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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A decisão do caso Ficha Limpa contrariou a Constituição?

por Georges Louis Hage Humbert




Toda a sociedade quer políticos honestos. A Lei da Ficha Limpa é a mais nítida comprovação desta máxima. De iniciativa popular, a nova regra impede que qualquer cidadão condenado por um colegiado, possa disputar mandato eletivo, inclusive para os casos anteriores à nova lei. Para a opinião pública de momento, mereceu aplauso a recente decisão do STF que declarou a sua total constitucionalidade. Mas, e do ponto de vista constitucional?

A Constituição prevê claramente: ninguém será considerado culpado, salvo sentença judicial transitada em julgado e que a lei não pode retroagir, salvo para beneficiar ao réu. Estas são garantias constitucionais, insculpidas na base de nosso sistema jurídico em vigor, que têm por finalidade assegurar os direitos fundamentais à segurança jurídica e à liberdade, ambos positivados como cláusulas pétreas, portanto intangíveis por ato derivado ao poder constituinte originário. 

Decorrem da premente necessidade de se evitar abusos e perseguições, na exata medida em que impedem que qualquer um sofra a mão pesada do Estado sem que se tenha a certeza jurídica de sua culpa, além de deixar claras as regras do jogo. Protegem, a um só tempo, a vida, a liberdade, a segurança, a legalidade, a propriedade, a moralidade, impessoalidade, sendo integrante do conteúdo mínimo, do que se convencionou denominar núcleo rígido de um dos fundamentos do nosso estado democrático de direito: a dignidade da pessoa humana.

Com base nessas garantias todos tem a certeza de não cumpriram penas que poderão ser revistas e quais as leis estão valendo, o que podem ou não podem fazer, antes de praticarem os seus atos. Consubstanciam normas pétreas da nossa Carta Magna, situadas no mais alto grau de nosso sistema normativo e insuscetíveis a mutações, salvo por uma revolução que resulte na legítima substituição da Constituição Federal em vigor. Protegem o Estado Democrático de Direito.

O que a Lei Ficha Limpa dita e o STF acaba de ratificar é: mesmo que a sua condenação ainda possa ser modificada por um Tribunal, você já sofrerá a sanção de não poder se eleger para cargo público. E mais: vou te pegar de surpresa, pois essa regra vale mesmo para o que você fez no passado, sem saber que se um dia isso seria possível. Conseqüentemente, a troco de um clamor social e duma caça as bruxas, foram sacrificadas a segurança jurídica e a liberdade de se fazer tudo que não se encontra proibido, que nos protegem dos abusos do todo poderoso Estado e dos políticos que agem em seu nome.

No caso, impunha-se a nossa Corte Suprema uma decisão que não evitasse a colisão de direito. Pontes de Miranda já sustentava que atos restritivos à direito se interpretam restritivamente. Portanto, cabia declarar que a Ficha Limpa é norma válida sim, mas desde que sejam considerados políticos com ficha suja aqueles manchados por decisão sob o manto da coisa julgada, e que essas novas regras se aplicam para imundices cometidas após a publicação da mencionada lei. Dar-se-ia, desta forma, o equilíbrio razoável entre moralidade, segurança e liberdade, mantendo-se todos estes valores postos em harmônica convivência e não em choque, como ocorreu na espécie. 

Inequívoco que se deve ser vigoroso nas investigações e punição aos maus políticos. Isto é fato social e jurídico. Mas de possível materialização sem atingir princípios constitucionais tão caros. Num país em que é aceita a prisão ou inelegibilidade, mesmo ainda sem condenação final dos penalizados, e onde é possível mudar as regras do jogo aos quarenta do segundo tempo, tudo com base nas conveniências de momento, insofismável que a sociedade fica em risco e ditadores de plantão se sentem acolhidos.

Indubitável que o direito, como fato social, não é estanque. Por isso mesmo, possível a permanente realização de mudanças, a ponderação de princípios e a influência de valores sociais sobre as decisões. Contudo, isso tudo somente será válido e coerente com o ordenamento jurídico em vigor, se respeitado o adequado processo constitucional e desde que nenhum direito basilar acabe por absolutamente anulado. Ao endossar que nova lei aplique sanção a alguém, mesmo sem uma decisão final e com espeque em fatos anteriores a ela, o STF olvidou estes limites dos quais é, a um só tempo, subjugado e último guardião.

Resta forçoso concluir que, ao potencializar valores positivados como a moralidade no exercício de cargo público em detrimento da segurança jurídica e da liberdade, a decisão final do caso Ficha Limpa contrariou a Constituição. 

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* Georges Louis Hage Humbert é doutorando e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Salvador e sócio do escritório Brandão e Tourinho Dantas Advogados Associados

Texto publicado originalmente no portal "Migalhas", em 24 de fevereiro de 2012 (link


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

STF decide pela constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa


Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) concluíram nesta quinta-feira (16) a análise conjunta das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs 29 e 30) e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4578) que tratam da Lei Complementar 135/2010, a Lei da Ficha Limpa. Por maioria de votos, prevaleceu o entendimento em favor da constitucionalidade da lei, que poderá ser aplicada nas eleições deste ano, alcançando atos e fatos ocorridos antes de sua vigência.

A Lei Complementar 135/10, que deu nova redação à Lei Complementar 64/90, instituiu outras hipóteses de inelegibilidade voltadas à proteção da probidade e moralidade administrativas no exercício do mandato, nos termos do parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição Federal.

Em seu voto, o ministro relator, Luiz Fux, declarou a parcial constitucionalidade da norma, fazendo uma ressalva na qual apontou a desproporcionalidade na fixação do prazo de oito anos de inelegibilidade após o cumprimento da pena (prevista na alínea “e” da lei). Para ele, esse tempo deveria ser descontado do prazo entre a condenação e o trânsito em julgado da sentença (mecanismo da detração). A princípio, foi seguido pela ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, mas, posteriormente, ela reformulou sua posição.

A lei prevê que serão considerados inelegíveis os candidatos que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, em razão da prática de crimes contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; e contra o meio ambiente e a saúde pública.

Serão declarados inelegíveis ainda os candidatos que tenham cometido crimes eleitorais para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; de redução à condição análoga à de escravo; contra a vida e a dignidade sexual; e praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.

As ADCs, julgadas procedentes, foram ajuizadas pelo Partido Popular Socialista (PPS) e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Já a ADI 4578 – ajuizada pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL), que questionava especificamente o dispositivo que torna inelegível por oito anos quem for excluído do exercício da profissão, por decisão do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional –, foi julgada improcedente, por maioria de votos.

Divergência 

A divergência foi aberta pelo ministro Dias Toffoli que, baseando seu voto no princípio da presunção de inocência, salientou que só pode ser considerado inelegível o cidadão que tiver condenação transitada em julgado (quando não cabe mais recurso). A Lei da Ficha Limpa permite que a inelegibilidade seja declarada após decisão de um órgão colegiado. O ministro invocou o artigo 15, inciso III, da Constituição Federal, que somente admite a suspensão de direitos políticos por sentença condenatória transitada em julgado. Com relação à retroatividade da lei, o ministro Dias Toffoli votou pela sua aplicação a fatos ocorridos anteriores à sua edição.

O ministro Gilmar Mendes acompanhou a divergência aberta pelo ministro Dias Toffoli, mas em maior extensão. Para ele, a lei não pode retroagir para alcançar candidatos que já perderam seus cargos eletivos (de governador, vice-governador, prefeito e vice-prefeito) por infringência a dispositivo da Constituição estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica dos municípios. Segundo o ministro Gilmar Mendes, a lei não pode retroagir para alcançar atos e fatos passados, sob pena de violação ao princípio constitucional da segurança jurídica (art. 5º, inciso XXXVI).

O decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Celso de Mello, votou pela inconstitucionalidade da regra da Lei Complementar 135/10, a Lei da Ficha Limpa, que prevê a suspensão de direitos políticos sem decisão condenatória transitada em julgado. “Não admito possibilidade que decisão ainda recorrível possa gerar hipótese de inelegibilidade”, disse.

Ele também entendeu, como o ministro Marco Aurélio, que a norma não pode retroagir para alcançar fatos pretéritos, ou seja, fatos ocorridos antes da entrada em vigor da norma, em junho de 2010. Para o decano, isso ofende o inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal, que determina o seguinte: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Segundo o ministro Celso de Mello, esse dispositivo é parte do “núcleo duro” da Constituição e tem como objetivo impedir formulações casuísticas de lei.

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cezar Peluso, votou no sentido de que a Lei Complementar 135/2010, ao dispor sobre inelegibilidade, não pode alcançar fatos ocorridos antes de sua vigência. Isso porque, para o presidente a inelegibilidade seria, sim, uma restrição de direitos.

O ministro Peluso disse concordar com o argumento de que o momento de aferir a elegibilidade de um candidato é o momento do pedido de registro de candidatura. Ele frisou que o juiz eleitoral tem que estabelecer qual norma vai aplicar para fazer essa avaliação. Para o ministro, deve ser uma lei vigente ao tempo do fato ocorrido, e não uma lei editada posteriormente.

Twitter

Nas sessões desta quarta e quinta-feira, o tema Ficha Limpa esteve entre os dez assuntos mais comentados no país (top trends brazil) no microblog Twitter. No perfil do STF (twitter.com/stf_oficial), que já conta com mais de 198 mil seguidores, os interessados puderam acompanhar informações em tempo real do julgamento e dos votos dos ministros, cujos nomes se revezavam nos top trends Brazil à medida em que se manifestavam sobre a matéria.

Veja mais detalhes do voto de cada um dos ministros:




(Fonte: STF. Notícia publicada em 16/02/2012).

 

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