O Portal Migalhas traz três importantes reportagens relembrando o fato de que há 10 anos o Código Civil Brasileiro era sancionado pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.
Acesse as reportagens: Código Civil de 2002 comemora uma década; Dez anos de Código Civil. Livres Reflexões; Série de Artigo do Professor Sílvio Venosa sobre o Código Civil.
Em uma delas, o artigo do jurista Sílvio de Salvo Venosa que, dada a importância da abordagem, está transcrito abaixo. Boa leitura!
Dez anos de Código Civil. Livres reflexões.
Sílvio de Salvo Venosa¹
Quando completa dez anos desde a sua promulgação, a aplicação do Código Civil de 2002 nos leva necessariamente a meditar sobre vários de seus aspectos. Esse
período coincide com a ascensão econômica de nosso país no contexto
mundial e com a ebulição de uma crise desnecessária e inédita no Poder
Judiciário em torno, principalmente, de gestão de poderes.
É
importante acentuar que essa azáfama envolvendo assuntos
administrativos fundamentais do Judiciário desenlaça um desânimo por
parte dos magistrados na sua arte de julgar e em rebaixamento de sua
moral. Isso nos leva a considerar que a figura do juiz, no Código Civil
deste século, colocou o magistrado como peça fundamental na utilização
do estatuto. Aproxima em muito a atividade do juiz brasileiro dos
julgadores do sistema anglosaxão, com as denominadas cláusulas abertas,
presentes em inúmeros artigos, convoca o julgador para aplicar a melhor
solução que o caso concreto requer, dando-lhe um espaço amplo de
escolha. Recorde-se o emblemático art. 421, que menciona que a liberdade
de contratar será exercida em razão e nos limites da função social
do contrato. Essa norma, aberta ou genérica, dentre as inúmeras desse
gênero presentes no Código, deve ser preenchida pelo julgador no caso
concreto. A função social
avalia-se na concretude do direito. Esse quadro deve merecer deslinde
que não coloque em risco a segurança jurídica, um dos pontos delicados
das cláusulas abertas. Esse é o grande desafio do julgador. Assim, não
se pode apontar aprioristicamente se um contrato atende ou não o
interesse social. Quando o julgador concluir que um contrato, no todo ou
em parte, desvia-se de sua função social, deverá extirpar sua eficácia
ou, se for o caso, adaptá-lo às necessidades sociais, tal como o fará
com as cláusulas abusivas. Nisso o direito pátrio, como acentuado, se
aproxima muito do direito inglês e norteamericano.
Essa
atividade jurisdicional, muito acentuada no presente Código, exige do
magistrado, além de suas qualidades elementares, perspicácia social e
elevada cultura, além de tranquilidade comportamental, nem sempre
presentes nas atuais gerações. A tormentosa crise do Judiciário é mais
um fator de inquietação para o jurisdicionado. A mais fundamental de
todas as qualidades desse aplicador do Direito, a se manifestar
palpitantemente nas cláusulas abertas, é a vocação. Magistrado que busca
a carreira, apenas para galgar degraus de funcionário público, será
sempre um mau julgador. Infelizmente as nossas faculdades de Direito,
com níveis precários, com as exceções conhecidas, não dão o necessário
realce ao futuro profissional dos acadêmicos e a esse aspecto
vocacional, não só para a magistratura, mas para o vasto campo
profissional que se abre ao bacharel. O magistrado, ademais, deve ser
sempre um homem do seu tempo, antenado na sociedade que o cerca, uma
pessoa do mundo, mundano na acepção mais técnica do termo. Muito foi
feito nesse decênio em torno da correta aplicação das cláusulas abertas,
mas o seu caminho, como tudo em Direito, será sempre um desafio.
Lembrando
da forma como foi conduzida a promulgação do Código no início deste
século, sem uma participação mais efetiva dos civilistas, várias lacunas
foram observadas no estatuto e algumas incongruências que foram
colocadas como um peso enorme para os julgadores. O projeto originário
dessa lei remonta ao início dos anos 70 e muito necessitava ser adaptado
à Constituição atual e aos novos anseios e conquistas sociais. A
promulgação de um Código no século XXI se mostra surpreendente para o
mundo ocidental, numa época em que se torna cada vez mais difícil
colocar todo um ramo do direito de modo ordenado em uma única lei. A
tendência é que os códigos se reduzam a princípios gerais, nos quais a
parte geral do Código se mostra efetiva, como a base do direito
brasileiro, e princípios obrigacionais. A tendência dos chamados
microssistemas ou estatutos se faz cada vez mais acentuada, de forma a
gravitar em torno de códigos, estes cada vez mais genéricos e
sintéticos. São muitos os exemplos, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto das Cidades, dentre tantos. O Projeto do Estatuto das Famílias
pretende extirpar todo o livro de família do Código Civil, a corroborar
o que afirmamos. A tendência é que tenhamos um microssistema
registrário, que abrangerá o Direito Imobiliário, e em outros campos do
Direito Civil, como o do livro das sucessões. Esse caminho não é só do
Direito Civil, mas também de outros campos, como o Direito Penal, cujo
código se restringirá cada vez mais à parte geral.
Como
se percebe, a problemática da codificação neste século nada mais tem a
ver com o que ocorreu quando da elaboração dos primeiros códigos da
história, em torno dos séculos XVIII e XIX. A era tecnológica nos trouxe
outros desafios. Dentre estes, avulta a atividade hermenêutica da
doutrina e a exegese dos tribunais, sob novas vestes. A lei e a doutrina
manterão sua importância no direito de origem romano germânica, porém
cada vez mais avultará a importância dos precedentes, da jurisprudência
numa aproximação com os países de língua inglesa, onde ocorre justamente
o oposto, em fenômeno que cada vez mais aproxima os dois sistemas,
ambos procurando atingir o melhor ideal de justiça, por caminhos
diferentes no curso de sua história.
Nesses
dez anos do Código, período que ora se abre, que estas singelas
reflexões sirvam de homenagem a uma lei que, embora com imperfeições
como toda obra humana, engrandece sobremaneira a cultura brasileira,
como também o fizera o Código de 1916.
¹ Sílvio de Salvo Venosa foi juiz
no Estado de São Paulo por 25 anos. Aposentou-se como membro do extinto
Primeiro Tribunal de Alçada Civil, passando a integrar o corpo de
profissionais de grandes escritórios jurídicos brasileiros