar instituições de ponta, em um modelo totalmente diverso do que está aí (mas sem enfrentar ou desfazer o que já existe): público nos seus propósitos, privado no seu financiamento, com bolsas de estudo para recrutar os melhores alunos, com professores contratados em seleções internacionais e aulas em português, inglês e espanhol. Não é possível detalhar aqui esse projeto, no qual eu trabalhava quando fui indicado para o Supremo Tribunal Federal, mas considero-o essencial para o país.
2. Em matéria de ECONOMIA, precisamos superar o preconceito contra a livre-iniciativa e o empreendedorismo. Esse preconceito decorre do capitalismo de Estado que desde o início do processo de substituição de importações e de industrialização se praticou no Brasil. O imaginário brasileiro ainda associa o capitalismo doméstico a (i) concessões com favorecimentos, (ii) obra pública com licitações duvidosas, (iii) golpes no mercado financeiro e (iv) grandes latifúndios, sucessores das sesmarias ou produtos de grilagens. É uma percepção que vem do tempo em que toda riqueza era injusta, quando não desonesta. Precisamos de marcos regulatórios claros, respeito aos contratos, estímulo à competição e ao capital de risco. Ah, sim: e de empresários que não sejam viciados em financiamento público.
3. E, por fim, em matéria de COMPORTAMENTO SOCIAL, precisamos do florescimento da sociedade civil, independente do Estado, criativa e solidária, com empreendedores sociais que conduzam uma agenda verdadeiramente cívica. Necessitamos de boas causas, boas ideias e de filantropia. Pessoas e instituições que funcionem como agentes do bem e do progresso social. Iniciativas pequenas ou grandes, que incluem a adoção de uma praça, o financiamento de uma biblioteca de bairro, a ajuda material a uma escola carente, a difusão do acesso à internet, a manutenção de um posto de saúde, a prestação de assistência judiciária, o apoio financeiro e logístico a abrigos de menores, projetos de arborização de comunidades, ensino à distância pela rede mundial de computadores, recuperação de drogados, reinserção de presidiários etc3. Em muitos desses domínios já existem iniciativas relevantes e virtuosas, mas longe de serem suficientes. Mudando de patamar, pode-se incluir a subvenção a um museu, a uma orquestra, a jovens promissores. Se queremos mais sociedade e menos Estado, a sociedade tem de fazer a vida acontecer. A crise atual seria menor se o Estado não fosse protagonista de tudo.
3. Brasil: um sucesso a celebrar
É preciso ter em conta que o Brasil só começou, verdadeiramente, em 1808, com a vinda da família real. Até então, os portos eram fechados ao comércio, era proibida a fabricação de produtos na colônia, bem como a abertura de estradas. Inexistia qualquer instituição de ensino médio ou superior, e cerca de 98% da população era analfabeta.
Mais grave ainda, um terço dos habitantes eram escravos, o que constituía uma chaga moral e uma bomba-relógio social. Além disso, fomos herdeiros de uma tradição que, apesar de muitas virtudes, era a do último país da Europa a abolir a Inquisição, o tráfico de escravos e o absolutismo. Tivemos que construir um país quase do zero, a partir do início do século XIX. Pois bem: em pouco mais de 200 anos, o Brasil se transformou em uma das dez maiores economias do mundo. Nos últimos tempos, cerca de 30 milhões de pessoas saíram da linha de pobreza. Temos uma das maiores democracias de massas da Terra, com estabilidade institucional e alternância no poder. Nosso sistema de urnas eletrônicas é original, confiável e admirado por toda parte. Em suma: o Brasil foi um dos maiores sucessos do século XX. Eu olho para trás e vejo realizada boa parte dos meus sonhos de juventude. Agora, ao longo do século XXI, vamos enfrentar o abismo social brasileiro, com educação, empreendedorismo e serviços públicos de qualidade. E, então, com atraso, mas não tarde demais, chegaremos finalmente ao futuro, oferecendo um exemplo de civilização para o mundo, com justiça social, liberdades públicas, diversidade racial, pluralismo cultural e alegria de viver.
______________
1 Algumas coisas que estavam fora de lugar: Herzog era judeu, mas não fora enterrado na ala reservada aos suicidas no cemitério israelita. Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de São Paulo, celebrou um culto ecumênico na Praça da Sé em sua memória. Uma multidão comparecera ao evento. Como peças embaralhadas de um quebra-cabeças, eu tentava entender porque uma autoridade católica celebrara uma cerimônia pública para um judeu que havia se suicidado, atraindo milhares de pessoas. A partir desses dados, minha pequena investigação pessoal confirmou a evidencia: Herzog fora preso arbitrariamente e morrera sob tortura nas mãos das autoridades militares.
3 Para outros exemplos, v. Daniel Barcelos Vargas, Creative Society in the Making, mimeografado, dezembro de 2013, p. 2; e Rony Meisler, Quando culpar o Estado sairá de moda?, O Globo, 11 out. 2014, p. 15.





segunda-feira, 8 de junho de 2015

Será que vale a pena ser consumidor sem liberdade e sem direitos básicos?


Por Rizzatto Nunes
(texto publicado originalmente no portal Migalhas - link)




Como estudante de Direito, vivi muito tempo a ilusão de que o Estado pudesse, de fato, intervindo na sociedade, criar bem-estar social. Um Estado democrático, naturalmente, e no qual os agentes públicos representassem os interesses dos governados e também o que existisse do melhor no pensamento jurídico garantidor da dignidade da pessoa humana. Haveria de se implantar políticas e regras que beneficiassem a todos.

Infelizmente, com o passar do tempo, minha ilusão foi se esvaindo. Estou cada vez mais convencido de que, muitas vezes, é o Estado (ainda que democrático) que se torna um entrave ao desenvolvimento das pessoas e da sociedade.

A liberdade, por exemplo, esse direito natural e civil, que toda pessoa deveria poder gozar, tem sido limitada, violada, vilipendiada; o Estado democrático tornou-se centralizador, onipotente, opressor; ao invés de garantir a liberdade individual, ampliando e garantindo espaços para seu exercício ele, ao contrário, passou a estabelecer obstáculos, muitos deles ilegítimos quando não ilegais (ou inconstitucionais).


Em vários fóruns e textos tem-se discutido esse papel que o Estado contemporâneo assumiu e esse exagero precisaria ser limitado. No mundo todo, os Estados têm agentes que causam danos à população, de maneira mais ou menos evidente. As diversas polícias, em muitos lugares, são uma catástrofe de ineficiência e abusos, o que se observa até em países do primeiro mundo como nos Estados Unidos de América, por exemplo. Esse braço repressor, muitas vezes mal dirigido e mal treinado, que se faz mostrar em fotos e vídeos, está também em vários outros setores da administração pública, de forma mais oculta dentro das mentes de seus agentes.


A liberdade individual tem sido uma vítima constante dessa mentalidade centralizadora e das ações que a ela correspondem. Para nossa reflexão, apresentarei duas hipóteses: uma, digamos assim, no plano micro e outra no plano macro.


Faço referência a uma citação de meu amigo Outrem Ego que já aqui indiquei: "Uma das claras diferenças entre uma democracia e uma ditadura é a de que nesta toda pessoa da sociedade civil é suspeita (de algo...); naquela, todo cidadão é inocente até prova (contundente) em contrário. Numa democracia, ninguém é suspeito até agir como tal".

N'outro dia, ouvi o jornalista Ricardo Boechat contar que uma vez ele estava preso num congestionamento enorme e viu muitos motoristas serem assaltados exatamente porque estavam parados sem nada poderem fazer. Mais à frente, descobriu que o congestionamento era causado por uma blitz policial que fazia investigação da lei seca ou algo semelhante. Ele disse que não aguentou e foi falar para os policiais que por causa deles as pessoas estavam sendo assaltadas e acabou sendo admoestado por eles. Ou seja, a polícia que deveria dar segurança à população estava não só não exercendo sua função, como facilitando a vida dos meliantes.

Aliás, como já perguntei aqui nesta coluna: se uma pessoa anda pela rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado constitucionalmente e não está cometendo nenhum delito e nem apresenta uma atitude suspeita, qual o fundamento para ela ser abordada por um policial? De onde ele extrai esse direito?


Não parece que as coisas estão fora do lugar? Pessoas de bem sendo abordadas a torto e a direito e, ao mesmo tempo, a violência e a insegurança correndo solta. E em todos os cantos do país.


Agora, proponho que pensemos uma questão mais macro. O da implementação, no Brasil dos últimos anos, de uma política econômica que se supunha de inclusão social das populações mais carentes. Lembro o pensamento da filósofa (ou cientista política, como ela preferia) Hannah Arendt a respeito da aquisição de direitos nas sociedades democráticas, capitalistas e de massa. Ela dizia que o primeiro direito a ser instituído é o "direito a ter direitos". Ela via que em muitas sociedades, milhares de pessoas não tinham um mínimo de direitos garantidos.


Pergunto: quais seriam esses direitos básicos a serem garantidos?


Como é muito grande o poder simbólico e real das sociedades de consumo atuais, houve uma espécie de sedução para o consumo: a política implementada permitiu que as pessoas que não tinham direitos básicos passassem a ser consumidoras. O Estado, ao invés de oferecer e garantir direitos sociais fundamentais tais como educação, moradia, saneamento básico, atendimento hospitalar etc., ampliou o acesso a bens de consumo. Muitas pessoas que não têm onde morar ou habitam favelas e cortiços e/ou não têm empregos regulares, possuem televisores de 40 polegadas, aparelhos celulares e iphones, micro-ondas ou geladeiras modernas, computadores e até automóveis adquiridos com financiamentos de muitos anos. 


Se Hannah Arendt fosse viva talvez constatasse que, nesses casos, deu-se um salto: às pessoas que não tinham direitos, ofereceram-se produtos de consumo. Elas continuam sem as garantias básicas, mas podem assistir à novela das oito numa tevê de plasma.


Pergunto novamente: não parece a você leitor que algo está fora de lugar?


Claro que, quando se fala em liberdade, há que haver uma garantia mínima para seu exercício. E daí, a presença do Estado é fundamental. De nada adianta "ser livre para dormir debaixo da ponte", como se diz. O exercício de liberdade começa na garantia mínima do direito a ter direitos. É preciso que sejam oferecidas condições para que todas as pessoas possam usufruir dos benefícios sociais e também se realizar como indivíduos, fazendo escolhas dentro de um quadro regular.


Não parece fácil e não é. Mas, pelo que se vê, nos tempos atuais, há um distanciamento muito grande entre Estado e sociedade; entre direitos estabelecidos constitucionalmente e a implementação de políticas que permitam sua eficácia. Não basta haver produção e consumo. É preciso também respeito aos direitos democraticamente estabelecidos e a criação de um espaço para que as pessoas, após beneficiarem-se de direitos sociais mínimos, decidam como e quando desejam ser consumidores.






*Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.



domingo, 15 de março de 2015

Protestos de 15/03/2015: o quê dizer?

Muito se fala nas ruas e na internet no dia de hoje, mas só uma pessoa conseguiu traduzir o que também reflete meu pensamento.
Transcrevo texto de Rubens Paiva, disponibilizado na página do cantor Leoni no Facebook (link):


"De Marcelo Rubens Paiva:
'1) Uma manifestação contra a corrupção é válida. Mas o que se vê? Todas as instituições democráticas estão hoje mobilizadas para investigar escândalos da Petrobras, Siemens e outros. No Congresso, tem uma CPI da Petrobrás. A Justiça Federal prendeu donos de empreiteiras e atravessadores. A Procuradoria Geral indiciou políticos, inclusive presidentes da Câmera e do Senado. A Polícia Federal investiga, com promotores, sem nenhuma pressão. E a ação chegou no STF. 
2. Volta dos militares. Sem comentários. 
3. Fora Dilma. Acabou de ser reeleita e, pela lei, o impeachment não é possível, já que apenas crimes cometidos durante o mandato levam ao impeachment. No mais, lideranças da oposição, FHC e MARINA SILVA, são contrários. 
4. Fora PT. Acabamos de ter eleições. Quem está no Poder está democraticamente lá. 
5. Pela reforma política já. Aí, sim, mas qual? 
6. Contra o avanço comunista. Aí é piada. 
7. Pelo estado laico. Não está na pauta. A manifestação é apoiada pela maioria das igrejas evangélicas.
8. Pela liberdade de expressão. E não temos?'."



Assim, apenas digo: manifestar é sublime! Mas com coerência.

(Giselle Borges Alves)


terça-feira, 27 de agosto de 2013

Julgado destaque (Inf. 712/STF): Manifestações em vias e logradouros públicos



 (Transcrições)

Rcl 15887/MG*
RELATOR: Min. Luiz Fux

DECISÃO: Trata-se de reclamação, aparelhada com pedido liminar, ajuizada pelo Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais - SIND-UTE, em face de ato do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que teria supostamente desafiado a autoridade da decisão proferida por esta Suprema Corte nos autos da ADI nº 1.969-4/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski.

Em síntese, aduz que a decisão reclamada, ao determinar liminarmente que o Reclamante se abstivesse de realizar manifestações em vias e logradouros públicos em qualquer parte do território estadual (Ação Cautelar nº 1.0000.13.041148-1/000 ajuizada pelo Estado de Minas Gerais), restringiu substancialmente o conteúdo do direito fundamental de livre manifestação do pensamento (CRFB/88, art. 5º, IV) e de reunião (CRFB/88, art. 5º, XVI), nos balizamentos feitos pela Corte na ADI nº 1.969-4/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski. Ademais, assevera que o acórdão paradigma assentou que as limitações ao direito de reunião somente poderiam ser veiculadas por lei em sentido formal, e desde que observado o núcleo intangível do aludido direito fundamental, o que in casu não teria ocorrido. Afirma, ainda, que a decisão judicial nega vigência ao direito de reunião e de manifestação de pensamento, restabelecendo os ideais autoritários do regime militar.

É o relatório suficiente. Decido.

In casu, articula o Reclamante que o decisum reclamado, ao interditar liminarmente manifestações em vias e logradouros públicos dentro do Estado de Minas Gerais, desafiou a autoridade do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI nº 1.969/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski.

Antes, porém, de examinar se houve o desrespeito ao acórdão apontado como paradigma, é preciso verificar se estão presentes os pressupostos para o cabimento da reclamação.

A Reclamação, por expressa determinação constitucional, destina-se a preservar a competência desta Suprema Corte e garantir a autoridade de suas decisões, ex vi do art. 102, I, alínea l, além de salvaguardar o estrito cumprimento das súmulas vinculantes, nos termos do art. 103-A, § 3º, da Constituição da República, incluído pela EC nº 45/2004. Neste particular, reconheço que a jurisprudência desta Suprema Corte estabeleceu diversos condicionantes para a utilização da via reclamatória, de sorte a evitar o uso promíscuo do referido instrumento processual. Disso resulta (i) a impossibilidade de utilizar per saltum a Reclamação, suprimindo graus de jurisdição, (ii) a impossibilidade de se proceder a um elastério hermenêutico da competência desta Corte, por estarem definidas em um rol numerus clausus, e, ao que interessa ao presente caso, (iii) a observância da estrita aderência da controvérsia contida no ato reclamado e o conteúdo dos acórdãos desta Suprema Corte apontados como paradigma. E, no caso vertente, existe tal similitude, uma vez que, tanto no ato reclamado quanto no acórdão paradigma, a discussão gravita em torno da possibilidade de se proceder a restrições ao conteúdo da liberdade de reunião e de expressão em logradouros públicos, razão por que vislumbro a indispensável identidade material entre a questão de fundo debatida no caso vertente e àquela travada nos autos da ADI nº 1.969/DF.

Conheço, pois, da reclamação e passo ao exame liminar de mérito.

No caso sub examine, a controvérsia travada nestes autos versa suposta ofensa ao conteúdo essencial do direito de reunião e de livre manifestação do pensamento (CRFB/88, art. 5º, XVI e IV, respectivamente), na medida em que o decisum reclamado teria interditado, em sede liminar, manifestações em vias e logradouros públicos dentro do Estado de Minas Gerais pelo ora Reclamante. Em sua decisão, o Desembargador do TJ/MG Barros Levenhagem ressaltou o caráter relativo do direito de reunião, cujo exercício encontrar-se-ia limitado pela liberdade de locomoção (CRFB/88, art. 5º, XV), pelo dever do Estado de prover segurança a toda a coletividade (CRFB/88, art. 144), pela restrição imposta ao direito de greve (Lei nº 7.783/89, art. 6º, § 1º) e pela necessidade de se observar a política urbana (Estatuto das Cidades, art. 2º). E, ao proceder a tal restrição, o Desembargador se distanciou dos balizamentos fixados por esta Suprema Corte na ADI nº 1.969/DF. Senão vejamos.

No acórdão paradigma da ADI nº 1.969/DF, a Corte foi instada a se pronunciar acerca da constitucionalidade de norma distrital (Decreto nº 20.098/99), que proscrevia a realização de manifestações públicas, com a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios e Praça do Buriti. Naquela assentada, o Tribunal julgou procedente o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade de norma asseverando que a restrição estabelecida ao direito de reunião não se compatibilizava com o postulado da proporcionalidade e seus subprincípios (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Imperioso, neste ponto, trazer à colação excerto do voto do eminente relator Min. Ricardo Lewandowski, acolhido à unanimidade, que categoricamente afirmou 

“o Decreto distrital 20.098/99 simplesmente inviabiliza a liberdade de reunião e de manifestação, logo na Capital Federal, em especial na emblemática Praça dos Três Poderes, local aberto ao público, que, na concepção do genial arquiteto que a esboçou, constitui verdadeiro símbolo de liberdade e cidadania do povo brasileiro. Proibir a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros, nesse e em outros espaços públicos que o Decreto vergastado discrimina, inviabilizaria por completo a livre expressão do pensamento nas reuniões levadas a efeito nesses locais, porque as tornaria emudecidas, sem qualquer eficácia para os propósitos pretendidos. (…) Ademais, analisando-se a questão sob uma ótica pragmática, cumpre considerar que as reuniões devem ser, segundo a dicção constitucional, previamente comunicadas às autoridades competentes, que haverão de organizá-las de modo a não inviabilizar o fluxo de pessoas e veículos pelas vias públicas. Há que se ter em conta, por outro lado, que a utilização aparelhos de som nas reuniões, que são limitadas no tempo, certamente não causará prejuízo irreparável àqueles que estão nas imediações da manifestação. (…) A restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda a evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung), que é, no presente caso, a permitir que todos os cidadãos possam reunir-se pacificamente para fins lícitos, expressando as suas opiniões livremente. Não vejo, portanto, à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, e em face do próprio texto da Carta Magna, como considerar hígida, do ponto de vista constitucional, a vedação a manifestações públicas que utilizem com a utilização de carros, aparelhos ou objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios, Praça do Buriti e vias adjacentes.”.

Com efeito, a identidade material reside precisamente no fato de que tanto a decisão reclamada quanto o acórdão paradigma cuidam da constitucionalidade da proibição ao exercício do direito de reunião e de livre manifestação de pensamento em espaços públicos que, por suas características sociais e históricas, permitam a maior propagação das ideias e opiniões manifestadas pelos diversos segmentos da sociedade civil.

Trata-se daquilo que o direito norteamericano intitulou como doutrina dos fóruns públicos (public-forum doctrine), segundo a qual uma sociedade livre deve criar uma plêiade de espaços nos quais se assegure, àqueles indivíduos que desejam se expressar, o direito de ter acesso aos lugares necessários para permitir a difusão da sua opinião entre as pessoas, notadamente aquelas áreas onde muitas delas se encontram (SUNSTEIN, Cass. Republic.com 2.0. New Jersey: Princeton University Press, 2007. p. 22-23).

Mas não é só. O direito de reunião consubstancia um componente indispensável à vida das pessoas e à própria existência de um substancial Estado Democrático de Direito. Conquanto a reunião de indivíduos em torno de determinados fins sociais tenha sempre existido no curso da história, é praticamente um consenso, como bem assinala o filósofo político canadense Will Kimlicka, que a vida associativa nos dias atuais encontra um solo fértil para as virtudes cívicas, ao mesmo tempo em que propicia uma base de sustentação para a construção de uma ordem democrática viável (KYMLICKA, Will.
Ethnic Associations and Democratic Citizenship. In: GUTMANN, Amy: Freedom of Association. New Jersey: Princeton University, 1998, p. 177). Nesse cenário, a liberdade de reunião se apresenta como uma das liberdades básicas dos indivíduos, na formulação do filósofo John Rawls (RAWLS, John. As liberdades fundamentais e suas prioridades. In: Liberalismo Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 347). Trata-se, à evidência, de um direito moral, que deve ser reconhecido e protegido, independentemente de juízos morais meramente contingentes ou majoritários em uma determinada comunidade. Justamente por isso, sob um enfoque filosófico, a liberdade de reunião ostenta um status especial, um “peso absoluto”, com relação a razões de bem público, de cariz tipicamente utilitaristas, e a valores perfeccionistas, incompatíveis com o pluralismo existente nas sociedades contemporâneas. Com isso não se pretende afirmar que, sob o prisma jurídico-constitucional, o direito de reunião revista-se de caráter absoluto. Ao revés: o seu exercício pode encontrar-se limitado em virtude da colisão com o conteúdo de outros bens jurídicos de mesma estatura constitucional. Na realidade, o próprio constituinte originário previu expressamente uma restrição ao exercício do direito de reunião, quando decretado o Estado de Defesa (CRFB/88, art. 136, § 1º, I, alínea b).

É inegável, entretanto, a virtude cívica de movimentos sociais espontâneos que conclamem a participação ativa dos cidadãos na vida pública, de sorte a estimular a reflexão acerca de temas caros à ordem jurídica, política e econômica nacional. A democracia, longe de exercitar-se apenas e tão somente nas urnas, durante os pleitos eleitorais, pode e deve ser vivida contínua e ativamente pelo povo, por meio do debate, da crítica e da manifestação em torno de objetivos comuns.

Neste contexto, precisamente adverte o laureado economista indiano Amartya Sen que um grande número de ditadores no mundo tem conseguido gigantescas vitórias eleitorais, mesmo sem coerção evidente sobre o processo de votação, principalmente suprimindo a discussão pública e a liberdade de informação (SEN, Amartya. A ideia de justiça. Trad. Denise Bottman e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 361), o que evidencia o liame indissociável entre a liberdade de expressão e a democracia. Considerando todos os benefícios sociais da argumentação pública, Amartya Sen comprova suas premissas com a constatação de que “nunca houve uma grande ocorrência de fome coletiva em uma democracia com eleições regulares, partidos de oposição, liberdade básica de expressão e uma imprensa relativamente livre (mesmo no caso de países muito pobres e em situação alimentar seriamente adversa)”, sendo de rigor admitir, desse modo, que “as liberdades políticas e os direitos democráticos estão entre os ‘componentes constitutivos’ do desenvolvimento” (op. cit. p. 376 e 381).

Certo é que para a existência de uma democracia robusta este debate não pode cingir-se apenas aos mecanismos governamentais de captação da vontade popular, máxime quando a própria eficácia desses instrumentos é contestada no seio da sociedade. É preciso abrir os canais de participação popular para que os rumos da nação não sejam definidos exclusivamente ao talante dos governantes eleitos, estimulando que os destinatários das prestações estatais sejam co-partícipes da formação da vontade política. No plano filosófico, Frederick Schauer nos recorda que a liberdade de expressão é protegida por ser o meio, por excelência, de chegar-se à verdade. O autor assenta a completa inaptidão do Governo para selecionar o que se deve entender por verdade, sendo que a obtenção desta somente é possível pelo mercado livre de ideias, qualificado pela livre troca de opiniões, pela liberdade de informação e pela liberdade de crítica (SCHAUER, Frederick. Free Speech: A Philosophical Enquiry. Cambridge University Press, 1982. p. 15-34).

O aumento dessa participação cívica, com uma intensa rede de interação entre os diferentes segmentos representativos da sociedade civil, estimula a produção do cognominado “capital social”, formulado inicialmente por James Colmen e difundido na obra do cientista político de Harvard Robert Putnam (COLEMAN, James S. Social Capital in the Creation of Human Capital.
American Journal of Sociology (Supplement), Vol. 94, 1988, p. S100-S101; PUTNAM, Robert. Bowling Alone: America’s Declining Social Capital. Journal of Democracy, Vol 6, nº 1, January, 1995), indispensável para o adequado funcionamento e manutenção da estabilidade das instituições democráticas. O “capital social” é caracterizado pela confiança que os membros de um grupo demonstram em seus pares, o que aumenta as chances de realizarem seus projetos quando comparados a um grupo que careça desse grau de confiabilidade recíproca.

Deve-se valorizar, neste diapasão, a potencialidade democrática que as novas tecnologias representam para a formação do capital social, permitindo a formação de relações de confiança entre pessoas de diferentes lugares, crenças e inclinações políticas. Por meio da internet, a fronteira da tradicional dicotomia entre esquerda e direita se dilui para que a sociedade siga em frente, rumo à era da consciência social, do respeito aos direitos fundamentais, do desenvolvimento econômico responsável, sempre tendo como base e pressuposto a moralidade na gestão da coisa pública.

No caso sub examine, a insatisfação popular com as questões centrais da vida pública, inicialmente veiculada apenas em redes sociais na internet – e que, por isso, já permeava o debate público em um espaço no qual não podia ser notada fisicamente –, tomou corpo e se transmudou em passeatas propositalmente realizadas em locais de grande significação e especial simbolismo, onde essas vozes, antes ocultas, podem ser percebidas com clareza pelos seus alvos, mercê de contribuírem para a edificação de um ambiente patriótico de reflexão sobre os rumos da nação. Além disso, é fato público e notório a anuência dos poderes constituídos ao movimento popular observado nas ruas, de manifestações em prol da democracia, da probidade e do bom emprego dos recursos públicos. A imprensa escrita e falada dá notícia das declarações de autoridades governamentais exaltando e chancelando o caráter legítimo e democrático de tais protestos, desde que sem vandalismo e depredação do patrimônio público e privado.

Cass Sunstein, referindo-se especificamente à liberdade de expressão oriunda da rede mundial de computadores, fecunda e própria da modernidade, como sói ocorrer atualmente no Brasil, deixa claro que esse direito não é absoluto, de modo que o Estado tem não apenas o poder, mas o dever de coibir excessos nocivos à vida social e que podem comprometer o próprio exercício, independente e informado, da livre manifestação. Nas palavras do professor de Harvard, uma infrutífera e reprovável tentativa de solicitar a alguém o cometimento de um crime, por exemplo, continua sendo uma incitação criminosa, ainda que se tente justificá-la com base em ideais democráticos (SUNSTEIN, Cass. Republic.com 2.0. New Jersey: Princeton University Press, 2007. pp. 175- 177).

Nesse mesmo campo, o Reitor da Yale Law School, Prof. Robert Post, divide a “palavra” e a “ação” para a definição do conteúdo da liberdade de expressão. Enquanto que um discurso proferido em uma multidão reunida em praça pública se enquadra na categoria “palavra”, quebrar uma vidraça com um tijolo é uma “ação”. Ambas as categorias de manifestações não são protegidas de maneira plena pela referida garantia constitucional. A liberdade de expressão, em ambos os casos, deve ser protegida apenas enquanto meio para a comunicação de ideias – a palavra não é acobertada pela garantia constitucional para veicular, por exemplo, um discurso de ódio. Mais ainda, não se pode admitir a barbárie a pretexto de transmitir uma mensagem ou proposta. Assim, ainda que alguém atire um tijolo contra uma vidraça para expressar que não concorda com certo ponto de vista ou atitude do proprietário do bem, e por mais clara que seja a mensagem retratada em tal ação, não é possível invocar a liberdade de expressão para excluir a prevenção e a repressão, civil e penal, contra o vandalismo (POST, Robert.
Democracy, Expertise, and Academic Freedom. A First Amendment Jurisprudence for the Modern State. New Haven: Yale University Press, 2012. p. 2).

Ademais, ressoa absolutamente contraditório protestar contra a malversação de recursos públicos por meio da depredação de prédios e bens custeados e mantidos por toda a sociedade. Esse tipo de conduta não deve ser tolerada, seja pelo seu caráter violento, seja porque não é capaz de transmitir qualquer tipo de mensagem útil ao debate democrático.

Presente o fumus boni iuris quanto à liceidade das passeatas ordeiras, o periculum in mora se evidencia pelo fato de que manifestações têm sido realizadas diariamente em diversas cidades do país, de modo que a manutenção da eficácia da decisão impugnada tolhe injustificadamente o exercício do direito de reunião e de manifestação do pensamento por aqueles afetados pela ordem judicial, contrariando o quanto estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 1.969/DF.

Ex positis, concedo a liminar, cassando a decisão reclamada, nos termos do art. 21, V, do RISTF, porquanto consideradas legítimas as manifestações populares realizadas sem vandalismo, preservado o poder de polícia estatal na repressão de eventuais abusos.

Publique-se. Int..
Brasília, 19 de junho de 2013

Ministro LUIZ FUX
Relator

*decisão publicada no DJe de 24.6.2013.



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