Tormentosa questão em torno da legitimidade (ou não) da inovação trazida pela Lei Complementar 118/05 tem movimentado o Poder Judiciário, sobretudo os Tribunais Superiores nos últimos anos. De fato, em uma rara demonstração de robustez argumentativa, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sedimentou-se sobre o tema. Contudo, agora se vê obrigada a revisitar a sua orientação ao julgamento concluído no Supremo Tribunal Federal no ano passado (com decisão discrepante, isto é, em outro sentido).
O artigo 168, inciso I, do Código Tributário Nacional, dispõe que o direito de pleitear a restituição do indébito (tributo recolhido a maior ou indevidamente) extingue-se com o decurso do prazo de cinco anos, contados da data da extinção do crédito tributário (nas hipóteses dos incisos I e II do artigo 165, que cuidam do pagamento indevido ou a maior ou, ainda, erro).
O artigo 150, parágrafo 4º, por sua vez, estabelece que o prazo para a homologação do lançamento será de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador. Uma vez expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito.
Levando em consideração que a regra geral na hipótese de lançamento por homologação é o decurso do prazo máximo (de cinco anos) com a ocorrência da homologação tácita, o Superior Tribunal de Justiça construiu na sua jurisprudência a conhecida “tese dos 5+5” através da conjugação de tais dispositivos (art. 168, I, c/c o art. 150, § 4º, ambos do CTN).
Sobreveio a malsinada Lei Complementar 118/05, que no seu artigo 3º, previu que para efeito de interpretação do artigo 168, I, do CTN, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado, e não mais da homologação tácita (com o decurso do prazo de até cinco anos, adicional ao decurso do prazo de cinco anos do art. 168, I).
Além disso, a LC 118/05 estabeleceu, no seu artigo 4º, que entraria em vigor 120 dias após sua publicação, mas que o artigo 3º deveria aplicar-se aos atos e fatos pretéritos, vez que era meramente interpretativo do artigo 168, I, na forma do artigo 106, inciso I, também do CTN (que versa sobre a retroatividade da lei interpretativa).
Ora, restou evidente que a inovação legislativa trazida pela LC 118/05 pretendeu agravar a situação dos contribuintes e criar regra nova àquela anteriormente consagrada, especialmente na seara jurisprudencial (com a criação pelo STJ da “tese dos 5+5”).
Em razão disso, o STJ foi acionado a pronunciar-se em relação ao teor da LC 118/05. Decidiu no sentido de sua inconstitucionalidade:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. LEI INTERPRETATIVA. PRAZO DE PRESCRIÇÃO PARA A REPETIÇÃO DE INDÉBITO, NOS TRIBUTOS SUJEITOS A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA.
1.Sobre o tema relacionado com a prescrição da ação de repetição de indébito tributário, a jurisprudência do STJ (1ª Seção) é no sentido de que, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o prazo de cinco anos, previsto no art. 168 do CTN, tem início, não na data do recolhimento do tributo indevido, e sim na data da homologação — expressa ou tácita — do lançamento. Segundo entende o Tribunal, para que o crédito se considere extinto, não basta o pagamento: é indispensável a homologação do lançamento, hipótese de extinção albergada pelo art. 15, VII, do CTN. Assim, somente a partir dessa homologação é que teria início o prazo previsto no art. 168, I. E, não havendo homologação expressa, o prazo para a repetição do indébito acaba sendo, na verdade, de dez anos a contar do fato gerador.
2. Esse entendimento, embora não tenha a adesão uniforme da doutrina e nem de todos os juízes, é o que legitimamente define o conteúdo e o sentido das normas que disciplinam a matéria, já que se trata do entendimento emanado do órgão do Poder Judiciário que tem a atribuição constitucional de interpretá-las.
3. O art. 3º da LC 118/05, a pretexto de interpretar esses mesmos enunciados, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a ‘interpretação’ dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal.
4. Assim, tratando-se de preceito normativo modificativo, e não simplesmente interpretativo, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venha a ocorrer a partir da sua vigência.
5. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI).
6. Arguição de inconstitucionalidade acolhida” (STJ – Corte Especial – AI nos EREsp. 644.736/PE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJ de 27.08.2007).
Posteriormente, tal orientação foi reiterada pelo STJ no âmbito do julgamento de recurso especial representativo de controvérsia, sob o rito dos recursos repetitivos, quando decidiu que:
“(...) 1. O princípio da irretroatividade impõe a aplicação da LC 118, de 9 de fevereiro de 2005, aos pagamentos indevidos realizados após a sua vigência e não às ações propostas posteriormente ao referido diploma legal, posto norma referente à extinção da obrigação e não ao aspecto processual da ação correspectiva. (...).
3. Isto porque a Corte Especial declarou a inconstitucionalidade da expressão ‘observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, I, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, constante do artigo 4º, segunda parte, da Lei Complementar 118/05 (AI nos ERESP. 644.736/PE, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, julgado em 06.06.2007). (...)” (STJ — 1ª Seção — RESp. 1.002.932/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 18.12.2009).
Até esse ponto, a jurisprudência do STJ permaneceu mansa e pacífica. Contudo, recentemente, o Supremo Tribunal Federal concluiu julgamento no qual decidiu que: “Reconhecida a inconstitucionalidade do art. 4º, segunda parte, da LC 118/05, considerando-se válida a aplicação do novo prazo de 5 anos tão somente às ações ajuizadas após o decurso da vacatio legis de 120 dias, ou seja, a partir de 9 de junho de 2005” (STF — Pleno — RE 566.621/RS, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 11.10.2011).
Como já é de se imaginar, a questão bate agora à porta do STJ novamente. Em julgamento ocorrido em 23 de maio de 2012 e cujo acórdão foi publicado em 4 de junho de 2012, o STJ decidiu:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (ART. 543-C, DO CPC). LEI INTERPRETATIVA. PRAZO DE PRESCRIÇÃO PARA A REPETIÇÃO DE INDÉBITO NOS TRIBUTOS SUJEITOS A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. ART. 3º, DA LC 118/2005. POSICIONAMENTO DO STF. ALTERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ. SUPERADO ENTENDIMENTO FIRMADO ANTERIORMENTE TAMBÉM EM SEDE DE RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA.
1. O acórdão proveniente da Corte Especial na AI nos ERESp. nº 644.736/PE, Relator o Ministro Teori Albino Zavascki, DJ de 27.08.2007, e o recurso representativo da controvérsia RESp. n. 1.002.932/SP, Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 25.11.2009, firmaram o entendimento no sentido de que o art. 3º, da LC 118/2005 somente pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência. Sendo assim, a jurisprudência deste STJ passou a considerar que, relativamente aos pagamentos efetuados a partir de 09.06.2005, o prazo para a repetição do indébito é de cinco anos a contar da data do pagamento; e relativamente aos pagamentos anteriores, a prescrição obedece ao regime previsto no sistema anterior.
2. No entanto o mesmo tema recebeu julgamento pelo STF no RE n. 566.621/RS, Plenário, Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 04.08.2011, onde foi fixado marco para a aplicação o regime novo de prazo prescricional levando-se em consideração a data do ajuizamento da ação (e não mais a data do pagamento) em confronto com a data da vigência da lei nova (9.6.2005).
3. Tendo a jurisprudência deste STJ sido construída em interpretação de princípios constitucionais, urge inclinar-se esta Casa ao decidido pela Corte Suprema competente para dar a palavra final em temas de tal jaez, notadamente em havendo julgamento de mérito em repercussão geral (arts. 543-A e 543-B, do CPC). Desse modo, para as ações ajuizadas a partir de 9.6.2005, aplica-se o art. 3º, da Lei Complementar n. 118/2005, contando-se o prazo prescricional dos tributos sujeitos a lançamento por homologação em cinco anos a partir do pagamento antecipado de que trata o art. 150, § 1º, do CTN.
4. Superado o recurso representativo da controvérsia RESp. n. 1.002.932/SP, Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 25.11.2009.
5. Recurso especial não provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/2008” (STJ – 1ª Seção – RESp. 1.269.570/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJ de 04.06.2012 – sem os grifos originais).
Tal decisão evidentemente significa uma reviravolta na jurisprudência até então mansa e pacífica do STJ a respeito do tema, isto é, cuida-se de um câmbio de 180 graus no sentido e direção que rumavam. É clara hipótese de mudança de jurisprudência mansa e pacífica.
A decisão foi objeto da oposição de embargos de declaração. Dentre as possíveis questões que podem ser levantadas para nova análise pelo STJ destaca-se a possível modulação no tempo dos efeitos da sua decisão, em homenagem às razões de segurança jurídica inerentes ao tema que, como visto, teve verdadeira reviravolta jurisprudencial.
Se é bem verdade que o STJ deve adequar a sua jurisprudência mansa e pacífica ao julgamento concluído no STF sobre o mesmo tema, é igualmente verdade que há razões de segurança jurídica de sobra para que a sua decisão possa dar-se a partir de certo momento.
Desse modo, em razão da mudança de jurisprudência no âmbito do STJ (com a superação da orientação pacífica expressada sob o rito dos recursos repetitivos no RESp 1.002.932 pelo RESp 1.269.750), ocasionada pela conclusão do julgamento do STF em sentido diverso (no RE 566.621), cabe ao STJ integrar a sua decisão (agora que foi novamente chamada a pronunciar-se sobre o tema) para modular no tempo a sua adequação ao precedente do STF com o objetivo de atender a segurança jurídica na situação em foco.
Ora, o momento a partir do qual essa mudança jurisprudencial deve valer é variável, na medida em que pode ser, por exemplo, a data da decisão em foco no âmbito do STJ (23.5.2012), a sua publicação (4.6.2012), a data da decisão do STF (4.8.2011), a sua publicação (11.10.2011), ou ainda, outro momento que seja mais significativo para tal adequação.
De fato, as razões de segurança jurídica giram em torno de questões fáticas, que se consolidaram com o passar do tempo, e jurídicas, na medida em que lhe é subjacente a proteção da confiança legítima dos jurisdicionados e a boa-fé objetiva de todos aqueles que se comportaram em obediência a jurisprudência mansa e pacífica e que, nesse momento, se veem surpreendidos com a reviravolta de repente experimentada.
Por óbvio, com isso não se quer dizer que a jurisprudência dos Tribunais Superiores não possa ser oscilante durante certo período de tempo ou de tempos em tempos, em decorrência das mais variadas circunstâncias, como a mudança da composição, o amadurecimento da questão jurídica e a observância de situações fáticas diferentes, dentre outras.
O que se busca pontuar nesse momento é o seguinte: quando há mudança de jurisprudência, é necessário que a nova orientação seja aplicada a partir do momento que ocorreu. Em outras palavras, existia certa orientação em determinado sentido, que era seguida e aplicada tanto pelo Poder Judiciário como pelas autoridades administrativas e levada em conta pelos contribuintes, que se organizaram quando ajuizaram ações com a referida orientação como paradigma.
Se de repente há uma reviravolta e essa orientação resta superada por outra, no sentido oposto, então o período passado, cujo transcurso se deu na mais absoluta normalidade, inclusive e especialmente em estrita obediência àquela orientação anterior que hoje resta superada, deve ser preservado.
Isso ocorre rotineiramente com a edição de leis novas, por exemplo. Em atendimento ao princípio da irretroatividade ela vale de sua edição em diante, isto é, não alcança o período pretérito, quando o fato ou a conduta foi albergado por outra lei, que agora foi revogada ou modificada pela nova.
Por óbvio, não se está dizendo que a natureza da prestação jurisdicional seja idêntica à emanação legislativa. São atividades estatais eminentemente diversas. Contudo, é possível identificar ao menos um ponto comum: a criação de norma, tanto na edição de lei nova (que modifica ou revoga a anterior) como também na mudança de jurisprudência (que traz orientação diametralmente oposta àquela anteriormente consagrada). Em razão disso, nada mais justo, equânime e até razoável, que sua aplicação se dê para o futuro, respeitando-se os fatos pretéritos, cuja ocorrência não estava albergada à sua incidência.
Com efeito, o jurisdicionado que se comportou em absoluta consonância com a orientação consagrada anteriormente não pode ser penalizado em razão da mudança na orientação do tribunal. É como se quando ele agisse (lá no passado), devesse ficar permanentemente atento ao futuro, que viria a refletir diretamente nas suas ações do passado. É fácil imaginar a confusão que o raciocínio levaria.
E mais ainda. Seria a consagração institucionalizada da máxima insegurança jurídica a reinar entre o mundo dito civilizado. Ora, se é bem verdade que a orientação de um tribunal pode oscilar em determinados casos, é igualmente verdade que quando isso ocorre com uma reviravolta jurisprudencial, então nenhuma consequência ou dano poderia ser atribuído ao jurisdicionado (que deveria ter suas situações pretéritas e em acordo com a orientação anterior respeitadas e mantidas).
E muito mais do que desrespeitar o cidadão ordeiro e que agiu de acordo com a orientação então reinante, o STJ quando promove mudança jurisprudencial sem qualquer cautela ou cuidado com os jurisdicionados acaba por amesquinhar o seu próprio papel institucional (especialmente no tocante à uniformização de jurisprudência). Com efeito, ao invés de atuar buscando a pacificação social, acaba por padronizar tudo o tempo todo, em clara desvalorização de sua atividade jurisdicional.
Em suma, com o julgamento dos embargos de declaração nos autos do RESp 1.269.570, o STJ tem uma oportunidade ímpar para adequar a sua jurisprudência mansa e pacífica ao julgamento concluído no STF (RE 566.621). Para tanto, basta que promova a modulação temporal dos efeitos de sua decisão, para que ela passe a valer a partir de certo momento em diante, como vimos.
Isso, a um só tempo, engrandeceria a atuação do tribunal no cuidado e na proteção dos seus jurisdicionados, preservaria a pacificação social alcançada com a sua decisão anterior, respeitaria as situações pretéritas em atendimento às razões de segurança jurídica e atenderia ao teor do julgamento do STF. Vê-se, por conseguinte, que através de atuação conciliadora, o STJ conseguiria manter a pacificação social alcançada. Ao contrário, fazendo tábula rasa de seu passado firme e convicto acerca do tema, aumenta ainda mais a insegurança jurídica gerada, promove maior litigiosidade entre os contribuintes e o Fisco e amesquinha a sua atividade a mero “carimbador”. Resta saber o que será feito pelo STJ. Quem viver, verá!
Fábio Martins de Andrade é advogado, doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.