sábado, 23 de janeiro de 2021

ASPECTOS PRÁTICOS E JURÍDICOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE COOPERATIVAS

 

Giselle Borges Alves

Professora, advogada e servidora pública

Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)

 

As cooperativas possuem grande importância no contexto humano, social e de diminuição das desigualdades, além de representarem importante componente para o desenvolvimento econômico brasileiro. Amoldam-se aos objetivos da República, conforme estabelecidos pela Carta Política de 1988, sobretudo por promoverem o trabalho humano como aspecto primordial de um capitalismo mais sustentável em todos os sentidos.

No entanto, muitas vezes pairam dúvidas sobre como constituir uma cooperativa e quais seriam os atos formais necessários. Assim, com o intuito de esclarecer de forma simplificada os aspectos expostos na Lei nº 5764/1971, que traz a Política Nacional do Cooperativismo, abaixo seguem algumas notas importantes.

 

1. Atos formais de constituição

 

Podemos definir alguns caminhos para a constituição e formalização das atividades de um empreendimento cooperativo, da seguinte forma:

1º) Reunião de todos os interessados na constituição da cooperativa: inicialmente, é pressuposto necessário que exista um número mínimo de associados para a constituição da cooperativa (20 membros conforme a Lei nº 5.764/1971 ou 07 membros em se tratando de cooperativa de trabalho, conforme a Lei nº 12.690/2012). Os interessados devem se reunir – ainda informalmente – e decidir questões preliminares como forma da cooperativa, objeto social, termos do estatuto, como se dará a organização, entre outros aspectos relacionados a gestão do empreendimento.

2º) Convocação dos interessados para a Assembleia Geral de Constituição: após reunir os interessados e decidir as questões prévias anteriormente informadas, estes devem se reunir em uma Assembleia Geral de Constituição, que será a primeira assembleia formal da cooperativa. Todos os interessados devem ser convocados para participar dessa assembleia com antecedência mínima de 10 (dez) dias.

A publicação dessa convocação deve seguir o que está estabelecido no artigo 38, §1º da Lei 5764/71, com as devidas adaptações, posto que é a primeira assembleia da cooperativa, e a norma traz os aspectos gerais que devem ser obedecidos por todas as assembleias, desde a primeira até as subsequentes após a criação da cooperativa.

Assim, o edital de convocação deve ser afixado em locais frequentados pelos pretensos associados do empreendimento, bem como também devem ser publicados em jornal local ou por meio de circulares. O objetivo da norma é ofertar a maior publicidade possível à realização da assembleia, para que todo os interessados tenham ciência da sua realização.

3º) Reunião dos interessados na Assembleia Geral de Constituição: uma vez convocados os interessados, será realizada a Assembleia de Constituição em que se deve deliberar sobre a constituição da cooperativa, a aprovação do Estatuto e a eleição dos cooperados que irão compor o Conselho de Administração, Conselho Fiscal e Diretoria.

É sempre importante que todos os membros sejam informados sobre os aspectos relacionados ao desempenho das atividades nos órgãos que compõem a cooperativa.

4º) Elaboração do Estatuto Social: conforme visto anteriormente, o estatuto da cooperativa deve ser aprovado na assembleia de constituição. Assim, é importante que nele esteja incluso o objeto social, bem como as regras que nortearão as atividades das cooperativas e seu relacionamento com os cooperados.

5º) Arquivamento dos atos constitutivos da sociedade: após a finalização da Assembleia Geral de Constituição com todas as aprovações necessárias, a ata da assembleia juntamente com o Estatuto Social são os atos que devem ser arquivados na Junta Comercial da localidade onde ela funcionará. Apenas após o arquivamento a cooperativa poderá adquirir personalidade jurídica.

6º) Registro da cooperativa: outro aspecto importante da constituição das cooperativas é o registro perante à OCB (Organização das Cooperativas Brasileiras) ou na entidade estadual correspondente. Essa exigência está contida no art. 107 da Lei nº 5.764/1971).

É importante esclarecer que as cooperativas possuem representação de todos os segmentos de suas atividades, tanto a nível nacional, como em todos os Estados da Federação e no Distrito Federal. Em Minas Gerais, por exemplo, esta entidade é a OCEMG – Organização das Cooperativas do Estado de Minas Gerais.

Uma vez seguido este caminho e realizados todos os arquivamentos e registros, sem esquecer das licenças de funcionamento, inclusive perante os órgãos ambientais, e mediante obtenção dos alvarás e autorizações estaduais e municipais, conforme o ramo cooperativo e o desempenho das atividades, a cooperativa estará autorizada a iniciar suas atividades.

 

2. Aspectos específicos da denominação social

 

As sociedades cooperativas, como um tipo sui generis de sociedade, podem atribuir responsabilidade limitada ou ilimitada aos associados, conforme dispuser seu estatuto. Além disso, o nome comercial da sociedade deve constituir-se em denominação social, sendo obrigado o uso da expressão “cooperativa” em sua denominação, conforme dispõem os artigos 5º caput, 15 inciso I, 21 inciso I, todos da Lei nº 5.764/1971 e o art. 1.159 do Código Civil de 2002.

Em relação as cooperativas que desejam atuar no ramo crédito, é importante ressaltar que é vedado às cooperativas de crédito o uso da denominação “banco”, conforme estabelecido expressamente no parágrafo único do Art. 5°, Lei nº 5.764/1971. As cooperativas de crédito são instituições financeiras que pertencem ao sistema financeiro nacional, mas para elas são aplicadas normas regulatórias específicas, diversas das normas aplicáveis em caráter geral aos bancos.

É importante ressaltar, ainda, que de acordo com a Lei nº 5764/1971, a responsabilidade dos sócios da cooperativa pode ser limitada ou ilimitada. Caso seja limitada, a sociedade cooperativa poderá acrescentar em sua denominação social a expressão “Ltda”.

 

3. Considerações finais

 

A constituição de cooperativas apesar de muita similaridade com a constituição de sociedades de natureza empresária, encontra na Lei Geral – 5.764/1971 – algumas especificidades que devem ser obedecidas para que não sejam confundidas com empresas convencionais.

As normas jurídicas ofertam ao cooperativismo uma regulação diferenciada, em alguns casos mais protetiva do que para empresas convencionais, e a identificação correta de uma cooperativa, que adere aos princípios fundamentais deste movimento secular, inicia desde os seus primeiros passos. Por este motivo, é sempre importante proceder corretamente com os registros e a obtenção das licenças necessárias ao funcionamento, evitando problemas com órgãos reguladores e também possibilitando que as cooperativas, após constituídas regularmente, tenham acesso às prerrogativas fiscais, tributárias e de acesso a crédito, tão importantes ao seu desenvolvimento.

 

REFERÊNCIAS


BRASIL. Lei nº 5.764 de 16 de dezembro de 1971. Define a Política Nacional de Cooperativismo, institui o regime jurídico das sociedades cooperativas, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5764.htm>. Acesso em 23 jan. 2021.


 ______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 23 jan. 2021.

 

______. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em 23 jan. 2021.

______. Lei 12.690 de 19 de julho de 2012. Organização e o funcionamento das Cooperativas de Trabalho; institui o Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho - PRONACOOP; e revoga o parágrafo único do art. 442 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12690.htm>. Acesso em: 23 jan. 2021.

 

 

 

domingo, 10 de janeiro de 2021

Itaipu Binacional: supranacionalidade definida pela STF

 

O STF em decisão nas Ações Cíveis Originárias 1904, 1905 e 1957 deliberou pela natureza jurídica supranacional da Itaipu Binacional, afirmando que a hidrelétrica não integra a administração pública brasileira. De acordo com a Corte Suprema Brasileira, prevalece o Tratado firmado entre Brasil e Paraguai, como norma regente das relações e contratos firmados pela Itaipu Binacional.

Segue abaixo a notícia sobre a decisão. Para mais informações, recomenda-se a leitura das decisões das ações originárias.

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Itaipu Binacional se submete apenas a tratado firmado entre Brasil e Paraguai

A natureza transnacional afasta a possibilidade de a hidrelétrica integrar a administração pública brasileira.

Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a natureza jurídica da Itaipu Binacional impede sua submissão à legislação brasileira, devendo prevalecer o tratado firmado em 26/4/1973 entre Brasil e Paraguai para o aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná. A decisão foi tomada no julgamento conjunto das Ações Cíveis Originárias (ACOs) 1904, 1905 e 1957, em sessão virtual do Plenário finalizada em 4/9, nos termos do voto do relator, ministro Marco Aurélio. Nas ações, o Ministério Público Federal (MPF) pretendia a aplicação à Itaipu da legislação nacional sobre hidrelétricas para tomada de contas, contratação de obras, serviços e bens e gestão de pessoal. Mas, de acordo com o relator, nos termos do tratado constitutivo da empresa, "não há como fugir à configuração supranacional da hidrelétrica, no que afastada qualquer tentativa de tê-la como integrante da administração pública brasileira".


Licitações e concurso público

Na ACO 1904, o relator observou que os contratos de Itaipu para a execução de obras, serviços, compras, locações e alienações se submetem à Norma Geral de Licitação, aprovada pelo Conselho de Administração da Itaipu Binacional mediante a Resolução RCS – 002/2001. A norma estabelece, salvo exceções, que todos os procedimentos de contratação de serviços e afins são precedidos por licitação, destinada a selecionar a proposta mais vantajosa para a empresa.

Na ACO 1957, o MPF defendia que Itaipu pertence à administração pública brasileira e deveria seguir os preceitos constitucionais em relação à seleção de empregados por concurso públicos. No entanto, o relator afirmou que não se aplica à empresa o artigo 37, inciso II, da Constituição Federal, mas o artigo XX do tratado constitutivo. Ele observou que não consta do instrumento internacional firmado entre Brasil e Paraguai "nenhuma menção à necessidade de seleção de empregados mediante concurso público" e que consulta ao sítio eletrônico da hidrelétrica, em 11/7/2017, revelou a realização de 19 processos seletivos entre 2005 e 2014.


Controle externo

Sobre o objeto da ACO 1905, que pretendia atribuir ao Tribunal de Contas da União (TCU) poder de controle externo sobre contas nacionais de Itaipu, o ministro Marco Aurélio reafirmou o caráter supranacional da empresa. Segundo o relator, a Constituição Federal inciso V do artigo 71) dispõe que o controle externo a ser exercido pelo TCU sobre contas nacionais de empresa supranacional, com capital social da União, deve ser feito nos termos do tratado que a constituiu. No caso de Itaipu, o tratado e seus anexos, segundo o relator, não deixam dúvidas da natureza unitária da diretoria da empresa, sendo incabível qualquer tentativa de cisão. "Itaipu Binacional é ente único, indivisível", afirmou.

O ministro Marco Aurélio afirmou, ainda, que eventual fiscalização pelo TCU só poderá ocorrer nos termos acordados com a República do Paraguai e materializados em instrumento diplomaticamente firmado entre os dois Estados soberanos. O ministro acrescentou que, nesse sentido, a Procuradoria-Geral da República (PGR) informou a criação da Comissão Binacional de Contas, competente para exercer o controle externo.


Competência do STF

A competência do STF para julgar ações envolvendo interesse da Itaipu Binacional frente à União ou a Estado estrangeiro foi decidida pelo Plenário no julgamento da Reclamação (Rcl) 2937, ajuizada pela República do Paraguai. Nela, o governo paraguaio, por meio de medida liminar deferida pelo ministro Marco Aurélio, conseguiu suspender a tramitação de ações civis públicas ajuizadas contra Itaipu na Seção Judiciária do Paraná.


Igualdade de condições

Há 47 anos, Brasil e Paraguai firmaram um tratado para o aproveitamento dos recursos hídricos do Rio Paraná, pertencentes, em condomínio, aos dois países. Esse tratado foi instituído em igualdade de condições, direitos e obrigações. Nascia, ali, a entidade binacional denominada Itaipu, constituída pela Eletrobras e pela paraguaia Ande, com igual participação no capital, regida pelas normas estabelecidas no tratado, no estatuto e nos demais anexos. As normas que cuidam da matéria foram incorporadas ao sistema jurídico brasileiro por meio do Decreto Legislativo 23/1973 e do Decreto 72.707/1973.

Segundo o ministro Marco Aurélio, o quadro, no que tange aos negócios jurídicos realizados pela hidrelétrica, "não é de anomia”, e a empresa, desde sua constituição, “tem atuado como previsto nos documentos que a regem". Por unanimidade, o Plenário julgou improcedentes os pedidos do MPF nas três ações.


Fonte: STF (link)

sábado, 31 de outubro de 2020

STF: Assentamentos de reforma agrária podem ter licenciamento ambiental simplificado

Postagem original no site do STF, em 23/09/2020.


Por maioria, o Plenário, em sessão virtual, concluiu que a simplificação busca tornar o processo de licenciamento mais eficiente, atendendo, assim, à função socioambiental da propriedade. 


Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou constitucional a Resolução 458/2013 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que estabelece procedimentos simplificados para licenciamento ambiental em assentamentos de reforma agrária. A decisão se deu na sessão virtual encerrada em 21/9, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5547.

Na ação, a Procuradoria-Geral da República (PGR) sustentava violação ao ordenamento constitucional ambiental e ao dever da União e dos demais entes federados de proteção do ambiente. Segundo a PGR, ao fragmentar o licenciamento ambiental para os assentamentos e determinar, como regra, a realização do procedimento de modo simplificado, a resolução afrontou ainda os princípios constitucionais da vedação ao retrocesso ambiental, da proibição à proteção deficiente e da exigência de estudo de impacto ambiental para atividades potencialmente poluidoras.


Função socioambiental da propriedade

O Plenário seguiu o voto do relator, ministro Edson Fachin. A seu ver, a simplificação busca afastar a redundância de estudos e tornar o processo de licenciamento mais eficiente, atendendo, assim, à função socioambiental da propriedade.

Fachin apontou que, diante das características da maioria dos assentamentos, a exigência irrestrita burocratiza e atrasa a sua implantação e dificulta a concretização da finalidade social da terra. O ministro frisou que o licenciamento pressupõe algumas etapas, que podem incluir, conforme o caso, o estudo prévio para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de degradação do meio ambiente.


Especificidades

Segundo o relator, é equivocado equiparar a criação de um projeto de assentamento a um empreendimento ou atividade poluidora ou potencialmente poluidora, desconsiderando as especificidades que envolvem a sua criação no âmbito da política de reforma agrária. Esse motivo levou o Conama, em diálogo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a editar sucessivas resoluções para ajustar o procedimento. “Não há aí qualquer retrocesso, encontrando-se devidamente justificadas as razões que levaram à edição da norma”, afirmou. “Simplificar não é necessariamente vulnerar, mas conformar a técnica de proteção à finalidade socioambiental, atendendo, ademais, ao princípio da eficiência”.


Baixo impacto ambiental

De acordo com o relator, a resolução define como assentamento o conjunto de atividades e empreendimentos planejados e desenvolvidos em área destinada à reforma agrária, de modo a promover a justiça social e o cumprimento da função social da propriedade. Na sua avaliação, essas características, aliadas à função de reordenamento agrário para fins de desconcentração fundiária destinadas à agricultura familiar, indicam baixo impacto ambiental.

Fachin destacou, ainda, que a norma prevê, como regra, o licenciamento ambiental simplificado para os empreendimentos de infraestrutura e as atividades agrossilvipastoris, mas ressalva que, caso o órgão ambiental competente identifique potencial impacto ambiental, deverá exigir o procedimento ordinário. “Deve-se compreender, portanto, o projeto de assentamento não como empreendimento em si potencialmente poluidor. Caberá aos órgãos de fiscalização e ao Ministério Público, concretamente, fiscalizar eventual vulneração do meio ambiente”, concluiu.


RP/AS//CF
Foto: André Borges/Agência Brasília


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Jurisprudência CADE: Associações, Cooperativas, atos anticoncorrenciais e poder compensatório

Giselle Borges Alves 


Para aqueles que acompanham a evolução da jurisprudência do CADE acerca da atuação da autarquia  sobre atos praticados por associações e cooperativas, seguem abaixo dois recentes processos administrativos em que foram analisadas condutas realizadas por estas pessoas jurídicas no mercado de saúde suplementar. 

Após verificar a ementa, é sempre interessante entrar no site e buscar as razões dos votos dos conselheiros.

Seguem abaixo os dados dos processos analisados pelo CADE e o entendimento firmado. Os julgados se referem ao período de julho, agosto e setembro de 2020.

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Processo Administrativo nº 08012.003893/2009-64 – Cooperativa de Anestesiologistas da Região Nordeste do Rio Grande do Sul - Carene, Clínica de Anestesiologia S/C Ltda. - Can, Anestesiologistas Reunidos de Caxias do Sul – AR, Sane Nordeste Serviço de Anestesiologia Ltda. – SANE e Federação Nacional de Saúde Suplementar – FENASAÚDE (163ª Sessão Ordinária de Julgamento)

Relatora: Conselheira Lenisa Rodrigues Prado

PROCESSO ADMINISTRATIVO. CARTEL. PA ANESTESIOLOGISTAS. ATIVIDADES DE ATENÇÃO À SAÚDE HUMANA (ATENDIMENTO HOSPITALAR, URGÊNCIAS, AMBULATORIAL, DIAGNÓSTICA, TERAPÊUTICA, GESTÃO DE SAÚDE E OUTROS SERVIÇOS SIMILARES). MERCADO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS NA ESPECIALIDADE DE ANESTESIOLOGIA NA MICRORREGIÃO DE CAXIAS DO SUL-RS. PARECER DA SUPERINTENDÊNCIA-GERAL PELA CONDENAÇÃO. PARECER DA PROCURADORIA FEDERAL ESPECIALIZADA PELA CONDENAÇÃO. PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PELA CONDENAÇÃO. TCC CELEBRADO. CONDENAÇÃO. MULTA E OUTRAS PENALIDADES. Considerando a jurisprudência do Cade sobre multas aplicadas a associações, cooperativas, sindicatos e outras entidades de classe, o fundamento legal destas sanções de natureza pecuniária é descrito no art. 37, inciso II, da Lei 12.529/2011 (ou seu correspondente no art. 23, inciso III, da Lei 8.884/1994), tendo em vista que, strictu sensu, estas não possuem faturamento por não exercerem atividade econômica. 

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Processo Administrativo nº 08012.007011/2006-97 – Associação dos Hospitais do Estado do Ceará (AHECE), Clínica São Carlos Ltda, Otoclínica S/C Ltda, Hospital São Mateus S/C Ltda, Wilka e Ponte Ltda (Hospital Gênesis), Casa de Saúde e Maternidade São Raimundo S/A, Hospital Cura D’Ars Sociedade Beneficente São Camilo, Uniclinic – União das Clínicas do Ceará, Hospital e Maternidade Gastroclínica – Clínica de Endoscopia e Cirurgia Digestiva Dr. Edgard Nadra Ary Ltda., e Instituto do Câncer do Ceará – ICC (165ª Sessão Ordinária de Julgamento).

Relator: Conselheiro Luis Henrique Bertolino Braido 

PROCESSO ADMINISTRATIVO. CARTEL DE HOSPITAIS. ATIVIDADES DE ATENÇÃO À SAÚDE HUMANA - ATENDIMENTO HOSPITALAR, URGÊNCIAS, AMBULATORIAL, DIAGNÓSTICA, TERAPÊUTICA, GESTÃO DE SAÚDE E OUTROS SERVIÇOS SIMILARES. MERCADO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE SAÚDE. MUNICIPAL. PARECER DA SUPERINTENDÊNCIA-GERAL PELA CONDENAÇÃO. PARECER DA PROCURADORIA FEDERAL ESPECIALIZADA PELA CONDENAÇÃO. PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PELA. CONDENAÇÃO. MULTA. 

O exercício de poder compensatório, se trazido como argumento de defesa, requer dos Representados a demonstração de eficiências, tais como redução de custos de transação e a melhoria na qualidade do atendimento, que compensem as ineficiências advindas da criação artificial de poder de barganha. Ademais, ainda que reste caracterizado, não afasta a análise dos efeitos do acordo, de modo a evitar possíveis ofensas aos bens jurídicos protegidos pela Lei nº 12.529/2011. Nesse sentido, a inexistência de efeitos econômicos negativos, advinda de poder compensatório ou outra razão, observado o contexto específico do caso concreto, pode ser levado em consideração na dosimetria da pena enquanto atenuante, conforme previsto no art. 45, VI, da Lei nº 12.529/2011. 

Ademais, para fins de dosimetria e considerando a jurisprudência do Cade sobre multas aplicadas a associações, cooperativas, sindicatos e outras entidades de classe, o fundamento legal destas sanções de natureza pecuniária é descrito no art. 37, inciso II, da Lei 12.529/2011 (ou seu correspondente no art. 23, inciso III, da Lei 8.884/1994), tendo em vista que, strictu sensu, estas não possuem faturamento por não exercerem atividade econômica.


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sábado, 24 de outubro de 2020

STJ, Responsabilidade Civil e Arbitragem: responsabilidade objetiva do requerente de cautelar e a inobservância de cláusula arbitral



A Quarta Turma do STJ, julgou Recurso Especial (REsp 1641020), que envolvia situação ocorrida ainda sobre as regras do Código de Processo Civil de 1973 - concessão de cautelares -, bem como a ausência de observância de cláusula arbitral prevista em contrato firmado pelas partes, o que pressupõe assunção de risco.

Na oportunidade, a Turma firmou o entendimento que, em caso de danos provocados por execução de medida cautelar concedida, o requerente deverá promover a reparação dos danos independentemente da comprovação de culpa, incidindo no caso a responsabilidade objetiva. No entanto, é imperioso ressaltar que a responsabilidade objetiva do requerente da medida e o dever de reparação dos danos, incide nas situações em que o processo principal foi extinto sem julgamento de mérito e nada fez o beneficiário da medida para solicitar a revogação (princípio da lealdade processual).

Abaixo segue a notícia publicada no site do STJ em 24/09/2020, que envolve além das regras de responsabilidade civil, também regras de arbitragem que não foram levadas em consideração pelo requerente da cautelar e, neste sentido, o ministro relator do acórdão, Marco Buzzi, trouxe a teoria do risco como fundamento do voto. 

É importante lembrar que no caso de contrato em que a arbitragem é instituída como método de solução de conflitos, tem preponderância a cláusula arbitral. Na situação em análise pela Quarta Turma do STJ, o requerente solicitou a medida cautelar que foi concedida pelo Poder Judiciário, mas não instaurou o procedimento arbitral, motivo pelo qual o processo foi extinto sem resolução de mérito e a cautelar concedida perdeu sua eficácia.

Apesar de se fundar em responsabilidade decorrente de processo cautelar, existente ainda sob as regras do CPC/1973, o processo envolve importantes considerações sobre os requisitos caracterizadores da responsabilidade civil, das tutelas antecipatórias e do procedimento arbitral, por isso vale a leitura da notícia e o aprofundamento no acórdão. Segue abaixo. Boa leitura!

Giselle Borges Alves


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Quarta Turma reconhece responsabilidade objetiva do requerente de cautelar por danos causados pela medida

​​​A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que os danos decorrentes da execução de medida cautelar – na hipótese em que o processo principal é extinto sem julgamento do mérito e cessa a eficácia da medida – devem ser reparados pelo requerente, independentemente da comprovação de culpa, ou seja, de forma objetiva.

No julgamento, realizado sob as regras do Código de Processo Civil (CPC) de 1973, o colegiado reconheceu a uma companhia transportadora o direito de ser indenizada após ter um navio retido cautelarmente por 431 dias.

A empresa autora da ação cautelar firmou com a transportadora contrato de afretamento de navio para transportar 50 mil toneladas de aço do Espírito Santo até a Bélgica. Por entender que a embarcação não tinha condições adequadas para o transporte da carga, a autora pediu a concessão de liminar para que fosse impedida a saída do navio até a realização de inspeção e o fornecimento de garantia contratual.

A cautelar foi deferida, e o navio ficou retido até ser liberado pela Justiça, após a extinção do processo principal, sem julgamento do mérito, em virtude da existência de cláusula contratual em que as partes se comprometiam a submeter qualquer conflito ao foro arbitral de Londres. A arbitragem, porém, não chegou a ser instaurada pela contratante do navio.

Preju​​​ízos

Ao ingressar com a ação indenizatória, a empresa de transporte alegou ter sofrido danos materiais no montante de R$ 484.812,80, relativos às despesas durante a retenção; lucros cessantes de R$ 6.206.400,00, correspondentes ao valor diário da locação multiplicado pelo número de dias em que a embarcação ficou retida, e danos morais.

A ação foi julgada improcedente, sob o fundamento de que a autora da ação cautelar agiu dentro dos limites legais que lhe garantem o acesso à Justiça. O entendimento foi mantido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).

Ao STJ, a dona do navio sustentou que, conforme os artigos 808, III, e 811, III, do CPC/1973, é obrigação de quem requer o procedimento cautelar responder à outra parte pelo prejuízo que lhe causar a execução da medida.

Risco ass​​umido

Em seu voto, o relator, ministro Marco Buzzi, reconheceu o direito da transportadora à indenização, por entender que, como a extinção da ação principal se deveu à existência de cláusula arbitral, é perfeitamente aplicável a responsabilidade objetiva da requerente da medida cautelar – como previsto nos artigos 808, III, e 811, III, do CPC/1973.

"A recorrida, ainda que diante da existência de cláusula compromissória arbitral no contrato entabulado com a recorrente, prevendo que os conflitos entre elas deveriam ser dirimidos pelo foro arbitral de Londres, na Inglaterra, optou por ingressar com cautelar e posteriormente ajuizar ação indenizatória correspondente no Brasil, assumindo o risco do seu insucesso", afirmou.

Após pedidos de vista, os ministros Raul Araújo e Isabel Gallotti se manifestaram no sentido de que a aplicação da cautelar foi correta, com o objetivo de afastar o risco representado pelo mau estado da embarcação. Quanto à responsabilidade, Raul Araújo entendeu ser subjetiva, enquanto Isabel Gallotti seguiu o relator.

De acordo com Marco Buzzi, a análise dos autos demonstra que "não há como cogitar que a medida cautelar tivesse cunho satisfativo", visto que a retenção do navio foi requerida no intuito de garantir futura reparação de danos, "sobretudo em relação aos custos de transbordo do aço e outros supostos prejuízos decorrentes do atraso na entrega da carga".

"Caso o risco que se queria afastar dissesse respeito, propriamente, ao transporte da mercadoria de propriedade da recorrida, a cautelar deveria ter se limitado ao descarregamento do navio, sem necessidade de retenção, que, no caso, ultrapassou um ano e dois meses."

O relator destacou ainda que a reparação de eventual descumprimento contratual por parte da transportadora – fundamento da liminar deferida na ação cautelar – nunca chegou a ser pleiteada no foro competente.

Dis​tinção

Segundo Marco Buzzi, deve-se fazer a distinção entre os pressupostos de responsabilidade pelos danos decorrentes da execução da cautelar e a existência de justo motivo para concessão da medida. Enquanto a aferição de justo motivo para a cautelar se funda na evidência do direito alegado e no risco da demora (fumus boni iuris e periculum in mora), os pressupostos da responsabilização se limitam ao dano, à conduta e ao nexo causal.

O ministro salientou que não há como afastar a responsabilização pelos danos apenas com base na aparente regularidade da concessão da cautelar, como fez o tribunal de origem.

"A rigor, medidas cautelares somente são concedidas quando há justo motivo, isto é, quando há plausibilidade jurídica e perigo de dano, pelo que, se isso pudesse afastar a responsabilidade, ninguém jamais responderia pelos danos daí decorrentes, ou seja, a disciplina legal pertinente seria inócua."

Para o relator, a responsabilização "diz respeito à circunstância processual posterior à decisão liminar, sobretudo no que tange à confirmação do direito outrora salvaguardado, a qual nunca se viabiliza, por óbvio, se não a perseguir a parte requerente da tutela de urgência".

Lealdade proc​​essual

Ao analisar os pressupostos da responsabilidade objetiva no caso concreto, o ministro afirmou que, quanto à conduta, o requerente da medida cautelar descumpriu o "dever processual de viabilizar um juízo definitivo de mérito a respeito do direito outrora acautelado", conforme os artigos 808 e 811 do CPC/1973 – o que tornou inócuo o requerimento cautelar.

Sobre o nexo causal, Buzzi afirmou que o pressuposto ficou demonstrado pelo fato de que o requerente da medida, mesmo após a extinção do processo sem julgamento de mérito, sabendo que não iria instaurar o juízo arbitral, não requereu sua revogação – o que deveria fazer por lealdade processual –, permanecendo o navio retido por mais de um ano e dois meses.

"Não há como desconsiderar, como causa invencível da retenção do navio, a força da ordem judicial que a determinou, a qual foi, a propósito, devidamente impugnada e, mesmo assim, mantida por longo tempo."

Em relação ao dano, afirmou que ele ainda precisa ser confirmado.

Para o relator, concluir pelo afastamento do dever de reparação no caso julgado caracterizaria "subversão, não apenas da literalidade dos artigos 808 e 811 do CPC/1973, mas da própria lógica em que se fundam as decisões precárias do sistema de tutelas provisórias" – o qual foi mantido, em essência, no CPC em vigor.

Por maioria, a turma seguiu o entendimento do relator, reconheceu o direito de indenização e determinou a devolução dos autos às instâncias ordinárias para o exame da efetiva existência e da extensão dos danos materiais, lucros cessantes e danos morais alegados.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1641020.


Link de direcionamento para a notícia: http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/24092020-Quarta-Turma-reconhece-responsabilidade-objetiva-do-requerente-de-cautelar-por-danos-causados-pela-medida0923-8216.aspx













segunda-feira, 28 de setembro de 2020

RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO: evolução, teorias, modalidades e estudo jurisprudencial

 Giselle Borges Alves


1. Conceitos introdutórios


Segundo José Joaquim Gomes Canotilho (1993), a responsabilidade estatal pelos danos causados a terceiros decorre diretamente do Estado de Direito. Assim, a responsabilidade civil do Estado (ou responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público) é a reparação dos danos ligados a situação criada pelo Poder Público, mesmo que o autor do prejuízo não tenha sido o Estado.

Neste sentido, o Estado é uma pessoa jurídica e por isso não possui vontade ou ação própria, assim, se manifesta pelas pessoas físicas que agem na condição de seus agentes. “Logo, a relação entre a vontade e a ação do Estado e de seus agentes é de imputação direta dos atos dos agentes ao Estado, por isso tal relação é orgânica” (DINIZ, 2007, p. 615).

Também se inclui na responsabilidade do Estado, as pessoas jurídicas que são seus auxiliares, ou seja, aquelas que possuem não só personalidade jurídica de direito público, como também as que possuem personalidade jurídica de direito privado e são prestadoras de serviço público no regime de concessão ou delegação, inclusive as sociedades de economia mista. Sendo assim, a responsabilidade civil do Estado não está disciplinada apenas no Direito Civil, mas principalmente no Direito Público (Direito Administrativo, Direito Constitucional, Direito Internacional Público etc.) (DINIZ, 2007).

Cunha Júnior (2013, p. 369) prefere a adoção da nomenclatura responsabilidade extracontratual do Estado por comportamentos administrativos e conceitua como uma “obrigação que lhe incumbe de reparar os danos lesivos a terceiros e que lhe sejam imputáveis em virtude de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos”. Subdivide a responsabilidade extracontratual a partir da decorrência de “comportamentos administrativo”, “atos legislativos” e “atos judiciais”.

 

2. Fundamentos da responsabilidade civil do Estado

O principal fundamento que norteia a responsabilidade civil do Estado é o princípio da igualdade (isonomia). Por este, deve haver igual repartição dos encargos públicos entre os cidadãos (DINIZ, 2007).

Quando se trata das relações entre Estado e administrado, a responsabilidade civil funda-se na teoria do risco. Aplica-se, então, a responsabilidade objetiva se o dano é derivado de atos comissivos dos agentes do Estado (art. 37, §6º da CF) e a responsabilidade subjetiva se o dano é advindo de uma prática omissiva (DINIZ, 2007).

De acordo com Cunha Júnior (2013) a responsabilidade por omissão do Estado é subjetiva pela falta/culpa administrativa. Em algumas situações os tribunais aplicam o artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor, invertendo o ônus da prova diante da impossibilidade de comprovação que o serviço existiu de forma insuficiente ou sequer existiu. Cunha Júnior (2013, p. 379-380) exemplifica que pode ocorrer a responsabilidade por ato omissivo, diante de acontecimentos relacionados a fato da natureza e comportamento material de terceiros (atuação danosa não impedida pelo Estado).

Nas relações entre Estado e funcionário, a responsabilidade será sempre subjetiva, pois o direito de regresso do Estado contra o agente faltoso está condicionado à culpa ou dolo deste, conforme definido na Constituição Federal de 1988, no art. 37, §6º e no art. 43 do Código Civil.


3. Divisão da responsabilidade civil do Estado

Para tratar do tema escolhemos a doutrina de Maria Helena Diniz, que subdivide a responsabilidade do Estado em: (a) responsabilidade civil aquiliana do Estado por atos administrativos; (b) responsabilidade civil do Estado por atos legislativos; (c) responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais; (d) Responsabilidade civil do Estado na ordem internacional. Vejamos cada uma das divisões propostas pela autora.


3.1. A responsabilidade civil aquiliana do Estado por atos administrativos

 

Para tratar da responsabilidade aquiliana ou extracontratual é preciso retomar a origem histórica da responsabilidade civil do Estado.

1ª Fase: TEORIA DA IRRESPONSABILIDADE à Surgida no Estado Absolutista. Fundamento: soberania do Estado. Autoridade do Rei era incontestável. Esta primeira fase trouxe o período da irresponsabilidade absoluta do Estado. Neste período, o dano era ressarcido pelo próprio funcionário público e na França existia a Lei de 38 pluvioso do Ano VIII, em que havia previsão da responsabilidade por danos resultantes de obras públicas, por prejuízos causados por gestão do domicílio privado do Estado, ou pelas coletividades públicas locais (DINIZ, 2007).

Essa teoria foi combatida sob o argumento de que o Estado deve tutelar direitos e não se eximir de responder por atos comissivos ou omissivos que venham a lesar terceiros. Segundo os oposicionistas, todos, inclusive o Estado, são titulares de direitos e obrigações. Atualmente a teoria da irresponsabilidade não encontra respaldo.

2ª Fase: TEORIA CIVILISTA à Surgida no século XIX juntamente com o período Iluminista. Passa-se a distinguir os atos de império dos atos de gestão. Nessa fase, segundo Venosa (2012), a responsabilidade do Estado dependia da perquirição de culpa (teoria também conhecida como teoria civilista da culpa, teoria da culpa civil ou da responsabilidade subjetiva). Vejamos a configuração do período para os atos praticados pelo Estado:

a)            Atos de Império: atos praticados pelo Estado-Administração com prerrogativas e privilégios de autoridade, sem qualquer necessidade de autorização judicial, o que modernamente se aproxima do poder de polícia da Administração. Atos de império pressupõem um direito especial do Estado. Ocorre quando age no exercício de sua soberania e em razão do império, não podendo ser responsabilizado pelos seus atos lesivos.

b)            Atos de Gestão: praticados pelo Estado-Administração em situação de paridade com os particulares. Adotam o direito comum. Ocorre quando o Estado procede como pessoa privada, sendo responsabilizado na gestão de seu patrimônio pelos prejuízos que causa.

A teoria civilista, segundo Diniz (2007), também não foi aceita por muito tempo, pois pouco importa para quem sofreu o ilícito, a origem do ato (de gestão ou de império), o que é sempre necessário é o restabelecimento do status anterior e a recomposição do patrimônio. E, além disso, há enorme dificuldade em caracterizar na atualidade o que seria um ato puramente de gestão ou de império.

3ª Fase: TEORIAS PUBLICISTAS à A responsabilidade civil do Estado sai da teoria civilista e encontra seu fundamento no direito público com base no princípio da igualdade de todos perante a lei, pois os ônus ou encargos devem ser equitativamente distribuídos. Não é justo que, para benefício da coletividade, somente um sofra os encargos. Estes deverão ser suportados por todos indistintamente (DINIZ, 2007).

Dirley da Cunha Júnior (2013) informa que atualmente as teorias publicistas da responsabilidade estatal, se subdividem em duas: teoria da culpa administrativa ou culpa do serviço; e teoria do risco. De acordo com o autor, o administrativista Hely Lopes Meirelles ainda subdivide a teoria do risco em risco administrativo e risco integral.

Abaixo seguem algumas considerações de Dirley da Cunha Júnior (2013, p. 370-372) sobre as teorias publicistas da responsabilidade extracontratual do Estado:

a)    Teoria da culpa administrativa ou culpa do serviço: essa teoria distingue a culpa individual do agente da culpa administrativa ou anônima do serviço. Não indaga sobre a culpa subjetiva individual do agente. Concentra-se na ideia de culpa do serviço. Ocorre quando: (1) o serviço não existiu ou não funcionou, devendo funcionar; (2) o serviço funcionou mal; ou (3) o serviço atrasou. Nestes casos, a responsabilidade continua sendo subjetiva (baseada na culpa lato sensu), mas não está amparada na culpa individual do agente público. Não existe individualização pessoal. Assim, a análise se dá pelo serviço, conforme as hipóteses dos itens 1, 2 e 3.

b)    Teoria do risco: fundamento da responsabilidade objetiva do Estado. Aspectos: (1) risco inerente a atividade administrativa; e (2) necessidade de repartir não apenas os benefícios, mas também o ônus da ação estatal (repartição de encargos suportados). A reparação dos danos causados pelos atos administrativos também deve ser suportada por todos. Não se cogita culpa administrativa (culpa do serviço ou do agente). Conforme destaca o autor, na presença de nexo de causalidade entre o comportamento estatal e o dano a terceiro, o Estado responde. Na esteira de Hely Lopes Meirelles, Cunha Júnior (2013), subdivide a teoria do risco em risco administrativo (admite causas excludentes responsabilidade) e risco integral (não admite excludente de responsabilidade).

Em resumo, pelas ideias do autor, a teoria do risco incide sem perquirir culpa e tanto sobre atos lícitos como sobre atos ilícitos. A teoria da culpa administrativa perquire a culpa administrativa e incide apenas sobre atos lícitos, posto que tem como base o serviço público.

Segundo Diniz (2007) e Venosa (2012), existem algumas teorias que fundamentaram a responsabilidade civil do Estado:

a)  Culpa administrativa do preposto: Por esta teoria não há desvinculação da responsabilidade do Estado da noção de culpa do seu agente. Fala-se, então, em culpa do serviço público prestado (não há pessoalidade). Estado só pode ser responsabilizado se houver culpa do agente, preposto ou funcionário, de maneira que o prejudicado terá de provar o ilícito do agente público para que o Estado responda pelos danos.

b)  Acidente administrativo ou falta impessoal do serviço público: parte do pressuposto de que os funcionários fazem um todo uno e indivisível com a própria administração, e se nessa qualidade de órgãos lesarem terceiros por uma falta cometida, nos limites da função, a pessoa jurídica é responsável. Não cabe indagar culpa do agente público.

c)  Risco integral: A teoria do risco substitui a ideia de verificação do dolo ou culpa para consagrar apenas a necessidade de demonstração do nexo causal, ligando a conduta e o dano advindo, em decorrência do risco inerente à atividade administrativa. Cabe indenização estatal de todos os danos causados por comportamentos comissivos dos funcionários aos direitos de particulares. Trata-se da responsabilidade objetiva do Estado, bastando a comprovação da existência do prejuízo. Assim, com base na teoria do risco basta que haja dano, nexo causal com o ato do funcionário e que este se ache em serviço no momento do evento prejudicial ao particular. Esta foi a teoria adotada pelo Código Civil de 2002 no art. 43 e pela Constituição Federal no art. 37 § 6º. Há tendência doutrinária de que tal responsabilidade funda-se na teoria do risco administrativo, conforme sustentado por Hely Lopes Meirelles (2002) e Diógenes Gasparini (2002).

De acordo com Venosa (2012), seguindo a esteira de Hely Lopes Meirelles, a teoria do risco se subdivide: risco administrativo e risco integral.

è Risco administrativo: admite excludentes de responsabilidade;

è Risco integral: não admite excludente de responsabilidade.

Entretanto, grande parte da doutrina não aceita essa diferenciação e afirma que ambas as hipóteses admitem a análise de excludentes.

O sistema de responsabilização do Estado é basicamente o mesmo do direito privado. O que muda é o sistema de avaliação da culpa para as pessoas de direito público. O ente público responde pela teoria do risco administrativo[1], e o servidor, causador do dano, responde por culpa, na ação regressiva contra ele movida pela Administração.


4ª Fase: TEORIA DO RISCO-PROVEITO (Celso Antônio Bandeira de Mello, 2004) à pressupõe sempre ação positiva do Estado, que coloca terceiro em risco (pessoalmente ou seu patrimônio), em benefício da instituição governamental ou da coletividade, que o atinge individualmente, e atenta contra a igualdade de todos diante dos encargos públicos, lhes atribuindo danos anormais. Jamais será proveniente de omissão, mas sempre de ato positivo. Essa teoria prevalece sempre quando o serviço apresenta falha, causando dano a terceiro, neste caso a responsabilidade será subjetiva.

De acordo com Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (2007), o lesado pode propor indenização contra o funcionário, contra o Estado ou contra ambos, como responsáveis solidários nos casos de culpa ou dolo. Assim, de acordo com Maria Helena Diniz é aplicável a denunciação da lide no caso da responsabilidade civil do Estado (art. 70, III do CPC) (DINIZ, 2007).

O art. 37 § 6º da CF trata da responsabilidade por ato comissivo (atuação positiva). Sem uma ação positiva não há aplicação da responsabilidade objetiva do Estado. Nestes casos, o Estado só se liberará do dever ressarcitório se faltar o nexo entre o ato comissivo e o dano, isto é, se não causou a lesão que lhe é imputada ou se a situação de risco a ele atribuída não existiu ou foi irrelevante para produzir o prejuízo.

Em caso de dano por comportamento omissivo, a responsabilidade é subjetiva. O Estado responde por omissão, quando, devendo agir, não o faz, incorrendo em ilícito (DINIZ, 2007, p. 622). Exemplo: omissão do Estado em prevenir enchentes, por não ter providenciado a canalização de rios, conservação das redes de esgoto ou redes pluviais; negligenciar a conservação de estradas.

Quanto às excludentes de responsabilidade civil, para a força maior (fato da natureza) ser uma excludente da responsabilidade civil do Estado, exige-se que seja realmente comprovado que era irresistível, inevitável e imprevisível para que, assim, fique bem caracterizada a inimputabilidade da entidade pública, caso contrário haverá o dever de indenizar (DINIZ, 2007, p. 624).

 

3.2. Responsabilidade das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público

 

De acordo com decisão do STF do ano de 2005, a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, limita-se ao usuário de serviço, não se estendendo ao não-usuário do serviço prestado (RE 262.651, Relator Ministro Carlos Velloso). Esta jurisprudência de acordo com Cunha Júnior (2013, p. 372-373), se aplicava aos serviços uti singuli, que possui usuários certos e determinados não aplicável aos serviços públicos oferecidos de forma universal: “Quando se cuida, porém, de serviços uti universi, que são prestados a usuários incertos, [...] a responsabilidade será objetiva, pois todos os administrados são usuários universais desses serviços”.

No entanto, em 2009, conforme ressaltado por Cunha Júnior (2013), tivemos uma modificação de entendimento do STF, no julgamento do RE 591.874, com relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, tendo assentado que a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas prestadora de serviço público alcança usuários e não usuários, o que decorre da interpretação do artigo 37, §6º da Constituição Federal, que não faz qualquer diferenciação.

Importante: a responsabilidade dos prestadores de serviço público também pode ser aferida com fundamento no direito do consumidor, tanto na modalidade de consumidor direto como indireto (bystander), pela aplicação dos artigos 2º, 17 e 29 do Código de Defesa do Consumidor. No entanto, é importante salientar que o CDC abrange a prestação de serviço público uti singuli, não abrange nas suas regras, o serviço uti universi.

 

3.3. Responsabilidade civil do Estado por atos legislativos

 

De acordo com Venosa (2012) não pode haver responsabilidade por ato típico (lei) formal, abstrato e de sentido geral. Só há possibilidade de responsabilização no caso de leis concretas e de efeito imediato, que atingem diretamente o patrimônio das pessoas (normas de efeitos concretos), normas que embora sejam chamadas de leis possuem conteúdo de ato administrativo. Em linhas gerais, a edição da lei por si só, não causa dano.

REGRA à irresponsabilidade por danos resultantes de atos legislativos. Não há indenização por lei de efeito impessoal e abstrato, pois é impossível haver dano abstrato.

EXCEÇÃO à Estado responde por danos causados por atos legislativos inconstitucionais que geraram prejuízos concretos a particulares.

Direito de regresso: de maneira geral “o Estado que paga indenização ao lesado terá direito de regresso contra o lesante, mas não haverá tal ação regressiva contra o legislador faltoso, visto que ele se encontra, relativamente aos demais agentes públicos, numa posição mais favorável ante o disposto no art. 53 da CF” (DINIZ, 2007).

 

3.4. Responsabilidade quanto aos atos do Poder Judiciário

 

Por muito tempo prevaleceu a teoria de que o Estado não era responsável pelos atos do Poder Judiciário, sob o fundamento da independência dos poderes. Posição atualmente superada. A orientação anterior era baseada no fato do Executivo não poder interferir nas decisões judiciais.

No entanto, prevaleceu a ideia de que o Estado deve responder pelas falhas dos serviços judiciários (aplicação da teoria francesa da falta do serviço). Se o Estado falha, retardando ou suprimindo as decisões por desídia de servidores, greves ou mazelas do aparelhamento, aplica-se a responsabilidade em sentido lato. Portanto, o Poder Judiciário pode ter soberania, mas não é um superpoder (VENOSA, 2012).

A Constituição de 1988, prevê uma das espécies de responsabilidade do Estado por erro judiciário, no art. 5º, LXXV: “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.  Esta abrange tanto os prejuízos morais quanto os patrimoniais. Entretanto, nas demais hipóteses de má prestação jurisdicional, o sistema indenizatório não poderá interferir no sistema jurisdicional, no mérito das decisões e na coisa julgada, pois para reverter estes danos existe todo o sistema recursal (VENOSA, 2012).

Erro judiciário é julgamento errôneo, decisão equivocada. Então, o art. 5º, LXXV é exceção ao princípio da responsabilidade objetiva descrita no art. 37, §6º da CF (VENOSA, 2012). Aplica-se, portanto, na responsabilidade por atos do Poder Judiciário, como regra geral a responsabilidade subjetiva.

Desde o Código de Processo Civil anterior, o juiz respondia pessoal, civil e criminalmente por dolo ou fraude, quando omite, retarda ou recusa, injustificadamente, providencias que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte (art. 133 do CPC/1973). No Código de Processo Civil de 2015, tivemos a manutenção do entendimento, quando no artigo 143 prevaleceu a previsão de responsabilidade civil, inclusive de forma regressiva, quando o juiz nas suas funções proceder com dolo ou fraude (inciso I) e quando recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte (inciso II), sendo que neste último caso, a hipótese de incidência da norma ocorre após o requerimento da parte e a falta de apreciação do mesmo, no prazo de 10 dias, o que garante objetividade e segurança para as situações que ensejam aplicação do dispositivo.

Entretanto, Venosa (2012) ressalta que independência funcional e liberdade de julgar, que deságuam na liberdade do cidadão, ficariam prejudicados com um juiz amedrontado e sob permanente espada da responsabilização. Sustenta Venosa (2012) que nas hipóteses de dolo ou fraude do juiz, o que deve haver é a responsabilidade do Estado e, se for o caso este deverá acionar regressivamente o magistrado.

 “A tendência da doutrina é admitir somente a responsabilidade subjetiva para as reparações de danos envolvendo a atividade jurisdicional, pois esta se mostra absolutamente incompatível com a responsabilidade objetiva.” (VENOSA, 2012, p. 107).

O STF reconheceu expressamente a responsabilidade subjetiva do Estado, por ato judicial, ao reconhecer o error in judicando do juiz (RE 32.519/RS e RE 69.568/SP).

 


REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

 

BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo. 3. ed. v. 1. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

 

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Manual de Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.

 

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 2008.

 

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 12. ed. rev. amp. atual., Salvador: Juspodivm, 2013.

 

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: responsabilidade civil. v.7., São Paulo: Saraiva,  2007.

 

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 7.ed. rev. atual., São Paulo: Saraiva, 2002.

 

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17.ed. rev. atual. amp., São Paulo: Malheiros, 2004.

  

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 27ª ed. São Paulo, 2002.

 

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: responsabilidade civil. v.4. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

 

 

 



[1] Teoria do risco administrativo: O risco administrativo torna o Estado responsável pelos riscos de sua atividade administrativa, mas não pela atividade de terceiros, da própria vítima ou de fenômenos naturais, alheios à sua atividade. Conforme a doutrina de Cavalieri Filho se "o Estado, por seus agentes, não deu causa a esse dano, se inexiste relação de causa e efeito entre a atividade administrativa e a lesão, (...) o Poder Público não poderá ser responsabilizado". (CAVALIERI FILHO, 2008. p.253).


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