Giselle Borges
Alves
Professora de
Direito Cooperativo e Direito Privado
Mestre em Direito
pela Universidade de Brasília (UnB)
O
cooperativismo antes de ser compreendido como forma de desenvolvimento de atividades
econômicas, precisa ser vislumbrando também como movimento que possui uma base
filosófica secular. Neste sentido, a doutrina cooperativista ressalta a
importância de conhecer o cooperativismo antes de empreender ponderações sobre
a forma de atuação de uma cooperativa[1].
Enquanto
movimento e filosofia, o cooperativismo nasceu em meio às revoluções operárias
da Europa, inicialmente pensado sobre bases solidaristas inspirados pelos ideais
franceses. Teve berço nos movimentos socialistas europeus, mas se fortaleceu e
expandiu sobre a égide do capitalismo, no entanto, sem abandonar os pilares de
união de forças sobre o prisma democrático de gestão, melhor remuneração do
trabalho e fortalecimento do olhar comunitário, para além da simples geração de
lucro (NAMORADO, 2013; MEINEN et al.,
2002).
Mesmo
diante do cenário da globalização de mercados, as cooperativas continuam tendo
como alicerces de formação e atuação sete princípios básicos fundamentais[2], cunhados pela primeira cooperativa
do mundo – a Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale, criada em 1844 na
Inglaterra (CENZI, 2009).
Os
sete princípios cooperativistas, em verdade traçam não apenas a base filosófica
do movimento, mas sobretudo, pautam a forma de organização e gestão dos empreendimentos
cooperativistas em todo o mundo. Ofertam, assim, identidade ao movimento, tendo
em vista que são comuns a todos os ramos de atividades e funcionam como normas
básicas.
O
primeiro princípio cooperativista é o princípio
da adesão livre e voluntária, comumente conhecido também como “princípio da
porta aberta”. Este princípio estabelece que as cooperativas são organizações
voluntárias abertas a todas as pessoas aptas a utilizar os seus serviços e
assumir as responsabilidades do empreendimento como membros, proibindo a
discriminação sexual, social, racial, política ou religiosa.
O
segundo princípio cooperativista é o princípio
da gestão democrática pelos membros. Esse princípio consagra a base
democrática do empreendimento cooperativista, que possui controle realizado por
todos os membros, que participam ativamente na formulação de suas políticas e
na tomada de decisões. Os membros eleitos como representantes dos demais
associados são responsáveis perante estes.
Nas
cooperativas singulares, os membros, independemente da quantidade de capital
que possuem na cooperativa, possuem igual direito de voto (um membro, um voto).
Nas cooperativas Centrais, Federações e Confederações também existe uma
organização proporcional de direito de voto em base democrática.
A
gestão democrática, portanto, traduz-se em um sistema de decisões majoritárias
e não no poder de decisão do capital investido, o que é muito comum nas
sociedades de natureza mercantil. Nas cooperativas não temos a figura do sócio majoritário,
mas sim uma gestão participativa e democrática como um dos eixos desse
movimento, consagrando o sistema de autogestão. Aliás, a submissão das decisões
estratégicas da cooperativa à assembleia é o pressuposto básico da autogestão
como forma de governança (ALVES, 2017).
O
terceiro princípio é o princípio da
participação econômica dos membros. Por ele é estabelecida a forma de
contribuição equitativa dos membros para o capital das cooperativas, bem como,
novamente, ressalta o controle democrático. Parte do capital aportado na
cooperativa é propriedade comum, no entanto, os membros recebem habitualmente,
se houver sobras, uma remuneração como condição de adesão.
Nas
cooperativas está estabelecido o retorno das sobras líquidas proporcional ao
trabalho realizado pelo cooperado junto à cooperativa durante o exercício
social com divisão pro rata de suas
operações[3], o que difere profundamente
do retorno dos lucros numa sociedade de natureza mercantil, onde há estreita
relação com o capital investido pelo sócio ou acionista, pouco importando se
este trabalhou na empresa durante qualquer período (PINHO, 1977).
As
sobras e resultados de um exercício social de uma cooperativa também podem ser
destinados aos objetivos desta, mediante as políticas aprovadas pelos seus
membros em deliberações nas assembleias gerais. Por exemplo, os cooperados
podem destinar sobras e resultados ao desenvolvimento de suas cooperativas,
mediante a criação de fundos de reserva, podem deliberar pelo rateio das sobras
e resultados entre os cooperados ou apoiar outras atividades em prol dos
cooperados, funcionários e da comunidade – concessão de bolsas de estudos,
apoio a ações e projetos sociais, entre outros –, bem como realizar investimentos
externos com o objetivo de captação de recursos em benefício geral da
cooperativa.
O
quarto princípio cooperativista trata da autonomia
e independência destas, ou seja, estabelece as cooperativas como
organizações autônomas, de ajuda mútua, controladas pelos seus membros. Decorre
deste princípio a conclusão de que as cooperativas, mesmo se firmarem acordos
com outras organizações, incluindo instituições públicas, ou se recorrerem a
capital externo, devem fazê-lo de forma a preservar o controle democrático
pelos membros da cooperativa, mantendo sua autonomia e independência quanto a
ingerências externas.
O
quinto princípio cooperativista é o princípio
da educação, formação e informação para o cooperativismo. As cooperativas
devem promover a educação e formação técnico-profissional dos seus associados,
dos representantes por eles eleitos, dos seus trabalhadores e também da
sociedade em geral. A educação, formação e informação cooperativista contribui
de forma eficaz para o desenvolvimento das próprias cooperativas e para a
continuidade do movimento. Informa ao público em geral, incluindo jovens e
líderes comunitários, sobre a natureza e vantagens da cooperação, auxilia no
crescimento e fortalecimento do cooperativismo ao longo do tempo.
O
sexto princípio é a intercooperação,
que se traduz no trabalho conjunto e coeso das cooperativas entre si, servindo
de forma mais eficaz aos seus membros e ofertando mais força ao cooperativismo
enquanto movimento. O princípio incentiva que as cooperativas trabalhem em
conjunto por intermédio de estruturas locais, regionais, nacionais e
internacionais. No Brasil, temos a intercooperação realizada mediante relações
contratuais, por exemplo, de compra e venda de insumos entre cooperativas,
prestação de serviços, entre outros. Mas também temos a verticalização das
atividades que fornecem melhor estrutura para que as cooperativas singulares
prestem seus serviços aos associados. Estamos falando da constituição de
Centrais, Federações e Confederações de Cooperativas, cujas normas gerais estão
traçadas na Lei nº 5.764/1971.
O
sétimo – e último – princípio cooperativista é o princípio do interesse pela comunidade. Esse princípio destaca que
as cooperativas devem trabalhar para o desenvolvimento sustentado das suas
comunidades, mediante políticas aprovadas pelos seus membros.
Desta
forma, é possível identificar o movimento cooperativo como grande agregador do
prisma da função social da propriedade e da empresa, na medida em que realiza a
atividade econômica com preponderância de melhora da qualidade de vida de seus
associados, funcionários e com uma preocupação central com o desenvolvimento sustentável
das regiões onde a atividade está inserida (ALVES, 2017).
O
Cooperativismo, em si, é um movimento que está intimamente relacionado ao desenvolvimento
sustentável, tendo em vista que está voltado para a realização de uma economia
humanizada, cujo valor maior reside no indivíduo, antecedendo ao capital, com
nítida conciliação entre solidariedade e individualidade.
É importante ressaltar
que os princípios cooperativistas, com o passar dos anos foram estabelecidos
dentro das legislações dos países que traçam normas gerais sobre o
cooperativismo[4],
ofertando assim a força necessária para a compreensão de sua aplicação. No
Brasil, tanto a Lei nº 5.764/1971 - Lei Geral do Cooperativismo -, como o
Código Civil brasileiro de 2002, trazem entre nas características gerais do
cooperativismo essa inserção dos princípios correlacionados.
REFERÊNCIAS
ALVES, Giselle Borges. Poder compensatório, função social e concorrência: um olhar individualizado sobre o cooperativismo. In: Constituição, Empresa e Mercado. Ana Frazão (Org.). Faculdade de Direito-UnB, 2017, pp. 69-93.
BRASIL. Lei nº 5.764 de 16 de dezembro de 1971. Define a Política Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5764.htm>. Acesso em 20 fev. 2021.
CENZI, Nerii Luiz. Cooperativismo: desde às origens ao projeto de lei de reforma do sistema cooperativo brasileiro. 1. ed. (2009), 1ª reimpr. Curitiba: Juruá, 2011.
MEINEN, Ênio; NERCOLINI DOMINGUES, Jefferson; DOMINGUES, Jane Aparecida Stefanes. Aspectos jurídicos do cooperativismo. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2002.
NAMORADO, Rui. O mistério do cooperativismo: da cooperação ao movimento cooperativo. Coimbra: Almedina, 2013.
ORGANIZAÇÃO DAS COOPERATIVAS BRASILEIRAS (OCB). O que é cooperativismo?. Somos Cooperativismo. Disponível em: < http://www.somoscooperativismo.coop.br/o-que-e-cooperativismo>. Acesso em: 20 fev. 2021.
PINHO, Diva Benevides. Economia e cooperativismo. São Paulo: Saraiva, 1977.
STÖBERL, Paulo Roberto. Conceito de sociedade cooperativa. In: Sociedades cooperativas. Alfredo de Assis Gonçalves Neto (coord). 1. ed. São Paulo: Lex, 2018, pp. 25-56.
[1] Paulo Roberto Stöberl (2018, p. 25)
é um dos pesquisadores que ressalta a importância de compreender a distinção
entre cooperativismo e cooperativa, informando que o cooperativismo é “um
conjunto de valores orientativos de ação individual e também uma doutrina de
sistema econômico e social” e a cooperativa, nada mais é, que “o braço
econômico deste sistema”.
[2] Sobre os princípios
cooperativistas e dados atuais do cooperativismo no Brasil e no mundo, acesse a
página da Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB: <http://www.somoscooperativismo.coop.br/o-que-e-cooperativismo>.
[3] Conforme estabelecido no Art. 4º,
inciso VII da Lei nº 5.764/1971.
[4] Em um próximo texto serão feitas algumas
considerações sobre as normas do cooperativismo e a correlação dos princípios
com as características traçadas na legislação.
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