Hoje o Supremo Tribunal Federal, após oito anos de reflexão sobre o tema, finalmente decide a questão sobre a possibilidade de aborto de fetos anencéfalos.
Como a discussão envolve preceitos de saúde pública, dignidade humana, direito a vida, liberdade, questões morais, éticas e religiosas, a gama de opiniões é extensa. Dado a este fato, seguem duas opiniões diferentes sobre o tema, publicadas hoje na página da web do Instituto Humanitas Unisinos.
O STF deve liberar o aborto de anencéfalos?
"A dignidade de um humano não decorre da duração da vida nem da
perfeição estética nem do grau de satisfação que dá aos outros. O
humano merece respeito; sua dignidade e seu direito à vida são
intocáveis. Repugna ao bom senso ouvir que haveria humanos "inviáveis";
viabilidade e controle de qualidade são conceitos aplicáveis às
coisas, não às pessoas", escreve D. Odilo Pedro Scherer, cardeal-arcebispo de São Paulo, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 11-04-2012.
Eis o artigo.
Hoje, o STF julga a "legalidade" do abortamento de fetos ou bebês com
anencefalia. Aos juízes, a sentença sobre a legalidade. E a moralidade?
As implicações éticas e morais são relevantes, uma vez que estão em
jogo vidas humanas. A decisão não deve ser tomada no calor das emoções
nem sob a pressão de interesses ideológicos, mas na serenidade e
objetividade que ela requer.
Que ser é esse, o anencéfalo? Há
quem lhe negue a qualificação de "ser humano", vendo nele um incômodo
descartável; e quem o compare a uma pessoa acometida de morte cerebral. É
inegável que o anencéfalo, malgrado sua condição, é um ser humano vivo e
não pode ser equiparado a uma pessoa com morte cerebral, pelo simples
fato de que o bebê com anencefalia se desenvolve no ventre da mãe,
cresce, pode nascer e até mesmo viver por dias, semanas e meses, fora do
útero da mãe. Seria um "vivo morto"?
O cerne da questão está
nisso: os anencéfalos são seres humanos vivos. Por isso, merecem todo o
respeito devido a qualquer outro humano. A sociedade, por meio de suas
instituições, deve tutelar o respeito pleno à sua humana dignidade e à
sua vida frágil e breve.
A dignidade de um humano não decorre da
duração da vida nem da perfeição estética nem do grau de satisfação que
dá aos outros. O humano merece respeito; sua dignidade e seu direito à
vida são intocáveis. Repugna ao bom senso ouvir que haveria humanos
"inviáveis"; viabilidade e controle de qualidade são conceitos
aplicáveis às coisas, não às pessoas.
É compreensível que a
gestante de um filho com anencefalia sofra por ver frustrado seu justo
desejo de ter um filho belo e perfeito. Ela merece respeito e
solidariedade. Mas seria isso um argumento suficiente para suprimir a
vida de um bebê com anomalias? Se o sofrimento da mãe fosse considerado
motivo suficiente para um aborto, estaria sendo aprovado o princípio
segundo o qual pode ser tirada a vida de um ser humano que causa
sofrimento grave a outro. E não só em casos de aborto!
O
sofrimento da mãe pode e deve ser mitigado pela medicina, a psicologia, a
religião e a solidariedade. Além disso, é um sofrimento circunscrito no
tempo; mas a vida do bebê, uma vez suprimida, não pode ser recuperada; e
também a dor moral decorrente de um aborto decidido pode durar uma vida
inteira. Além do mais, o alívio de um sofrimento não pode ser
equiparado ao dano de uma vida humana suprimida.
É fora de
propósito afirmar que a dignidade da mãe é aviltada pela geração de um
filho com anomalia; esse argumento pode suscitar ou aprofundar
preconceito contra mulheres que têm um filho com alguma deficiência.
Nenhum
ser humano deve se fazer senhor da vida de outro; nem compete ao homem
eliminar seu semelhante; nem àqueles humanos que não satisfazem aos
padrões estéticos, culturais, ou de "qualidade de vida" estabelecidos
pela sociedade ou pelas ideologias.
Não é belo, digno ou ético
usar o poder dos fortes e saudáveis para suprimir fracos e imperfeitos,
negando-lhes o pouco de vida que a natureza lhes concedeu. Digno da
condição humana é desdobrar-se em cuidados e dar largas à solidariedade e
à compaixão, para acolhê-los e tratá-los, até que seu fim natural
aconteça.
***
"Um processo civilizatório e humanista pressupõe o
livre diálogo de ideais. Um debate respeitoso e construtivo sobre o
tema exige sutileza intelectual, delicadeza de espírito, altruísmo e
generosidade. Essas virtudes não faltarão à nossa máxima Corte, quando
está em questão o respeito ao sofrimento das gestantes e, assim, o
respeito aos direitos humanos das mulheres", escreve Sílvia Pimentel,
doutora em Filosofia do Direito, presidente do Comitê sobre a
eliminação da discriminação contra as mulheres – CEDAVI – da ONU, en
artigo publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, 11-04-2012.
Eis o artigo.
O STF julga o direito à antecipação do parto em caso de anencefalia de feto. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 54, proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS),
tem o objetivo de garantir o direito de escolha das mulheres e proteger
os profissionais de saúde no exercício da profissão, nos casos de
anencefalia.
Por que se trata de questão de saúde? Porque a
anencefalia é uma grave e irreversível malformação congênita
caracterizada pela falta parcial ou total do encéfalo e da caixa
craniana, tornando inviável a vida extrauterina. E porque, sendo
evitáveis o sofrimento e o risco à saúde física e mental das gestantes,
cabe à saúde pública impedi-los. Vale reproduzir o antológico depoimento
à revista Veja, há cerca de uma década, de uma gestante de feto
anencefálico: "Eu me sentia um sarcófago ambulante".
E por que é
questão de justiça? Porque se refere aos direitos humanos das mulheres e
invoca o Direito em seu conceito não legalista. O resgate da ideia do
direito como aquilo que é justo representa avanço contemporâneo
irrefutável. Ilumina essa reflexão o fato de hoje, no mundo jurídico,
admitir-se sob certas circunstâncias a existência de uma insuficiência
ou excedência no conjunto de normas postas pelo poder estatal, cabendo à
Jurisprudência encontrar na fonte constitucional o sentido capaz de
operar como corretivo em relação à lei escrita.
À época da elaboração do Código Penal de
1940, não havia condições científicas e tecnológicas que permitissem o
diagnóstico de anencefalia fetal. Não era possível ao legislador
explicitar legalmente a diferença entre antecipação do parto por motivo
de anencefalia fetal e tipo penal aborto. É a ausência de potencialidade
de vida humana no feto anencefálico que torna impróprio confundir os
dois conceitos. Fora isso, a vigência da lei 9.434/97, que rege os
transplantes de órgãos, estabelecendo como critério para o
reconhecimento do óbito a morte encefálica, torna esse argumento
irretorquível.
Essa análise interpretativa está em consonância
com os parâmetros internacionais acolhidos pelo Brasil, por meio da
ratificação de diversos tratados de direitos humanos. O Comitê sobre a
Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) recomenda aos
Estados-parte "exigir que todos os serviços de saúde sejam compatíveis
com os direitos humanos da mulher".
O Comitê de Direitos da ONU, que monitora o cumprimento do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, também se manifestou sobre a anencefalia em um caso no Peru.
Segundo o comitê, o Estado peruano descumpriu suas obrigações
internacionais, pois foram violados o direito a não ser submetido a
tratamento cruel, inumano e degradante e o direito à privacidade, entre
outros.
Um processo civilizatório e humanista pressupõe o livre
diálogo de ideais. Um debate respeitoso e construtivo sobre o tema exige
sutileza intelectual, delicadeza de espírito, altruísmo e generosidade.
Essas virtudes não faltarão à nossa máxima Corte, quando está em
questão o respeito ao sofrimento das gestantes e, assim, o respeito aos
direitos humanos das mulheres.
(Link para a postagem:
IHU, Data da publicação: 11/04/2012).