(Transcrições)
Rcl 15887/MG*
RELATOR: Min. Luiz Fux
DECISÃO: Trata-se de reclamação, aparelhada com pedido liminar, ajuizada pelo
Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais - SIND-UTE, em
face de ato do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que teria
supostamente desafiado a autoridade da decisão proferida por esta Suprema Corte
nos autos da ADI nº 1.969-4/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski.
Em síntese, aduz que a decisão reclamada, ao determinar liminarmente que o
Reclamante se abstivesse de realizar manifestações em vias e logradouros
públicos em qualquer parte do território estadual (Ação Cautelar nº
1.0000.13.041148-1/000 ajuizada pelo Estado de Minas Gerais), restringiu
substancialmente o conteúdo do direito fundamental de livre manifestação do
pensamento (CRFB/88, art. 5º, IV) e de reunião (CRFB/88, art. 5º, XVI), nos
balizamentos feitos pela Corte na ADI nº 1.969-4/DF, rel. Min. Ricardo
Lewandowski. Ademais, assevera que o acórdão paradigma assentou que as
limitações ao direito de reunião somente poderiam ser veiculadas por lei em
sentido formal, e desde que observado o núcleo intangível do aludido direito
fundamental, o que in casu não teria ocorrido. Afirma, ainda, que a decisão
judicial nega vigência ao direito de reunião e de manifestação de pensamento,
restabelecendo os ideais autoritários do regime militar.
É o relatório suficiente. Decido.
In casu, articula o Reclamante que o decisum reclamado, ao interditar
liminarmente manifestações em vias e logradouros públicos dentro do Estado de
Minas Gerais, desafiou a autoridade do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal
Federal, nos autos da ADI nº 1.969/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski.
Antes, porém, de examinar se houve o desrespeito ao acórdão apontado como
paradigma, é preciso verificar se estão presentes os pressupostos para o
cabimento da reclamação.
A Reclamação, por expressa determinação constitucional, destina-se a preservar
a competência desta Suprema Corte e garantir a autoridade de suas decisões, ex
vi do art. 102, I, alínea l, além de salvaguardar o estrito cumprimento das
súmulas vinculantes, nos termos do art. 103-A, § 3º, da Constituição da
República, incluído pela EC nº 45/2004. Neste particular, reconheço que a
jurisprudência desta Suprema Corte estabeleceu diversos condicionantes para a
utilização da via reclamatória, de sorte a evitar o uso promíscuo do referido
instrumento processual. Disso resulta (i) a impossibilidade de utilizar per
saltum a Reclamação, suprimindo graus de jurisdição, (ii) a impossibilidade de
se proceder a um elastério hermenêutico da competência desta Corte, por estarem
definidas em um rol numerus clausus, e, ao que interessa ao presente caso,
(iii) a observância da estrita aderência da controvérsia contida no ato
reclamado e o conteúdo dos acórdãos desta Suprema Corte apontados como
paradigma. E, no caso vertente, existe tal similitude, uma vez que, tanto no
ato reclamado quanto no acórdão paradigma, a discussão gravita em torno da
possibilidade de se proceder a restrições ao conteúdo da liberdade de reunião e
de expressão em logradouros públicos, razão por que vislumbro a indispensável
identidade material entre a questão de fundo debatida no caso vertente e àquela
travada nos autos da ADI nº 1.969/DF.
Conheço, pois, da reclamação e passo ao exame liminar de mérito.
No caso sub examine, a controvérsia travada nestes autos versa suposta ofensa
ao conteúdo essencial do direito de reunião e de livre manifestação do
pensamento (CRFB/88, art. 5º, XVI e IV, respectivamente), na medida em que o
decisum reclamado teria interditado, em sede liminar, manifestações em vias e
logradouros públicos dentro do Estado de Minas Gerais pelo ora Reclamante. Em
sua decisão, o Desembargador do TJ/MG Barros Levenhagem ressaltou o caráter
relativo do direito de reunião, cujo exercício encontrar-se-ia limitado pela
liberdade de locomoção (CRFB/88, art. 5º, XV), pelo dever do Estado de prover
segurança a toda a coletividade (CRFB/88, art. 144), pela restrição imposta ao
direito de greve (Lei nº 7.783/89, art. 6º, § 1º) e pela necessidade de se
observar a política urbana (Estatuto das Cidades, art. 2º). E, ao proceder a
tal restrição, o Desembargador se distanciou dos balizamentos fixados por esta
Suprema Corte na ADI nº 1.969/DF. Senão vejamos.
No acórdão paradigma da ADI nº 1.969/DF, a Corte foi instada a se pronunciar
acerca da constitucionalidade de norma distrital (Decreto nº 20.098/99), que
proscrevia a realização de manifestações públicas, com a utilização de carros,
aparelhos e objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos
Ministérios e Praça do Buriti. Naquela assentada, o Tribunal julgou procedente
o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade de norma asseverando
que a restrição estabelecida ao direito de reunião não se compatibilizava com o
postulado da proporcionalidade e seus subprincípios (adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito). Imperioso, neste ponto, trazer à colação
excerto do voto do eminente relator Min. Ricardo Lewandowski, acolhido à
unanimidade, que categoricamente afirmou
“o Decreto distrital 20.098/99
simplesmente inviabiliza a liberdade de reunião e de manifestação, logo na
Capital Federal, em especial na emblemática Praça dos Três Poderes, local
aberto ao público, que, na concepção do genial arquiteto que a esboçou,
constitui verdadeiro símbolo de liberdade e cidadania do povo brasileiro.
Proibir a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros, nesse e em outros
espaços públicos que o Decreto vergastado discrimina, inviabilizaria por
completo a livre expressão do pensamento nas reuniões levadas a efeito nesses
locais, porque as tornaria emudecidas, sem qualquer eficácia para os propósitos
pretendidos. (…) Ademais, analisando-se a questão sob uma ótica pragmática,
cumpre considerar que as reuniões devem ser, segundo a dicção constitucional,
previamente comunicadas às autoridades competentes, que haverão de organizá-las
de modo a não inviabilizar o fluxo de pessoas e veículos pelas vias públicas.
Há que se ter em conta, por outro lado, que a utilização aparelhos de som nas
reuniões, que são limitadas no tempo, certamente não causará prejuízo
irreparável àqueles que estão nas imediações da manifestação. (…) A restrição
ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda a
evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando
confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung), que é, no
presente caso, a permitir que todos os cidadãos possam reunir-se pacificamente
para fins lícitos, expressando as suas opiniões livremente. Não vejo, portanto,
à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, e em face do
próprio texto da Carta Magna, como considerar hígida, do ponto de vista
constitucional, a vedação a manifestações públicas que utilizem com a
utilização de carros, aparelhos ou objetos sonoros na Praça dos Três Poderes,
Esplanada dos Ministérios, Praça do Buriti e vias adjacentes.”.
Com efeito, a identidade material reside precisamente no fato de que tanto a
decisão reclamada quanto o acórdão paradigma cuidam da constitucionalidade da
proibição ao exercício do direito de reunião e de livre manifestação de
pensamento em espaços públicos que, por suas características sociais e
históricas, permitam a maior propagação das ideias e opiniões manifestadas
pelos diversos segmentos da sociedade civil.
Trata-se daquilo que o direito norteamericano intitulou como doutrina dos
fóruns públicos (public-forum doctrine), segundo a qual uma sociedade livre
deve criar uma plêiade de espaços nos quais se assegure, àqueles indivíduos que
desejam se expressar, o direito de ter acesso aos lugares necessários para
permitir a difusão da sua opinião entre as pessoas, notadamente aquelas áreas
onde muitas delas se encontram (SUNSTEIN, Cass. Republic.com 2.0. New Jersey:
Princeton University Press, 2007. p. 22-23).
Mas não é só. O direito de reunião consubstancia um componente indispensável à
vida das pessoas e à própria existência de um substancial Estado Democrático de
Direito. Conquanto a reunião de indivíduos em torno de determinados fins
sociais tenha sempre existido no curso da história, é praticamente um consenso,
como bem assinala o filósofo político canadense Will Kimlicka, que a vida
associativa nos dias atuais encontra um solo fértil para as virtudes cívicas,
ao mesmo tempo em que propicia uma base de sustentação para a construção de uma
ordem democrática viável (KYMLICKA, Will. Ethnic Associations and Democratic Citizenship. In: GUTMANN, Amy:
Freedom of Association. New Jersey: Princeton University, 1998, p. 177).
Nesse cenário, a liberdade de reunião se apresenta como uma das liberdades
básicas dos indivíduos, na formulação do filósofo John Rawls (RAWLS, John. As
liberdades fundamentais e suas prioridades. In: Liberalismo Político. Trad.
Dinah de Abreu Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 347).
Trata-se, à evidência, de um direito moral, que deve ser reconhecido e
protegido, independentemente de juízos morais meramente contingentes ou
majoritários em uma determinada comunidade. Justamente por isso, sob um enfoque
filosófico, a liberdade de reunião ostenta um status especial, um “peso
absoluto”, com relação a razões de bem público, de cariz tipicamente
utilitaristas, e a valores perfeccionistas, incompatíveis com o pluralismo
existente nas sociedades contemporâneas. Com isso não se pretende afirmar que,
sob o prisma jurídico-constitucional, o direito de reunião revista-se de
caráter absoluto. Ao revés: o seu exercício pode encontrar-se limitado em
virtude da colisão com o conteúdo de outros bens jurídicos de mesma estatura
constitucional. Na realidade, o próprio constituinte originário previu
expressamente uma restrição ao exercício do direito de reunião, quando
decretado o Estado de Defesa (CRFB/88, art. 136, § 1º, I, alínea b).
É inegável, entretanto, a virtude cívica de movimentos sociais espontâneos que
conclamem a participação ativa dos cidadãos na vida pública, de sorte a
estimular a reflexão acerca de temas caros à ordem jurídica, política e
econômica nacional. A democracia, longe de exercitar-se apenas e tão somente
nas urnas, durante os pleitos eleitorais, pode e deve ser vivida contínua e
ativamente pelo povo, por meio do debate, da crítica e da manifestação em torno
de objetivos comuns.
Neste contexto, precisamente adverte o laureado economista indiano Amartya Sen
que um grande número de ditadores no mundo tem conseguido gigantescas vitórias
eleitorais, mesmo sem coerção evidente sobre o processo de votação,
principalmente suprimindo a discussão pública e a liberdade de informação (SEN,
Amartya. A ideia de justiça. Trad. Denise Bottman e Ricardo Doninelli Mendes.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 361), o que evidencia o liame
indissociável entre a liberdade de expressão e a democracia. Considerando todos
os benefícios sociais da argumentação pública, Amartya Sen comprova suas
premissas com a constatação de que “nunca houve uma grande ocorrência de fome
coletiva em uma democracia com eleições regulares, partidos de oposição,
liberdade básica de expressão e uma imprensa relativamente livre (mesmo no caso
de países muito pobres e em situação alimentar seriamente adversa)”, sendo de
rigor admitir, desse modo, que “as liberdades políticas e os direitos
democráticos estão entre os ‘componentes constitutivos’ do desenvolvimento”
(op. cit. p. 376 e 381).
Certo é que para a existência de uma democracia robusta este debate não pode
cingir-se apenas aos mecanismos governamentais de captação da vontade popular,
máxime quando a própria eficácia desses instrumentos é contestada no seio da
sociedade. É preciso abrir os canais de participação popular para que os rumos
da nação não sejam definidos exclusivamente ao talante dos governantes eleitos,
estimulando que os destinatários das prestações estatais sejam co-partícipes da
formação da vontade política. No plano filosófico, Frederick Schauer nos
recorda que a liberdade de expressão é protegida por ser o meio, por
excelência, de chegar-se à verdade. O autor assenta a completa inaptidão do
Governo para selecionar o que se deve entender por verdade, sendo que a
obtenção desta somente é possível pelo mercado livre de ideias, qualificado
pela livre troca de opiniões, pela liberdade de informação e pela liberdade de
crítica (SCHAUER, Frederick. Free Speech: A Philosophical Enquiry. Cambridge
University Press, 1982. p. 15-34).
O aumento dessa participação cívica, com uma intensa rede de interação entre os
diferentes segmentos representativos da sociedade civil, estimula a produção do
cognominado “capital social”, formulado inicialmente por James Colmen e
difundido na obra do cientista político de Harvard Robert Putnam (COLEMAN,
James S. Social Capital in the Creation of Human Capital. American Journal of Sociology (Supplement), Vol. 94, 1988, p. S100-S101;
PUTNAM, Robert. Bowling Alone: America’s Declining Social Capital.
Journal of Democracy, Vol 6, nº 1, January, 1995), indispensável para o
adequado funcionamento e manutenção da estabilidade das instituições democráticas.
O “capital social” é caracterizado pela confiança que os membros de um grupo
demonstram em seus pares, o que aumenta as chances de realizarem seus projetos
quando comparados a um grupo que careça desse grau de confiabilidade recíproca.
Deve-se valorizar, neste diapasão, a potencialidade democrática que as novas
tecnologias representam para a formação do capital social, permitindo a
formação de relações de confiança entre pessoas de diferentes lugares, crenças
e inclinações políticas. Por meio da internet, a fronteira da tradicional
dicotomia entre esquerda e direita se dilui para que a sociedade siga em
frente, rumo à era da consciência social, do respeito aos direitos
fundamentais, do desenvolvimento econômico responsável, sempre tendo como base
e pressuposto a moralidade na gestão da coisa pública.
No caso sub examine, a insatisfação popular com as questões centrais da vida
pública, inicialmente veiculada apenas em redes sociais na internet – e que,
por isso, já permeava o debate público em um espaço no qual não podia ser
notada fisicamente –, tomou corpo e se transmudou em passeatas propositalmente
realizadas em locais de grande significação e especial simbolismo, onde essas
vozes, antes ocultas, podem ser percebidas com clareza pelos seus alvos, mercê
de contribuírem para a edificação de um ambiente patriótico de reflexão sobre
os rumos da nação. Além disso, é fato público e notório a anuência dos poderes
constituídos ao movimento popular observado nas ruas, de manifestações em prol
da democracia, da probidade e do bom emprego dos recursos públicos. A imprensa
escrita e falada dá notícia das declarações de autoridades governamentais
exaltando e chancelando o caráter legítimo e democrático de tais protestos,
desde que sem vandalismo e depredação do patrimônio público e privado.
Cass Sunstein, referindo-se especificamente à liberdade de expressão oriunda da
rede mundial de computadores, fecunda e própria da modernidade, como sói
ocorrer atualmente no Brasil, deixa claro que esse direito não é absoluto, de
modo que o Estado tem não apenas o poder, mas o dever de coibir excessos
nocivos à vida social e que podem comprometer o próprio exercício, independente
e informado, da livre manifestação. Nas palavras do professor de Harvard, uma
infrutífera e reprovável tentativa de solicitar a alguém o cometimento de um
crime, por exemplo, continua sendo uma incitação criminosa, ainda que se tente
justificá-la com base em ideais democráticos (SUNSTEIN, Cass. Republic.com 2.0.
New Jersey: Princeton University Press, 2007. pp. 175- 177).
Nesse mesmo campo, o Reitor da Yale Law School, Prof. Robert Post, divide a
“palavra” e a “ação” para a definição do conteúdo da liberdade de expressão.
Enquanto que um discurso proferido em uma multidão reunida em praça pública se
enquadra na categoria “palavra”, quebrar uma vidraça com um tijolo é uma
“ação”. Ambas as categorias de manifestações não são protegidas de maneira
plena pela referida garantia constitucional. A liberdade de expressão, em ambos
os casos, deve ser protegida apenas enquanto meio para a comunicação de ideias
– a palavra não é acobertada pela garantia constitucional para veicular, por
exemplo, um discurso de ódio. Mais ainda, não se pode admitir a barbárie a
pretexto de transmitir uma mensagem ou proposta. Assim, ainda que alguém atire
um tijolo contra uma vidraça para expressar que não concorda com certo ponto de
vista ou atitude do proprietário do bem, e por mais clara que seja a mensagem
retratada em tal ação, não é possível invocar a liberdade de expressão para excluir
a prevenção e a repressão, civil e penal, contra o vandalismo (POST, Robert. Democracy, Expertise, and Academic Freedom. A First Amendment
Jurisprudence for the Modern State. New Haven: Yale University Press,
2012. p. 2).
Ademais, ressoa absolutamente contraditório protestar contra a malversação de
recursos públicos por meio da depredação de prédios e bens custeados e mantidos
por toda a sociedade. Esse tipo de conduta não deve ser tolerada, seja pelo seu
caráter violento, seja porque não é capaz de transmitir qualquer tipo de
mensagem útil ao debate democrático.
Presente o fumus boni iuris quanto à liceidade das passeatas ordeiras, o
periculum in mora se evidencia pelo fato de que manifestações têm sido
realizadas diariamente em diversas cidades do país, de modo que a manutenção da
eficácia da decisão impugnada tolhe injustificadamente o exercício do direito
de reunião e de manifestação do pensamento por aqueles afetados pela ordem
judicial, contrariando o quanto estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento da ADI nº 1.969/DF.
Ex positis, concedo a liminar, cassando a decisão reclamada, nos termos do art.
21, V, do RISTF, porquanto consideradas legítimas as manifestações populares
realizadas sem vandalismo, preservado o poder de polícia estatal na repressão
de eventuais abusos.
Publique-se. Int..
Brasília, 19 de junho de 2013
Ministro LUIZ FUX
Relator
*decisão publicada no DJe de 24.6.2013.