quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Deixem em paz o princípio da presunção de inocência



Por Pierpaolo Cruz Bottini *
Publicado originalmente no Conjur (link) em 08/01/2013.

"É mais fácil formular uma acusação que destruí-la, como é mais fácil abrir uma ferida que curá-la" (Faustin Helie, 1866). 

Escrever sobre a presunção de inocência pareceria, a princípio, tarefa fácil, uma vez que a garantia é consagrada pela Constituição, sacramentada por diplomas internacionais e repetidas vezes destacada em decisões judiciais como elemento fundador de um Estado de Direito.
No entanto, é preciso sempre indicar a importância, os fundamentos dos princípios e regras, mesmo que consolidados, para resguardar sua existência. E com mais veemência quando observamos frequentes manifestações pela relativização da garantia em questão, apontando-a como causa da impunidade e da tibieza estatal no combate à criminalidade.
Por isso, inauguramos a coluna em 2013 com algumas reflexões sobre o tema, talvez mais em tom de desabafo — ou de angústia — do que de análise técnica.

Origens e evolução da presunção de inocência

A ideia de que todos são inocentes até manifestação judicial definitiva em contrário é antiga. Bem antiga. Há quem aponte passagens da presunção de inocência no Direito romano[1]. De qualquer forma, a consagração do princípio na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 revela que já há alguns séculos a vedação da punição antes da confirmação judicial da culpa era tida como sustentáculo de um modelo jurídico racional.

Mas nem tudo o que é sólido é mantido eternamente em tal estado, como diria um velho pensador político. A presunção de inocência foi mitigada nos anos que antecederam aos regimes totalitários da primeira metade do século XX, em especial por juristas italianos que viam no instituto uma ideiairracional. Por todos, citemos Manzini, que desenvolveu a ideia da substituição da presunção da inocência pela presunção da não culpabilidade[2]Para o autor, o magistrado carece de condições para atestar ou presumir a inocência de alguém. Pode, no máximo, afastar a pretensão da acusação de declará-lo culpado, mas isso não significa inocência. Significa que os indícios colhidos pela investigação foram contraditados suficientemente pela defesa, afastando as premissas para uma condenação.
Ainda que revestida de cuidados retóricos, a proposta de Manzini desembocava na presunção de culpabilidade, pois para o autor cabia à defesa afastar os indícios colhidos pelo órgão estatal, ou ao menos deixar o juiz em dúvida (a incerteza ou a dúvida leva à declaração de não culpabilidade, mas não à inocência) [3]. Partia-se do princípio que as teses da acusação eram sustentáveis em si, e se não rebatidas, levavam à condenação. Invertiam-se os sinais, as incumbências das partes, e feria-se de morte a presunção de inocência.
No Brasil, tais ideias permearam a legislação do Estado Novo. O Decreto-lei 88/37 — que instituiu o Tribunal de Segurança Nacional — previa no artigo 20, 5, que “presume-se provada a acusação, cabendo ao réu prova em contrário, sempre que tenha sido preso com arma na mão, por ocasião de insurreição armada, ou encontrada com instrumento ou documento do crime”. Assim, a prática de crimes graves e o estado de flagrância suprimia a presunção de inocência, em uma fórmula não muito distante daquela adotada por alguns diplomas legislativos em vigor.
Passada a 2ª Grande Guerra, o princípio voltou a almejar caráter universal, a ponto de ser incluído expressamente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (art. XI) no Pacto de San José da Costa Rica (art. 8º), e em diversos textos constitucionais nacionais, dentre os quais no nosso, no conhecido inciso LVII do artigo 5º, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Contornos da presunção de inocência no Brasil

Com a previsão expressa da presunção de inocência na Carta Maior[4], aos poucos foram relegados à inconstitucionalidade dispositivos legais que impunham restrições de direitos em decorrência dejuízos provisórios de culpa, assim caracterizadas as decisões de magistrados ou tribunais sem caráter definitivocomo a chamada execução provisória da pena, que admitia, com base em dispositivos do Código de Processo Penal, a antecipação da sanção penal após condenação em segundo grau, mesmo que não transitada em julgado (por exemplo, na pendência de recurso especial ou extraordinário)[5].

No paradigmático HC 84.078-7/MG (julgado em 5.2.2009), o Pleno do STF decidiu pela inconstitucionalidade dessa execução provisória da pena. A decisão de impedir a execução da penaantes do trânsito em julgado da decisão condenatória foi criticada por alguns como contraproducentesob a perspectiva político criminal. Alegava-se que a morosidade do processo penal e o elevado número de recursos disponíveis, somada à necessidade do trânsito em julgado para a imposição da pena, conferiam uma sensação de impunidade, pois deixavam livres agentes já condenados em duas instâncias.
Diante de tais manifestações, o ministro Eros Grau, relator do Habeas Corpusem questão, foi enfático: “A prevalecer o entendimento que só se pode executar a pena após o trânsito em julgado das decisões do RE e do Resp, consagrar-se-á, em definitivo, a impunidade. Isso  eis o fecho de outro argumento  porque os advogados usam e abusam de recursos e de reiterados Habeas Corpus, ora pedindo a liberdade, ora a nulidade da ação penal. Ora  digo eu agora  a prevalecerem essas razões contra o texto da Constituição melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete! Não recuso significação ao argumento, mas ele não será relevante, no plano normativo, anteriormente a uma possível reforma processual, evidentemente adequada ao que dispuser a Constituição. Antes disso, se prevalecer, melhor recuperarmos nossos porretes...”.
Assim, restou — naquele momento — consolidada a presunção de inocência, com o rechaço pela Corte Constitucional de qualquer imposição antecipada de pena antes do trânsito em julgado. E nessa linha seguiu o ministro Joaquim Barbosa, ao negar pedido de prisão dos réus na Ação Penal 470 antes de condenação definitiva.

Imposição automática de medidas cautelares processuais penais de caráter pessoal

A consolidação da presunção de inocência, no entanto, foi distorcida por um fenômeno legislativo recorrente: a imposição automática de medidas cautelares pessoais diante da gravidade dos crimes imputados.

Inúmeras leis foram aprovadas pelo Congresso Nacional estabelecendo a prisão preventiva obrigatória de réus acusados da prática de determinados crimes, sob a forma de vedação de liberdade provisória. A Lei 8.072/90, artigo 2º, II (crimes hediondos), Lei 9.613/98, artigo 3º (lavagem de dinheiro), Lei 10.826/03, artigo 21 (armas) Lei 11.343/06, artigo 44 (drogas), previam que em caso de prisão em flagrante, o agente não poderia ser beneficiado com a liberdade provisória dada a gravidade do delito imputado. Em outras palavras, o legislador impunha a prisão cautelar automática aos presos em flagrante.
Com o passar do tempo, tais preceitos também foram declarados inconstitucionais — em caráter incidental ou abstrato — por sua incompatibilidade com a presunção de inocência[6]. Notou o STF, em diversas oportunidades, que tais dispositivos não passavam de subterfúgio para mitigar a presunção constitucional de inocência[7]. As medidas cautelares — prisão e mesmo outras menos gravosas — justificam-se diante de um comportamento do réu no sentido de turbar a investigação ou a persecução. A imposição de restrições a direitos automáticas, sem qualquer análise da conduta concreta do afetado, não tem natureza cautelar — pois não estão atreladas a fatos que indiquem a possibilidade de perecimento de direito ou bens — mas caracterizam uma sanção antecipada. Não por acaso, estão sempre ligadas à gravidade do crime, à hediondez da imputação, ou seja, a uma acusação cuja demonstração está ainda em curso, cuja constatação requer o exaurimento de uma instrução ainda em andamento[8].
Em outras palavras, a cautelar automática é uma execução antecipada da pena, uma vez que carece de justificativa instrumental. Portanto, conflita claramente com a presunção de inocência, sendo corretamente declarada inconstitucional em diversas oportunidades pela Corte Maior.

Mitigações à presunção de inocência

No entanto, mesmo com toda a vigilância jurisprudencial, não raro são aprovadas leis incompatíveis com a presunção de inocência. Embora não se admitam mais regras que imponham execução antecipada da pena, ou prisão preventiva obrigatória, outras tantas formas de afetação da presunção de inocência foram aprovadas pelo Legislativo e até mesmo chanceladas pelo Judiciário.

É o que ocorreu com a chamada Lei da Ficha Limpa. A Lei Complementar 135/2010 estabeleceu que são inelegíveis todos os condenados por órgão colegiado pela prática de alguns crimes elencados na norma (ex. crimes contra a fé pública, o patrimônio público ou privado, o sistema financeiro[9]). Em outras palavras, a norma previu a inelegibilidade daquele que foi considerado culpado em julgamento proferido por mais de uma pessoa, mesmo que tal decisão não seja definitiva, não tenha transitado em julgado.
Sabe-se que o STF declarou tal dispositivo constitucional (ADPF 4.578), mas isso não o isenta de críticas, nem impede que se aponte sua incompatibilidade com a presunção de inocência, como já apontamos em Coluna anterior[10].
Da mesma forma, a nova redação da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98, com a redação alterada pela Lei 12.683/12) afronta a presunção de inocência ao prever o afastamento automático do servidor público em caso de indiciamento pelo crime de lavagem de dinheiro.Pelo artigo 17-D, sempre que a autoridade policial indiciar um servidor público por lavagem de dinheiro, a consequência imediata, automática, será seu afastamento do cargo.
Mais uma vez, mitiga-se a presunção de inocência, ao impor ao réu uma pesada medida cautelar constritiva sem fundamento processual, como mera antecipação de pena, calcada em decisão provisória do delegado de Polícia[11].
Da mesma forma, o projeto de lei de reforma do Código Penal, em trâmite no Senado Federal, propôs a criminalização do enriquecimento sem causa, definido como o ato de “adquirir, vender, emprestar, alugar, receber, ceder, utilizar, ou usufruir de maneira não eventual de bens ou valores móveis ou imóveis, cujo valor seja incompatível com os rendimento auferidos pelo funcionário público em razão de seu cargo ou por outro meio lícito” (art.227).
Tal proposta também viola o princípio em comento, pois parte da presunção de que o patrimônio não justificado do servidor público não só é fruto de ilícito, mas de ilícito penal, e impõe a ele a comprovação da origem legal dos bens[12], sob pena de criminalizar seu status patrimonial.

Conclusão

Parece claro que a presunção de inocência, embora consagrada constitucionalmente, vigora pela incessante atividade jurisdicional de vigilância, pela constante declaração de inconstitucionalidade de preceitos que, expressa ou veladamente, mitigam sua aplicação. Mesmo assim, são vezeiras leis ou propostas que afetam a regra, sempre calcadas no argumento de que o respeito à disposição constitucional aumenta a impunidade e enfraquece a política criminal, em especial nos casos de réus acusados de delitos graves.

O mais preocupante é que muitas destas propostas contam com amplo apoio popular, o que se explica nas palavras de Arnaldo Malheiros Filho: “Escravos aos leões, enforcamentos em praça pública, autos-de-fé com gente ardendo na fogueira sempre foram, ao longo da história, campeões de audiência. Nossa sociedade midiática só aprofunda o sucesso das execuções sem julgamento e sem “formalidades” que protejam os direitos individuais.”[13]
No entanto, vale aqui a lição de Rui Barbosa, para quem a gravidade dos delitos imputados ao réu apenas reforça a necessidade de respeito à presunção de inocência: “Quanto mais abominável é o crime, tanto mais imperiosa, para os guardas da ordem social, a obrigação de não aventurar inferências, de não revelar prevenções, de não se extraviar em conjecturas (...) Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e execração contra os acusados. Como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito.” [14]
A redução da impunidade não está atrelada ao enfraquecimento das garantias constitucionais. Ela passa pela racionalização do processo penal, pelo desenvolvimento de sistemas de inteligência policial, pelo cuidado das autoridades em evitar nulidades que atrasam a persecução. Existem várias formas de conferir eficiência ao sistema penal sem abrir mão dos preceitos e garantias construídos pelo tempo, que protegem o cidadão contra o arbítrio, contra o mau uso do ius puniendi.
Pelo exposto, resta claro que, apesar dos anseios por uma intervenção estatal mais aguda na liberdade em nome de uma pretensa segurança, ainda vigora um limite, um parâmetro constitucional e intransponível ao menos no Estado de Direito: a inocência como o estado original de todo o cidadão brasileiro.
Afastada tal garantia, seja pela fase processual, pela gravidade do delito, ou por qualquer outra justificativa atrelada a um juízo de culpa, restará desprotegido o cidadão perante o Estado e perante seus pares, submetido a restrições de direitos antes de considerações definitivas sobre as questões por ele alegadas. Esvaziado estará o Estado de Direito, e, nesse caso, como já disse o ministro Eros Grau: “melhor recuperarmos nossos porretes...”[15]



[1] Sobre o tema, vale a leitura de MORAES, Mauricio Zanoide, Presunção de inocência no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen, 2010. Tambem um repasse histórico do tema no voto do Ministro Celso de Mello na ADPF 144/DF (j.06.08.08), que afirma já haver alusões à presunção de inocência no direito romano (´innocens praesumitur cujus nocentia non probatur´)  e em Tomás de Aquino.
[2] MANZINI, Vicenzo. Tratado de derecho penal. Tomo I. Trad. Santiago Sentis Melendo e Mariano Ayerra Redín. Buenos Aires: Ed. Juridicas Europa-America, 1951. Também sobre o tema, ver GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991, e DELMANTO JR., Roberto, Desconsideração prévia
[3] Como ensina LOPES JR., “MANZINI chegou a estabelecer uma equiparação entre os indícios que justificam a imputação e a prova da culpabilidade”, Aury, em Direito processual penal e sua confrmidade constitucional, volume 1, 5ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p191.
[4] Há quem indique que a norma constitucional não reflete o principio da presunção de inocência,mas o princípio da não culpabilidade. Sobre o tema, ver BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Deixem em paz a presunção de inocência. Revista AASP, Ano XXXII, outubro 2012, n.117, p.184
[5] Nessa linha, NERY JUNIOR, Nelson, Principios do processo na Constituição Federal, 9ª ed. São Paulo: RT, 2009, p.298
[6] No STF, ver Habeas Corpus nº 82.959/SP, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em 23.02.2006 (inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/1990); ADI 3112, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 02.05.2007 (inconstitucionalidade do art.21 da Lei 10.826/03, HC 97.256, Relator Ministro Ayres Britto, julgado em 01.09.2010 (inconstitucionalidade do art.44 da Lei de Drigas).
[7] Vale anotar que JOSÉ FREDERICO MARQUES já apontava a inconstitucionalidade da cattura obligatoria em parecer de sua lavra emitido em 1989. Ver MARQUES, José Frederico. Pareceres. São Paulo: AASP, 1993, p.9-102. No mesmo sentido, JAÉN VALLEJO, Manuel. La presunción de inocência.Revista de derecho penal y procesal penal. Buenos Aires, n.2, p.355-370, out, 2004.
[8] Como afirma SUANNES, “nada justifica que alguém, simplesmente pela hediondez do fato que se lhe imputa, deixe de merecer o tratamento que sua dignidade de pessoa humana exige”, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo legal, in LOPES JR., Aury, em Direito processual penal e sua confrmidade constitucional, volume 1, 5ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.195
[9] A norma traz outras inelegibilidades, em decorrência de hipóteses distintas, mas aqui nos interessam apenas aquelas decorrentes de condenação criminal não transitada em julgado
[10] Lei da ficha limpa fere presunção de inocência, disponível em http://www.conjur.com.br/2012-mar-13/direito-defesa-lei-ficha-limpa-fere-principio-presuncao-inocencia
[11] À incompatibilidade entre presunção de inocência e o art.17-D da Lei de Lavagem de Dinheiro dedicamos a Coluna “O afastamento do servidor na lei de lavagem de dinheiro”, disponível em http://www.conjur.com.br/2012-ago-14/direito-defesa-afastamento-servidor-lei-lavagem-dinheiro
[12] Proposta também objeto de discussão mais aprofundada em O enriquecimento ilícito e a presunção de inocência, disponível em http://www.conjur.com.br/2012-mai-08/direito-defesa-enriquecimento-ilicito-presuncao-inocencia. Ver, ainda, Sobre o tema, ver MEDINA SALAS, Marco Antonio. Consideraciones sobre la inconstitucionalidad del delito de enriquecimento ilícito. Capitulo criminológico. Revista de las disciplinas del control social. Maracaibo, vol.37, n.1, p.133-152, jan. mar. 2009, passim.
[13] MALHEIROS FILHO, Arnaldo. Texto publicado no jornal Folha de São Paulo, seção Tendências e Debates, no dia 26.07.08
[14] BARBOSA, Rui, Novos discursos e conferências. São Paulo: Saraiva, 1933, p.75, e  O dever do advogado, Rio de Janeiro: Fundação Casa do Advogado/AIDE, 1985, p.19. Trechos também citados no voto do Ministro Celso de Mello no julgamento da ADPF 144/DF
[15] HC 84.078-7/MG (julgado em 05.02.2009)


* Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.
Revista Consultor Jurídico, 8 de janeiro de 2013



sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada

Direito Empresarial
Por Arnaldo Reis Trindade*


A EIRELI é a mais nova pessoa jurídica do nosso Direito, criada pela lei nº 12.441 de 11 de Julho de 2011. A priori vale ressaltar qual a definição mais acolhida pelos doutrinadores brasileiros para a pessoa jurídica e qual a essência dessa entidade, para, a partir deste ponto, ser possível compreender a EIRELI com mais clareza.

As pessoas jurídicas são pessoas morais, reconhecidas juridicamente e capazes de serem sujeitos de direito e obrigações neste âmbito e são criadas para um fim específico, posicionamento adotado por Stolze e Pamplona[1] e Maria Helena Diniz[2]. Tem como essência, como factum principis, o fato de ser um organismo social e ter vontade própria, ou atualmente também pode ser a vontade individual - como no caso da nova figura que a pouco se integrou ao ordenamento jurídico, a EIRELI (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada.) – e, nesta pequena síntese, será apresentada a vontade que deve ser protegida pelo Direito, que não as cria, mas que apenas regula a existência destas, cuja criação visa atingir um fim específico. Para esse conceito, os pilares são nas teorias de Gierke, Zitelmann e Hariou[3], que se fundem e dão o mais puro sentido da natureza da pessoa jurídica.

A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada é uma pessoa jurídica sui generis e por isso a sua natureza jurídica precisa ser estudada com muito cuidado, os próprios doutrinadores do Direito Civil e do Direito Empresarial ainda não chegaram a um consenso quanto à natureza jurídica desta, tendo assim adotado duas teses distintas, a primeira que considera a EIRELI uma Sociedade Unipessoal e a segunda, defendida neste estudo, apresenta a EIRELI como uma nova pessoa jurídica.

            O motivo de defesa do enquadramento da EIRELLI como uma nova pessoa jurídica surge em razão de que o próprio conceito de sociedade não pode ser aplicado a uma empresa constituída por um só indivíduo, tendo em vista que a sociedade, no enfoque tanto do Direito Civil quanto do Direito Empresarial, é uma reunião de pessoas que somam recursos para um fim lícito de interesse comum.

            A EIRELI foi criada com o intuito de proteger os bens da pessoa física, que poderia ser um Empresário Individual, mas que ao se revestir desta figura corre o risco de perder todo seu patrimônio pessoal para quitar obrigações da empresa, em razão da responsabilidade ilimitada aplicada à sua personalidade jurídica, ou seja, o patrimônio da empresa e o patrimônio pessoal do empreendedor não se separam, permitindo assim que seja utilizado, em caso de dividas da empresa, todo o patrimônio pessoal do seu titular para quitá-las.

            Houve também, para proteção do credor, a criação de um limite mínimo de capital a ser integralizado na EIRELI, limite esse estabelecido na importância de 100 (cem) vezes o valor do salário mínimo vigente no momento do registro do ato constitutivo da EIRELI (Art. 980-A, do Código Civil). A respeito de uma possível atualização do valor do salário mínimo, o DNRC (Departamento Nacional de Registro do Comércio) já determinou que não será necessário o aumento regular do capital integralizado da EIRELI. Posicionamento correto, pois o requisito legal sobre o limite mínimo do capital social é apenas para a sua criação.

Quanto à desconsideração da pessoa jurídica, caso o empresário se enquadre em alguma situação que permita a aplicação do instituto, ele poderá ter seu patrimônio afetado por dívidas da empresa. O legislador até tentou impedir que isso ocorresse, incluindo o §4º ao art. 980-A, mas que restou vetado pela Presidente da República.

            Ainda sobre o capital integralizado, cabe salientar que é vedada a integralização de capital social por meio de prestação de serviços na EIRELI, razão pela qual essa só poderá ocorrer por meio de transferência de bens e por meio de dinheiro. Quanto à transferência dos bens, não haverá incidência do ITBI (Imposto Sobre a Transmissão de Bens Imóveis) em razão do disposto no Art. 36 do Código Tributário Nacional, que declara em seu inciso I que quando efetuada a incorporação do imóvel ao patrimônio da pessoa jurídica em pagamento do capital nela subscrito não haverá a incidência deste imposto.

            Ainda sobre a criação deste novo instituto jurídico, cabe ressaltar que antes da EIRELI, a única forma do empreendedor proteger seu patrimônio seria através da constituição de algum tipo de sociedade o que o obrigava a encontrar um sócio, trazendo inconvenientes para o empreendedor e para o próprio Estado, pois na prática o que mais ocorria era a utilização do cônjuge ou algum parente como sócio fictício, ou ainda uma terceira pessoa que recebia um “salário” para fingir ser sócia da empresa, o sócio “laranja”, ou seja, que só empresta seus dados ou os aluga, para que seja possível a criação da empresa. Esse fato atrasava o desenvolvimento do país, pois o empreendedor que criava sua empresa com a utilização do sócio fictício não gozava da segurança necessária para investir seus recursos.

            Outro impeditivo importante trazido pelo legislador na EIRELI é a impossibilidade de mais de uma EIRELI por pessoa. Nos termos do Art. 980-A em seu §2º a pessoa que constituir uma EIRELI, só poderá ter uma empresa dessa modalidade, posicionamento já adotado pelo DNRC.

            A verdadeira importância da criação da EIRELI, é que com esta nova pessoa jurídica, o Estado estimula o despertar de novos empreendedores, instiga os empresários que estão em situações irregulares ou de informalidade a se regularizarem e, assim, evita fraudes trazendo grandes benefícios socioeconômicos para nossa população.


* ARNALDO REIS TRINDADE é bacharelando em Direito pelo Instituto de Educação Superior Unyahna de Barreiras (IESUB) – Barreiras/BA.                                   
Texto finalizado em 10/10/2012.
Publicação: 26/10/2012.




[1] GAGLIANO; STOLZE, 2012, p. 228.
[2] DINIZ, 2012, p. 243.
[3] Apud DINIZ, 2012, p. 244.


REFERÊNCIAS
Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC) – Instruções Normativas Nº 117 e 118 de 22 de Novembro de 2011.
Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil – Vol. 1 – Teoria Geral do Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2012.
Gagliano, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil – Parte Geral – Vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2012.
SARAIVA Editora; Vade Mecum Saraiva 2012. São Paulo: Saraiva, 2012.


terça-feira, 25 de setembro de 2012

38 anos de espera: prestação jurisdicional eficiente e eficaz?

Giselle Borges

Algo que de tão corriqueiro não deveria me espantar, mas como cidadã que lida diretamente com o Judiciário brasileiro e que ainda tem esperança de uma transformação (mesmo gradual), não deixo de demonstrar uma certa indignação com o nosso "acesso à justiça".

O que me trouxe a escrever hoje foi a notícia publicada no site do Conselho Federal da OAB, no dia 24/09/2012, que segue abaixo para uma leitura crítica:


Aposentado teve de esperar 38 anos para receber precatório no ES



Vitória (ES) -Aos 68 anos de idade, o aposentado José Nascimento realizou um sonho: adquiriu uma casa própria. Ele pagava aluguel por uma residência na Vila Capixaba, em Cariacica/ES, e comprou um imóvel no bairro Eldorado, na região de Vila Bethânia, em Viana, para onde vai se mudar em breve.
“Seu” José Nascimento levou 38 anos para receber um precatório do estado do Espírito Santo. “Fiquei todo esse tempo falando com minha esposa e meus filhos que, quando recebesse o dinheiro, iria comprar uma casinha para gente morar. É o fim do aluguel”, comentou o aposentado.
O sonho começou a ser realizado em 24 de maio deste ano, quando ele e um grupo de mais de 100 pessoas compareceram ao Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJ-ES) e, em uma cerimônia feita pelo presidente do TJES, desembargador Pedro Valls Feu Rosa, receberam os alvarás para sacar no banco o dinheiro do precatório.
“Estou cumprindo a promessa que fiz à minha família. Paguei R$ 25 mil pela casa nova e logo estaremos dentro dela”, disse José Nascimento.
Ele foi servidor público municipal por 28 anos. Entrou na Prefeitura de Viana em 1º de julho de 1969 e se aposentou em abril de 1997. Casado, pai de três filhos e com quatro netos, “Seu” José Nascimento visitou o TJ-ES na segunda-feira da semana passada: “Vim mais uma vez agradecer ao Judiciário o esforço que fez para que todos nós pudéssemos receber nosso precatório”. (Com informações do TJ-ES)
(link para a notícia aqui)


Após a leitura, não pude deixar de fazer as seguintes inferências:
- Há 26 anos se fala em "instrumentalidade do processo" (Dinamarco).
- Há mais de 20 anos se fala em efetividade e celeridade da tramitação processual.
- E mesmo depois de tantos estudos e garantias, um senhor demora 38 anos para receber seu crédito no Espírito Santo.



O pior de tudo é saber que este não é um caso isolado e que muitos outros jurisdicionados estão na mesma situação.

As perguntas que tanto me faço são: (1) "Quando teoria e prática andarão juntas?"; (2) "Quando o sentido de 'justiça' passará pelos conceitos de 'prestação jurisdicional eficiente e eficaz'?

Parece cômico, se não fosse trágico. Pela notícia houve até comemoração no TJES quando finalmente este senhor pode receber o seu crédito.

Um aniversário de quase quatro décadas de espera. Será que devo parabenizar a Fazenda Pública e  o Judiciário nacional?





terça-feira, 4 de setembro de 2012

Habeas data: instrumento raro na defesa do cidadão contra abusos totalitários

Fonte: STJ

Se em seus quase 25 anos de existência, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou mais de 18 mil mandados de segurança e quase 250 mil habeas corpus, um terceiro “remédio constitucional” é bem mais raro. Os habeas data, concebidos como defesa do cidadão contra tendências totalitárias do estado, não chegam a 250. Quase empata com outro meio de garantia pouco conhecido: o mandado de injunção, que teve pouco mais de 200 casos.

Editorial de Folha de S.Paulo publicado em 1987 classificava a proposta como a mais original da Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais do Congresso Constituinte: “De utilidade evidente, este dispositivo constitucional surge como reação aos abusos dos organismos de segurança e como limite ético ao uso da informática nos mais variados setores do país”, dizia o artigo.

Apesar de questionar a efetividade futura do instrumento no combate aos abusos de autoridade, o jornal concluía: “Uma alternativa sofisticada a favor da cidadania, o habeas data terá o sentido político de declarar o fim do estado inexpugnável. Obrigará maior transparência da parte do poder público e privado. Diante de todo um conjunto de propostas desconexas e irreais que vêm encontrando espaço no Congresso Constituinte, esta merece apoio irrestrito. É um passo adiante na democratização.”

A questão das investigações sigilosas com cunho político e a abertura de arquivos que o novo instituto proporcionaria dominavam o debate público da época.

Demanda reprimida 

Não por acaso, a primeira decisão concessiva de habeas data foi proferida dias após a promulgação da nova Constituição. Em 12 de outubro de 1988, a imprensa da época já registrava que o advogado Idibal Pivetta, antigo defensor de presos políticos, havia conseguido acesso aos arquivos referentes a si mantidos pela Polícia Federal. Ele afirmava aos jornais que as seis laudas datilografadas fornecidas pelo órgão continham diversos erros e omissões, que deveriam ser retificados com o processo.

Na mesma semana, a imprensa contava dezenas de pedidos de habeas data impetrados no Supremo Tribunal Federal (STF), que acabaram remetidos ao então Tribunal Federal de Recursos (TFR). A primeira ação no TFR foi movida por um bancário gaúcho contra o Serviço Nacional de Informações (SNI).

Criação brasileira 

A ação de habeas data é criação brasileira, proposta em 1985 por José Afonso da Silva aos constituintes. Segundo o subprocurador-geral da República Pedro Henrique Niess, inspirou-se em previsões constitucionais da China, Portugal e Espanha. O objetivo dessa ação é evitar que o estado armazene informações privadas incorretas ou excessivas a respeito do cidadão.

“Ao direito de ter a informação relativa a determinada pessoa, corresponde o dever de tê-la certa e assim passá-la, bem como respeitar o direito ao resguardo, ao segredo”, afirma Niess emartigo de 1990.

O hoje subprocurador explica que a ação seria adequada caso o organismo público se negasse a fornecer informações a respeito da própria pessoa alegando segredo. “O habeas data é uma ação constitucional que tem por objeto a proteção do direito líquido e certo que tem o impetrante de conhecer as informações relativas à sua pessoa que constem de registros ou bancos de dados de entidades públicas ou de caráter público, bem como o de retificar os dados que lhe servem de conteúdo, sendo gratuito seu exercício, independentemente de lei infraconstitucional”, completa.

Inutilidade 

Apesar da efervescência inicial, a ação perdeu interesse desde sua criação. No STJ, nos últimos quatro anos, dos 54 pedidos de habeas data, somente um foi concedido, em 2009. Apenas em 2006 o número de processos desse tipo passou o número de 20, ficando na média anual de nove casos.

Conforme o doutor em direito Willis Santiago Filho, por ser um desdobramento do mandado de segurança, alguns apontariam o habeas data como uma criação inútil da Constituição de 1988, por mais dificultar que facilitar o acesso aos direitos que já seriam garantidos pelo mandado de segurança.

O próprio doutrinador, porém, cita Silva para esclarecer que, na visão do propositor do instituto, o mandado de segurança é mais restrito, por exigir demonstração de direito líquido e certo. O habeas data, ao contrário, admitiria processo de conhecimento e produção de provas relativas à incorreção dos dados. Além disso, não seria destinado apenas contra agentes estatais, mas também a entidades privadas que mantivessem bancos de dados públicos.

Resistência 

A relevância do habeas data no início do atual ciclo republicano pode ser percebida por ter sido alçado, logo nos primeiros julgamentos, à condição de digno de ser sumulado. Diz a Súmula 2 do STJ, ainda vigente: “Não cabe o habeas data (CF, art. 5, LXXII, letra "a") se não houve recusa de informações por parte da autoridade administrativa.”

Diante de ações de habeas data dirigidas diretamente ao Poder Judiciário, o TFR, e depois o STJ, entenderam não haver interesse de agir do impetrante se a autoridade administrativa não se opôs, de alguma forma, a fornecer a informação desejada.

Na época, a polêmica girava em torno de parecer da hoje extinta Consultoria Geral da República que autorizava os órgãos de segurança a negar o fornecimento de informações – e mesmo informar sobre a eventual existência de registros – que pudessem afetar a segurança nacional.

Para o ministro Ilmar Galvão, a exigência de resistência administrativa seria dispensável. No Habeas Data (HD) 4, seu voto vencido afirmava que o SNI, ao prestar informações, alegava que vinha fornecendo todos os dados requeridos pelos cidadãos de forma regular, ressalvadas apenas as situações de segurança nacional. Como o impetrante requeria acesso a todas as informações e o órgão se dispunha a fornecer apenas as que não se enquadrassem na Lei de Segurança Nacional, havia litígio e interesse de agir.

O entendimento não prevaleceu, porém. Conforme votou na ocasião o ministro Vicente Cernicchiaro, mantendo a jurisprudência estabelecida pelo TFR, o habeas data é ação constitucional de jurisdição contenciosa.

“Somente quando houver lesão, ou probabilidade de lesão a um direito, surgirá o interesse de agir, no sentido processual do termo, qual seja, a necessidade de ser solicitada a intervenção do estado através da atividade jurisdicional, a fim de a pretensão do autor ser acolhida, dada a resistência injustificada da contraparte”, asseverou.

“Não houve a postulação. Não houve a provocação. Em assim sendo, não surgiu, até agora, nenhuma lesão ou ameaça de lesão ao direito de conhecimento de registro de dados”, concluiu Cernicchiaro.

Da política à economia 

Passados 20 anos da promulgação da Constituição, o STJ analisou novo contorno do habeas data: os serviços de restrição ao crédito do consumidor. No HD 160, a Primeira Seção entendeu que a Lei 9.507/97, ao contrário da visão do inspirador do instituto em 1985, ao regulamentar a Constituição exigiu prova preconstituída do erro de informação. Não se poderia, portanto, no mesmo processo, exigir ser informado da existência de registro e ao mesmo tempo pretender retificá-lo.

No entanto, os impetrantes nesse caso conseguiram o direito de conhecer com precisão os dados que o Banco Central (BC) mantinha no Sistema Central de Risco de Crédito sobre eles. O BC alegava que já tinha atendido a solicitação, porém a ministra Denise Arruda entendeu de forma diversa.

“Trata-se de registros cadastrais de difícil compreensão para cidadãos que não tenham conhecimento do sistema operacional do banco. Dos referidos documentos não há como concluir se a inclusão dos demandantes no sistema ocorreu, ou não, em função de algum contrato realizado com o Banco do Brasil S⁄A ou com a BB Financeira S⁄A”, afirmou. Essas duas instituições estavam vedadas por ordem judicial de apresentar restrições ao crédito dos impetrantes.

“Ressalte-se que o fornecimento de informações insuficientes ou incompletas é o mesmo que o seu não fornecimento, legitimando a impetração da ação de habeas data”, concluiu a relatora.

FGTS 

Do mesmo modo, o STJ entendeu que a ação é cabível para atender a empresa que queira obter os extratos de depósitos de FGTS efetuados junto à Caixa Econômica Federal (CEF). O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) entendia que tais dados não eram pessoais e que os bancos de dados da CEF não eram públicos, já que usados apenas por si mesma.

A empresa alegava que os depósitos eram feitos em contas de sua titularidade, apenas vinculados individualmente aos empregados para garantir o eventual recebimento futuro. O ministro Castro Meira afirmou que o habeas data não seria cabível no caso de um extrato comum de conta bancária, que deveria ser tratado como matéria de consumidor, não interferindo nisso o fato de a empresa detentora do dado ser ou não pública.

Porém, no caso do FGTS, a Caixa assume função estatal de gestora do fundo, conforme definido em lei, justificando a concessão do habeas data (REsp 1.128.739).

O próprio STJ, porém, traz precedente (REsp 929.381) em que se concedeu habeas data contra a Caixa para que fornecesse extrato bancário comum. O ministro Francisco Falcão reconheceu como correta a decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) que afirmou a legitimidade passiva da empresa pública para ação de habeas data, por exercer atividade do poder público. Submetida ao Supremo via recurso extraordinário, o processo não chegou a ser julgado naquele tribunal por acordo entre as partes.

Nocivo à Petrobras 

De modo similar, o STJ também teve como acertada a concessão de habeas data para que um empregado da Petrobras, demitido por ter sido classificado como “nocivo à empresa” em comunicação interna, tivesse acesso ao documento.

No REsp 1.096.552, a Segunda Turma entendeu que o registro mantido pela sociedade de economia mista diz respeito à pessoa do empregado, não configurando mera comunicação de uso interno.

“Não posso deixar de mencionar o objetivo primário do particular para impetrar o remédio constitucional: obtenção de documento probatório para reintegração de funcionário afastado do quadro da Petrobras, em razão de questões eminentemente políticas, ocorridas na época do regime militar”, afirmou a ministra Eliana Calmon.

“O impetrante tem evidente interesse de agir, uma vez que não lhe basta o conhecimento in abstrato da existência de algum documento ao qual materialmente não tem acesso”, completou.

Exame mental 

Uma servidora do Itamaraty também obteve direito de acessar exame psiquiátrico a que foi submetida enquanto lotada na embaixada brasileira em Nairóbi. Ela argumentava que, apesar de o Ministério das Relações Exteriores ter franqueado a ela o acesso a sua pasta funcional, os dados só iam até o ano 2000, antes de ter sido lotada no Quênia.

Ela disse que, embora tivesse realizado tais exames antes de deixar o Brasil, nos dois anos em que ficou no país africano havia sofrido acusações infundadas e sido submetida a novos exames.

Para o Itamaraty, as informações desejadas pela impetrante seriam de uso interno e exclusivo do órgão, o que afastaria o cabimento do habeas data. O ministro Nilson Naves divergiu. “Sucede, no entanto, que a garantia constitucional do habeas data é mais ampla e compreende o acesso a toda e qualquer informação, inclusive, no caso, àquelas presentes em comunicações oficiais (ofícios, memorandos, relatórios, pareceres etc.) mantidas entre a embaixada em Nairóbi e o Brasil, bem como àquelas contidas no respectivo prontuário médico, aí abrangida a conclusão do referido exame psiquiátrico”, entendeu o relator (HD 149).

Sigilo 

Para o STJ, a lei que regulou a ação constitucional também previu a possibilidade de restrição do acesso a informações sigilosas. No HD 56, a Terceira Seção decidiu de forma unânime que, se a lei estabelece um dado como sigiloso e de uso exclusivo da entidade detentora, não pode ser cedido a terceiros. No caso dos autos, tratava-se de promoção de oficial da Força Aérea, procedimento regulado por lei de 1994 e que atribuía caráter sigiloso a esse trabalho.

De modo similar, no HD 98, em que um desembargador procurava informações relativas a inquérito da “Operação Anaconda”, que tramitava em sigilo, a Primeira Seção entendeu que a medida constitucional não alcançava essa pretensão.

Afirmou o ministro Teori Zavascki: “No caso, pretende o impetrante ter acesso não exatamente a informações sobre sua pessoa ou, ainda, retificar dados constantes em repartições públicas, mas sim de obter informações de um inquérito, cuja finalidade precípua é a de elucidar a prática de uma infração penal e cuja quebra de sigilo poderá frustrar seu objetivo de descobrir a autoria e materialidade do delito.”

Herdeiros 

Também em 2008 o STJ entendeu que o direito de ação de habeas data se estende aos herdeiros. No HD 147, a Quinta Turma decidiu que o ministro da Defesa deveria fornecer informações funcionais sobre o marido para uma viúva de 82 anos, que aguardava havia mais de 12 meses a transcrição dos documentos.

Nota de concurso

O STJ já rejeitou o uso da ação constitucional como via de revisão de nota obtida em concurso público. Uma candidata a fiscal agropecuária federal tentou usar o habeas data para ter acesso aos critérios de correção da prova discursiva da banca examinadora. Segundo alegava, a nota era informação pessoal, e a banca se recusava a fundamentar a rejeição a seus recursos.

Para o ministro João Otávio de Noronha, a lei não previa nem mesmo implicitamente a possibilidade de tal medida para o fim pretendido pela candidata. A Primeira Seção também rejeitou a possibilidade de receber a ação como mandado de segurança, por inexistir no caso convergência entre o pedido e a causa de pedir do habeas data com eventual direito líquido e certo passível de proteção por mandado de segurança (HD 127).

Processo administrativo 

Também não é cabível o habeas data para se obter cópia de processo administrativo. Para o ministro Teori Zavascki, se o impetrante não busca apenas garantir o conhecimento de informações sobre si ou esclarecimentos sobre arquivos ou bancos de dados governamentais, não é caso para habeas data, mas de eventual mandado de segurança.

No recurso especial julgado pela Primeira Turma, um piloto buscava acesso a cópia integral de processo administrativo do Departamento de Aviação Civil (DAC) para posterior unificação de registros de horas de voo, de modo a habilitá-lo (REsp 904.447).

Homônima condenada

Em outro caso, porém, o STJ afastou a necessidade de habeas data para corrigir processo penal em que uma homônima foi condenada no lugar da verdadeira ré. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) entendeu que a homônima não poderia corrigir a condenação por meio de revisão criminal, que seria passível de ser movida apenas pelo próprio réu.

Conforme o TJRJ, para o efeito de correção de registro público, no caso o rol de culpados, seria necessária ação de habeas data. A Sexta Turma do STJ, porém, concedeu habeas corpus para afastar essa exigência e atender o pedido da condenada (HC 45081).

Fora o nome, os dados de qualificação da ré eram diferentes. Conforme a decisão do STJ, apesar de haver quase dez homônimas nos órgãos de identificação civil e fiscal, não foram realizadas diligências para verificar a verdadeira acusada. A homônima condenada só teria tomado conhecimento da acusação após o julgamento da apelação, quando foi votar, tendo o processo corrido todo à revelia.

Lei de acesso 

A nova lei de acesso à informação ainda não foi objeto de decisões do STJ. Porém, a princípio, não parece influenciar o regime do habeas data. Isso porque a lei ressalva de forma expressa a proteção das informações pessoais de seus instrumentos de transparência, enquanto a ação constitucional se destina exatamente a obtenção de informações pessoais pelo próprio interessado. Resta aguardar, porém, como a Justiça se manifestará diante de eventuais ações ligando ambos os institutos.

Processos HD 04HD 147HD 160, HD 127HD 56HD 98REsp 1128739REsp 929381REsp 1096552HD 149REsp 904447HC 45081

(Link para a notícia no portal Âmbito Jurídico)

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