Por Rizzatto Nunes
(texto publicado originalmente no portal Migalhas - link)
Como estudante de Direito,
vivi muito tempo a ilusão de que o Estado pudesse, de fato, intervindo na
sociedade, criar bem-estar social. Um Estado democrático, naturalmente, e no qual os agentes públicos representassem os interesses
dos governados e também o que existisse do melhor no pensamento jurídico
garantidor da dignidade da pessoa humana. Haveria de se implantar políticas e
regras que beneficiassem a todos.
Infelizmente, com o passar do tempo, minha ilusão foi se
esvaindo. Estou cada vez mais convencido de que, muitas vezes, é o Estado
(ainda que democrático) que se torna um entrave ao desenvolvimento das pessoas
e da sociedade.
A liberdade, por exemplo, esse direito natural e civil, que
toda pessoa deveria poder gozar, tem sido limitada, violada, vilipendiada; o
Estado democrático tornou-se centralizador, onipotente, opressor; ao invés de
garantir a liberdade individual, ampliando e garantindo espaços para seu
exercício ele, ao contrário, passou a estabelecer obstáculos, muitos deles
ilegítimos quando não ilegais (ou inconstitucionais).
Em vários fóruns e textos tem-se discutido esse papel que o
Estado contemporâneo assumiu e esse exagero precisaria ser limitado. No mundo
todo, os Estados têm agentes que causam danos à população, de maneira mais ou
menos evidente. As diversas polícias, em muitos lugares, são uma catástrofe de
ineficiência e abusos, o que se observa até em países do primeiro mundo como nos
Estados Unidos de América, por exemplo. Esse braço repressor, muitas vezes mal
dirigido e mal treinado, que se faz mostrar em fotos e vídeos, está também em
vários outros setores da administração pública, de forma mais oculta dentro das
mentes de seus agentes.
A liberdade individual tem sido uma vítima constante dessa
mentalidade centralizadora e das ações que a ela correspondem. Para nossa
reflexão, apresentarei duas hipóteses: uma, digamos assim, no plano micro e
outra no plano macro.
Faço referência a uma citação de meu amigo Outrem Ego que já
aqui indiquei: "Uma
das claras diferenças entre uma democracia e uma ditadura é a de que nesta toda
pessoa da sociedade civil é suspeita (de algo...); naquela, todo cidadão é
inocente até prova (contundente) em contrário. Numa democracia, ninguém é
suspeito até agir como tal".
N'outro dia, ouvi o jornalista Ricardo Boechat contar que uma
vez ele estava preso num congestionamento enorme e viu muitos motoristas serem
assaltados exatamente porque estavam parados sem nada poderem fazer. Mais à
frente, descobriu que o congestionamento era causado por uma blitz policial que
fazia investigação da lei seca ou algo semelhante. Ele disse que não aguentou e
foi falar para os policiais que por causa deles as pessoas estavam sendo
assaltadas e acabou sendo admoestado por eles. Ou seja, a polícia que deveria
dar segurança à população estava não só não exercendo sua função, como
facilitando a vida dos meliantes.
Aliás, como já perguntei aqui nesta coluna: se uma pessoa
anda pela rua livremente, apenas exercendo seu direto de locomoção assegurado
constitucionalmente e não está cometendo nenhum delito e nem apresenta uma
atitude suspeita, qual o fundamento para ela ser abordada por um policial? De
onde ele extrai esse direito?
Não parece que as coisas estão fora do lugar? Pessoas de bem
sendo abordadas a torto e a direito e, ao mesmo tempo, a violência e a
insegurança correndo solta. E em todos os cantos do país.
Agora, proponho que pensemos uma questão mais macro. O da
implementação, no Brasil dos últimos anos, de uma política econômica que se
supunha de inclusão social das populações mais carentes. Lembro o pensamento da
filósofa (ou cientista política, como ela preferia) Hannah Arendt a respeito da
aquisição de direitos nas sociedades democráticas, capitalistas e de massa. Ela
dizia que o primeiro direito a ser instituído é o "direito a ter
direitos". Ela via que em muitas sociedades, milhares de pessoas não
tinham um mínimo de direitos garantidos.
Pergunto: quais seriam esses direitos básicos a serem
garantidos?
Como é muito grande o poder simbólico e real das sociedades
de consumo atuais, houve uma espécie de sedução para o consumo: a política
implementada permitiu que as pessoas que não tinham direitos básicos passassem
a ser consumidoras. O Estado, ao invés de oferecer e garantir direitos sociais
fundamentais tais como educação, moradia, saneamento básico, atendimento
hospitalar etc., ampliou o acesso a bens de consumo. Muitas pessoas que não têm
onde morar ou habitam favelas e cortiços e/ou não têm empregos regulares,
possuem televisores de 40 polegadas, aparelhos celulares e iphones, micro-ondas
ou geladeiras modernas, computadores e até automóveis adquiridos com
financiamentos de muitos anos.
Se Hannah Arendt fosse viva talvez constatasse que, nesses
casos, deu-se um salto: às pessoas que não tinham direitos, ofereceram-se
produtos de consumo. Elas continuam sem as garantias básicas, mas podem
assistir à novela das oito numa tevê de plasma.
Pergunto novamente: não parece a você leitor que algo está
fora de lugar?
Claro que, quando se fala em liberdade, há que haver uma
garantia mínima para seu exercício. E daí, a presença do Estado é fundamental.
De nada adianta "ser livre para dormir debaixo da ponte", como se
diz. O exercício de liberdade começa na garantia mínima do direito a ter
direitos. É preciso que sejam oferecidas condições para que todas as pessoas
possam usufruir dos benefícios sociais e também se realizar como indivíduos,
fazendo escolhas dentro de um quadro regular.
Não parece fácil e não é. Mas, pelo que se vê, nos tempos
atuais, há um distanciamento muito grande entre Estado e sociedade; entre
direitos estabelecidos constitucionalmente e a implementação de políticas que
permitam sua eficácia. Não basta haver produção e consumo. É preciso também
respeito aos direitos democraticamente estabelecidos e a criação de um espaço
para que as pessoas, após beneficiarem-se de direitos sociais mínimos, decidam
como e quando desejam ser consumidores.
*Rizzatto Nunes é desembargador aposentado do TJ/SP, escritor
e professor de Direito do Consumidor.