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segunda-feira, 18 de março de 2013

Uma canção de escárnio


"Uma canção de escárnio" é texto de autoria de Carlos Melo, cientista político; foi publicado no portal do jornal Estado de São Paulo no dia 16 de março de 2013 e denota a realidade do Poder Legislativo nacional. Atualmente um Poder que é a contradição em termos, por isso vale o destaque para leitura.



Uma canção de escárnio

Até nas comissões do Congresso, onde ainda se mantinha alguma interlocução entre sociedade e Parlamento, a relação se esgarçou

16 de março de 2013 | 16h 27


Carlos Melo
Numa canção que já vai ficando antiga, o genial e esquecido compositor Itamar Assumpção alertava que "porcaria na cultura tanto bate até que fura". Não se conformava com a escória musical que proliferava na terra de Tom Jobim: "Onde era Pixinguinha, Elizeth, Macalé e o Zé Kéti ficou tiririca pura. Só dança de Tanajura (...) Que pop mais pobre". Desesperado, pedia: "Socorro, Elis Regina". O apelo de Itamar se encaixa na nota desta canção: na política atual, o buraco é cada vez mais evidente.
Sem representatividade. Em Salvador, manifestantes protestam contra a indicação do pastor Feliciano - Leogump Carvalho/Frame
Leogump Carvalho/Frame
Sem representatividade. Em Salvador, manifestantes protestam contra a indicação do pastor Feliciano
No Brasil, sempre foram escassas a confiança e a intimidade com a política, confundida com esperteza e dissimulação. O desapreço e o ceticismo abriram caminho para a avacalhação. Sob a displicência do eleitor, candidatos folclóricos passaram a fazer despropositado sucesso: o deboche, tipo Tiririca, é apenas um aspecto da decomposição, sobretudo, do Parlamento nacional.
A transparência revelou uma torrente de malfeitos, mas também banalizou o escândalo tanto quanto se deu força à uma retórica agressiva, porém, nada reformista. Tipos obtusos aguçaram a desconfiança quando se revelou que seus discursos fáceis eram bijuterias de falsos moralistas. O plantel do farisaísmo é vasto, Demóstenes Torres é um entre tantos. Mas, mais que a seriedade, a sensação de seriedade se retirou do ambiente parlamentar. O descrédito fez crescer a distância, o estranhamento, a indiferença. A política, atividade indissociável da existência humana, afastou-se do cidadão tanto quanto o cidadão da política. Hoje, o indivíduo – que não depende de políticas públicas – acorre à política com fel e rancor; não sem justificada razão, mas com exagero evidente: políticos são bodes expiatórios para quase tudo.
Era natural que a política parlamentar assumisse dinâmica própria, se autonomizasse em relação à sociedade que a rejeita. Mas, na comparação, quando se vislumbra a enorme transformação porque passaram a economia e a sociedade, seu saldo é negativo: a política dos partidos e do Legislativo ficou para trás; parou no tempo, fechada em interesses particulares, avessa à transformação mais ampla que ocorreu no País; o que faz com que a sociedade a rejeite ainda mais. Menos que mal necessário, a política tem se tornado apenas contingente. Afugenta de seu convívio a juventude e os quadros mais bem formados. A qualidade da intervenção vai, naturalmente, ao subsolo do fundo do poço. Com a morte física ou moral, desistência ou resignação de velhas lideranças, a substituição se dá no pior nível possível, reposição por seleção adversa: pela "carreira política" parecem se interessar apenas os sem alternativa. Há tênues sinais de mudança, mas eles ainda precisam se confirmar.
O fato é que, hoje, os discursos são rasos – onde foi parar o grande tribuno? –, a capacidade de negociação mingou, a articulação fez lambança. Onde um dia vicejou Petrônio Portela, resta Renan Calheiros; de Ulysses o destino levou a Henrique Eduardo Alves; de Thales Ramalho a Eduardo Cunha; de Mário Covas a Álvaro Dias; de Fernando Lira a Roberto Freire; de Florestan Fernandes a João Paulo Cunha; de Tancredo a Aécio; de Jarbas Passarinho a Jair Bolsonaro. A sensação é de decadência e desamparo. Mesmo nas Comissões, onde a mobilização corporativa e setorial mantinha alguma interlocução entre sociedade e Parlamento, a relação se esgarçou. Questões sociais mais amplas e representativas foram substituídas por interesses abrigados nos partidos. O moto-perpétuo voraz do sistema exige, mas o governo já não tem o que dar; mesmo migalhas são disputadas.
É o ponto de exaustão do presidencialismo de coalizão: em nome da governabilidade, da segurança contra a chantagem – ou do tempo de TV – tudo é moeda, nada é preservado. Até o PSC tem seu quinhão. Marco Feliciano (Direitos Humanos) e Blairo Maggi (Meio Ambiente) surgem do processo, não são contrassenso. Efeitos, não causa, da tragédia. Na fotografia de nossa modernidade torta, a economia e a sociedade foram ao futuro, a política ficou em seu passado. Esses rostos são legítimos panos de fundo do descompasso, do atraso; o desolador cenário de um tempo sem sentido.
O deboche e a distância resultaram na má renovação. A realpolitik levada ao extremo cumpre um ritual macabro de suicídio coletivo. A deterioração dos métodos, a exaustão do presidencialismo de coalizão compõem seu próprio réquiem, não sem antes produzir uma terrível cantiga de escárnio e mal dizer. A porcaria na política que tanto bate até que fura. "Nossa. Nossa..." Socorro, Ulysses Guimarães!
CARLOS MELO É CIENTISTA POLÍTICO
(Link para acesso ao texto: clique aqui)

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