terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Uma década do Código Civil Brasileiro

O Portal Migalhas traz três importantes reportagens relembrando o fato de que há 10 anos o Código Civil Brasileiro era sancionado pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.

Acesse as reportagens: Código Civil de 2002 comemora uma década; Dez anos de Código Civil. Livres Reflexões; Série de Artigo do Professor Sílvio Venosa sobre o Código Civil.

Em uma delas, o artigo do jurista Sílvio de Salvo Venosa que, dada a importância da abordagem, está transcrito abaixo. Boa leitura!


Dez anos de Código Civil. Livres reflexões.

                                                                                                                     Sílvio de Salvo Venosa¹
 

Quando completa dez anos desde a sua promulgação, a aplicação do Código Civil de 2002 nos leva necessariamente a meditar sobre vários de seus aspectos. Esse período coincide com a ascensão econômica de nosso país no contexto mundial e com a ebulição de uma crise desnecessária e inédita no Poder Judiciário em torno, principalmente, de gestão de poderes.


É importante acentuar que essa azáfama envolvendo assuntos administrativos fundamentais do Judiciário desenlaça um desânimo por parte dos magistrados na sua arte de julgar e em rebaixamento de sua moral. Isso nos leva a considerar que a figura do juiz, no Código Civil deste século, colocou o magistrado como peça fundamental na utilização do estatuto. Aproxima em muito a atividade do juiz brasileiro dos julgadores do sistema anglosaxão, com as denominadas cláusulas abertas, presentes em inúmeros artigos, convoca o julgador para aplicar a melhor solução que o caso concreto requer, dando-lhe um espaço amplo de escolha. Recorde-se o emblemático art. 421, que menciona que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Essa norma, aberta ou genérica, dentre as inúmeras desse gênero presentes no Código, deve ser preenchida pelo julgador no caso concreto. A função social avalia-se na concretude do direito. Esse quadro deve merecer deslinde que não coloque em risco a segurança jurídica, um dos pontos delicados das cláusulas abertas. Esse é o grande desafio do julgador. Assim, não se pode apontar aprioristicamente se um contrato atende ou não o interesse social. Quando o julgador concluir que um contrato, no todo ou em parte, desvia-se de sua função social, deverá extirpar sua eficácia ou, se for o caso, adaptá-lo às necessidades sociais, tal como o fará com as cláusulas abusivas. Nisso o direito pátrio, como acentuado, se aproxima muito do direito inglês e norteamericano.

Essa atividade jurisdicional, muito acentuada no presente Código, exige do magistrado, além de suas qualidades elementares, perspicácia social e elevada cultura, além de tranquilidade comportamental, nem sempre presentes nas atuais gerações. A tormentosa crise do Judiciário é mais um fator de inquietação para o jurisdicionado. A mais fundamental de todas as qualidades desse aplicador do Direito, a se manifestar palpitantemente nas cláusulas abertas, é a vocação. Magistrado que busca a carreira, apenas para galgar degraus de funcionário público, será sempre um mau julgador. Infelizmente as nossas faculdades de Direito, com níveis precários, com as exceções conhecidas, não dão o necessário realce ao futuro profissional dos acadêmicos e a esse aspecto vocacional, não só para a magistratura, mas para o vasto campo profissional que se abre ao bacharel. O magistrado, ademais, deve ser sempre um homem do seu tempo, antenado na sociedade que o cerca, uma pessoa do mundo, mundano na acepção mais técnica do termo. Muito foi feito nesse decênio em torno da correta aplicação das cláusulas abertas, mas o seu caminho, como tudo em Direito, será sempre um desafio.

Lembrando da forma como foi conduzida a promulgação do Código no início deste século, sem uma participação mais efetiva dos civilistas, várias lacunas foram observadas no estatuto e algumas incongruências que foram colocadas como um peso enorme para os julgadores. O projeto originário dessa lei remonta ao início dos anos 70 e muito necessitava ser adaptado à Constituição atual e aos novos anseios e conquistas sociais. A promulgação de um Código no século XXI se mostra surpreendente para o mundo ocidental, numa época em que se torna cada vez mais difícil colocar todo um ramo do direito de modo ordenado em uma única lei. A tendência é que os códigos se reduzam a princípios gerais, nos quais a parte geral do Código se mostra efetiva, como a base do direito brasileiro, e princípios obrigacionais. A tendência dos chamados microssistemas ou estatutos se faz cada vez mais acentuada, de forma a gravitar em torno de códigos, estes cada vez mais genéricos e sintéticos. São muitos os exemplos, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto das Cidades, dentre tantos. O Projeto do Estatuto das Famílias pretende extirpar todo o livro de família do Código Civil, a corroborar o que afirmamos. A tendência é que tenhamos um microssistema registrário, que abrangerá o Direito Imobiliário, e em outros campos do Direito Civil, como o do livro das sucessões. Esse caminho não é só do Direito Civil, mas também de outros campos, como o Direito Penal, cujo código se restringirá cada vez mais à parte geral.

Como se percebe, a problemática da codificação neste século nada mais tem a ver com o que ocorreu quando da elaboração dos primeiros códigos da história, em torno dos séculos XVIII e XIX. A era tecnológica nos trouxe outros desafios. Dentre estes, avulta a atividade hermenêutica da doutrina e a exegese dos tribunais, sob novas vestes. A lei e a doutrina manterão sua importância no direito de origem romano germânica, porém cada vez mais avultará a importância dos precedentes, da jurisprudência numa aproximação com os países de língua inglesa, onde ocorre justamente o oposto, em fenômeno que cada vez mais aproxima os dois sistemas, ambos procurando atingir o melhor ideal de justiça, por caminhos diferentes no curso de sua história.

Nesses dez anos do Código, período que ora se abre, que estas singelas reflexões sirvam de homenagem a uma lei que, embora com imperfeições como toda obra humana, engrandece sobremaneira a cultura brasileira, como também o fizera o Código de 1916.



¹ Sílvio de Salvo Venosa foi juiz no Estado de São Paulo por 25 anos. Aposentou-se como membro do extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil, passando a integrar o corpo de profissionais de grandes escritórios jurídicos brasileiros


sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Retrospectiva de Publicações do Blog em 2011




Caros leitores,
segue a retrospectiva dos temas abordados no ano de 2011 para quem deseja ler alguma matéria, artigo ou julgado que passou despercebido ou simplesmente reler algum deles .

Aproveito o ensejo e desejo a todos os amigos e leitores um ótimo Natal e que o ano de 2012 seja repleto de grandes realizações, com a certeza que iremos continuar transmitindo as principais notícias do Poder Judiciário nacional e continuar deixando aqui os temas, opiniões e julgamentos destaques nos Tribunais do país.

Um forte abraço a todos!

Giselle Borges Alves
(administradora do Blog “New Juris”)

Atenção: Basta clicar no título ou no link que segue após o título e você será direcionado para a postagem. Boa leitura!
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FEVEREIRO:

04.02.2011 – Salário: uma abordagem interessante. - Extrato de Julgado do TRT/3ª Região.

 

MARÇO:

 

17.03.2011 - Esquema prático de estudo: Litisconsórcio – conceito e classificação - Por Giselle Borges Alves.

 

17.03.2011 - Esquema prático de estudo: Intervenção de Terceiros, Assistência e Oposição - Por Giselle Borges Alves.

 

29-03-2011 - O Direito Processual Civil Brasileiro e a Possibilidade de Fracionamento do Mérito - análise de alguns reflexos práticos. - Por Giselle Borges Alves.



MAIO:

10.05.2011 - STJ: "Município não é obrigado a conceder licença-maternidade de seis meses" – STJ.

 

18.05.2011 - Segunda instância pode impedir subida do agravo aplicando a regra dos recursos repetitivos. – STJ.

 

31.05.2011 - Jurídico-pensamentosRui Barbosa e Aluísio Azevedo

 

31.05.2011Questão processual hipotética: Agravo de Instrumento e Apelação Cível.Por Giselle Borges.

 

 

JUNHO:

 

22.06.2011 - Direito e Cooperativismo: STJ decide que Cooperativa não pode acionar em nome próprio direito de cooperados – STJ

 

27.06.2011 - Questão: matérias de ordem pública em sede de recurso extraordinário – Por Giselle Borges Alves.

 

 

JULHO:

 

01.07.2011 - Divergência Jurisprudencial impossibilita o julgamento "in limine littis", autorizado pelo Artigo 285-A, do Código de Processo Civil – Autor: Elton Brito de Carvalho

 

07.07.2011 - Flash Mob: Licitude no Direito Coletivo do Trabalho? – Autor: Alexandre Pimenta Batista Pereira.

 

26.07.2011 - Judicialização do Direito a Saúde – Autor: Henrique Hiroshi de Melo Asanome

 

28.07.2011 - Prerrogativas processuais da Fazenda não se aplicam a paraestatais de direito privado – STF.

 

29.07.2011 - Ministério Público e a Constituição: em busca de um espaço público republicano – Autor: Rubens Casara

 

 

AGOSTO:

 

05.08.2011 - Avós não tem obrigação de arcar com necessidades alimentares da neta – TJGO

 

19.08.2011 - Novo CPC veste melhor as garantias da Constituição – Autor: Wadih Damous

 

19.08.2011 - Resenha - O MODELO PARTIDÁRIO BRASILEIRO E A IMPORTÂNCIA DO PODER LEGISLATIVO NA CONSTRUÇÃO DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO: a visão do doutrinador Manoel Gonçalves Ferreira Filho na obra “Sete vezes democracia”.  – Por Giselle Borges Alves.

 

 

SETEMBRO:

 

06.09.2011 - STF decide que Estatuto da Advocacia supera CPP sem prisão especial – OAB/Conselho Federal

 

09.09.2011 - Entrevista com Oscar Vilhena Vieira - Direito e desenvolvimento – Vídeo Portal Migalhas

 


13.09.2011 - Soberania nacional, tema da entrevista do programa "Saiba Mais" com o ex-Ministro do STF, Francisco Rezek. – Vídeo Programa Saiba Mais.

 

14.09.2011 -  Direito à saúde: Presidente do STF mantém decisão que garante medicamentos para portadores de doença raraSTF

 

14.09.2011 - Residir fora do distrito da culpa não justifica manutenção de prisão preventiva – STF

 

15.09.2011 - Dias Toffoli reafirma jurisprudência de que a vaga de suplente pertence à coligação – Portal Migalhas

 

16.09.2011 - Temas com repercussão geral reconhecida - STF - DJe 05 a 09/09/2011. – Fonte: STF. / Organização de temas: Giselle Borges Alves.

 

19.09.2011 - Ação de investigação de paternidade e maternidade socioafetiva – STJ.

 

 

OUTUBRO:

 

03.10.2011 - Fixação de honorários transitada em julgado não pode ser revista em execução – Portal Migalhas.

 






17.10.2011 - O mundo em vermelho e azul de Zizek e Jobs – Autora: Maria Cristina Fernandes (Valor Econômico).

 

21.10.2011 - TST muda a cobrança de Imposto de Renda (IR) em ações – ABDIR / TRT-12ª Região.

 

25.10.2011 - STJ reconhece pela primeira vez casamento homoafetivo – Reportagem de Felipe Seligman e Johanna Nublat (Folha.com)

 

27.10.2011 - Casamento sem escala – Autora: Maria Berenice Dias.

 

 

NOVEMBRO:

 

04.11.2011 - STJ: Incabíveis embargos de divergência que apontam conflito de competência como paradigma. (link: http://newjuris.blogspot.com/2011/11/stj-incabiveis-embargos-de-divergencia.html) – STJ

 

08.11.2011 - Congresso discute PEC que reduz tempo dos processos (http://newjuris.blogspot.com/2011/11/congresso-discute-pec-que-reduz-tempo.html ) - Valor Econômico

09.11.2011 - O culto da criatividade individual e da meritocracia. Riscos para a democracia. (link: http://newjuris.blogspot.com/2011/11/o-culto-da-criatividade-individual-e-da.html) – Entrevista publicada no site Instituto Humanitas Unisinus – IHU, com Pierre Rosanvallon.

 

17.11.2011 - Regra ou princípio: Ministro equivoca-se ao definir presunção da inocência – Autor: Lenio Luiz Streck, no CONJUR.

 

21.11.2011 - A democracia e a economia – Autor: Renato Janine Ribeiro, no Valor Econômico.

 

22.11.2011 - Discussões sobre reforma política na XXI Conferência Nacional dos Advogados do Brasil – OAB/Conselho Federal.

 

24.11.2011 - Cooperação internacional: Corrupção coloca em risco saúde das empresas – Autor: Antenor Madruga.

 

 

DEZEMBRO:

 

12.12.2011 - Repercussão geral analisa competência específica da Justiça do Trabalho – STF

 

15.12.2011 - Substituição processual com um único substituído - Sindicatos – ABDIR.

 

16.12.2011 - Prêmio Innovare contempla projetos bem-sucedidos do mundo jurídico – Portal Migalhas.

 

22.12.2011 - OS DESAFIOS PARA A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL EFICAZ – Por Giselle Borges Alves.

 

   

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

OS DESAFIOS PARA A PRESTAÇÃO JURISDICIONAL EFICAZ

GISELLE BORGES ALVES

“Ousar sem o açodamento de quem quer afrontar, inovar sem desprezar os grandes pilares do sistema.” 
                         (Cândido Rangel Dinamarco)




Artigo publicado originalmente no site "Os Constitucionalistas" em 21.12.2011 (link)



 
Para analisar o futuro da prestação jurisdicional no Brasil a primeira pergunta a ser feita, tanto pelos legisladores quanto pelos operadores do direito, não pode ser outra: “Qual o principal objetivo do jurisdicionado ao requerer a tutela do Estado?” Ressalte-se que a discussão não está adstrita ao terreno eminentemente processual; a resposta não se encontra no “depende” típico dos jurisconsultos. Busca algo que não é tão simples quanto parece, pois está circunscrito ao terreno da pacificação social. Pacificar envolve questões complexas (sociais, morais e até psicológicas), por isso muitos estudiosos jurídicos afirmam a dificuldade da tutela jurisdicional abranger a pacificação, restringindo-a apenas à satisfação de pretensões justas.[1]

A busca da efetividade das decisões judiciais tem sido objeto de incansáveis reformas legislativas que passaram a operar com mais força depois da Emenda Constitucional n° 45/2004. O processo no decorrer dos anos deixou de ser visto como um fim em si mesmo[2] e adequou-se a realidade para qual deveria servir (ou ao menos tem sido essa a razão dos estudos e reformas empreendidas), objetivando a satisfação dos interesses do jurisdicionado.

O problema da multiplicação de processos nos últimos anos não é apenas um imbróglio nacional, sendo visto, por muitos juristas, como resultado da própria evolução da sociedade. A judicialização das mais diversas relações humanas, que atualmente não estão pautadas apenas nas questões privadas, mas compreendem cada vez mais as demandas coletivas, bem como as relacionadas a questões éticas, políticas e científicas, em que o Judiciário é acionado para dar a última palavra, servem para contextualizar as dificuldades deste Poder, principalmente na gestão do sistema processual com a preservação das garantias constitucionais.

O escritor francês Antoine Garapon é um dos que ressalta essa crescente demanda de respostas do Judiciário, que se caracteriza não só pelas demandas de massa, mas também por “demandas maciças”, resultantes da própria democracia em que a sociedade se entrega ao controle do juiz:

Chama-se a justiça no intuito de apaziguar o molestar do indivíduo sofredor moderno. Para responder de forma inteligente a esse chamado, ela deve desempenhar uma nova função, forjada ao longo deste século, a qual poderíamos qualificar de magistratura do sujeito. As sociedades modernas geram, na realidade, uma demanda de justiça quantitativa e qualitativamente inédita. Trata-se de uma demanda de massa e de uma demanda maciça. A justiça não apenas deve multiplicar suas intervenções – o que já é em si um desafio – , mas é também, ela própria, objeto de novas solicitações. Quer lhe sejam submetidas questões morais difíceis, como as relativas à bioética ou à eutanásia, quer lhe seja solicitado remediar prejuízos causados pelo enfraquecimento dos vínculos sociais na população marginalizada, a justiça se vê intimada a tomar decisões em uma democracia preocupada e desencantada (GARAPON, 2001, p. 139).

Portanto, a atual prestação jurisdicional é de duas ordens: quantitativa e qualitativa, mas apenas a primeira tem ganhando maior espaço para efetivação, o que é um grave erro. O jurisdicionado não busca apenas um menor tempo de tramitação, mas também a resolução justa, eficaz e, quando possível, a tão sonhada pacificação. A justiça antes de ser célere deve ser satisfatória. Afinal, quando o jurisdicionado chega ao ponto de requerer a tutela do Estado diante de um conflito, é porque todas as tentativas de resolução extrajudicial foram ineficazes. O que ele está a pedir é o resguardo de direitos, que não são expressos em números ou na celeridade a qualquer custo.

Sendo assim é imperioso responder a outro questionamento: “A importância da celeridade processual se sobrepõe as demais garantias constitucionais estabelecidas para o processo?

Desta pergunta depreende-se outra de grande importância: “Qual o preço que queremos pagar (ou que nos será imposto) para a busca da celeridade na prestação jurisdicional?” A Constituição Federal de 1988 enumera no artigo 5º garantias fundamentais que fornecem ao litigante o mínimo de segurança jurídica ao levar o seu conflito para resolução perante o Estado. Apenas a título exemplificativo podem ser citadas a ampla defesa e o contraditório, a inafastabilidade da jurisdição, a presunção de inocência, a dignidade da pessoa humana e a máxima do devido processo legal. Posteriormente, através da Emenda Constitucional nº 45/2004, também foram incluídas entre elas a garantia da razoável duração do processo e a celeridade de sua tramitação (art. 5°, LXXVIII).

A preocupação com o tempo de duração do processo e com a celeridade processual é o foco principal das recentes mudanças. Claras são as vozes que ecoam contra medidas desarrazoadas, mas a ressonância dos favoráveis às boas inovações persiste, o que beneficia os debates sobre a possibilidade de repensar o que já está sendo aplicado e o que advirá das novas modificações legislativas. Todas as reformas devem ser pensadas com minúcia, para que as restrições que estão sendo estabelecidas em longo prazo não resultem desastrosas. O jurisdicionado não se contentará em ver seu processo julgado por “efeito dominó”. Apenas o julgamento célere não é suficiente para a pacificação dos interesses em conflito.  Desta forma, estruturas que rompem o acesso do jurisdicionado a uma decisão qualitativa devem ser afastadas das atuais reformas.

A utilização em demasia de mecanismos que relativizam o direito de obter uma resposta específica para determinado caso concreto não pode ser vista com bons olhos, pois o ofício de julgar não é pautado em um raciocínio matemático ou eminentemente silogístico. O argumento é formado a partir da interpretação de enunciados normativos e dos dados fáticos apresentados. A valoração e a atenção a realidade jamais podem ser dispensadas ou simplesmente relegadas ao segundo plano. A falta de análise detida às peculiaridades do caso concreto, colocando todos os casos “idênticos” em uma mesma “caixa” aguardando a decisão de um recurso em processo paradigma, para então vincular todos os demais, gera o mesmo sentimento de insatisfação dos que sofrem com a demora na prestação jurisdicional.

Entretanto, não se pode negar a existência de uma enorme contingência de demandas que tratam realmente de casos idênticos e reclamam uma solução que não pode fugir a regra. Mas adotar a teoria de precedentes e a vinculatividade das decisões dos Tribunais Superiores exige cautela. O professor Dierle Nunes, ao tratar do assunto, adverte que o Poder Judiciário deve ter a preocupação de julgar as causas que são postas à sua análise e que não podem ser vistas como meras teses para estabelecer “standards interpretativos”. Ressalta, ainda, que mesmo em países onde a utilização dos precedentes é tradicional, estes não são aplicados de maneira mecânica. É necessária a reconstrução histórica da aplicação decisória, sendo necessário discutir sua adaptabilidade. Neste sentido destaca as palavras de Mortimer Sellers sobre a utilização do precedente no sistema americano:

Stare decisis é o caminho preferível, porque ele promove a imparcialidade e uma previsível e consistente construção de princípios jurídicos, fomenta a confiança nas decisões judiciais e contribui para a atual e percebida integridade do processo judicial. Aderir-se ao precedente é usualmente a política sábia, porque na maioria das questões é mais importante que a regra jurídica aplicável seja apenas estabelecida do que estabelecida corretamente. Entretanto, quando não se é viável controlar o rumo das decisões, ou a racionalização/fundamentação é mal feita, esta Corte nunca se sentiu obrigada a seguir o precedente. Stare decisis não é um comando inexorável; é, sobretudo, um princípio político, e não uma fórmula mecânica de aderência à última decisão.[3]

O projeto do novo Código de Processo Civil (PL 8.046/2010) é hoje a maior expressão desta busca da celeridade na prestação jurisdicional e uma vez aprovado precisará de juristas preparados para a nova realidade para o qual foi criado, a justiça de massa, sem esquecer da necessidade de análise do caso concreto para evitar injustiças. Neste prisma, nunca é demais advertir que a mitigação excessiva das garantias constitucionais poderá gerar efeito reverso ao esperado, causando descrédito do jurisdicionado diante de decisões arbitrárias.

A celeridade não pode ser buscada a qualquer custo, esbarrando nos cânones constitucionais. A segurança jurídica não pode ser concebida apenas como julgamentos idênticos evitando as oscilações jurisprudenciais. Se a diversidade é marca da sociedade contemporânea, como aceitar padronizar decisões sobre essas diversas relações jurídicas humanas e torná-las vinculativas sem parâmetros que devem ser seguidos para a aplicação destes institutos? Os legisladores e os magistrados devem estar conscientes de seu papel diante da elaboração e aplicação destas novas normas jurídicas que ganham corpo buscando a razoável duração do processo, caso contrário podem desvirtuar todo o sistema de garantias.

Propostas como a “PEC dos Recursos”, o advento de sobrestamentos de processos diante de um caso paradigma sem análise detida ao caso apresentado ou a ampliação da conotação das súmulas impeditivas de recursos, não podem ter sua aplicação discricionária vista como bons olhos. O Judiciário, com a desculpa de eliminar a burocracia dos recursos, pode acabar desvirtuando seu principal objetivo, estabelecer a justiça no caso concreto. A argumentação ainda é a chave para combater estes entraves. Afinal, justiça limitada e autômata, não é justiça!

Deste contexto, sobressai a pergunta central deste texto: “Quais os verdadeiros enfrentamentos para a consagração da celeridade processual com efetiva pacificação social dos conflitos?

Para responder a esta pergunta partiremos da visualização da postura de todos os sujeitos do processo: as partes (pessoas físicas e jurídicas como sujeitos de direitos), o Estado (como ente regulador e litigante), o magistrado (como Estado-juiz, principalmente com sua atuação na primeira instância), o Ministério Público (como parte e como fiscal da lei) e os advogados (públicos e privados).

De início é imperioso ressaltar que para uma maior celeridade na tramitação processual, hoje a comunidade jurídica deve voltar os olhos principalmente para a atuação dos magistrados na primeira instância, uma vez que a atividade desenvolvida por eles é determinante para desafogar os tribunais de sobreposição. Apesar da sobrecarga de trabalho que enfrentam, são eles que exercem função primordial nos primeiros passos do processo e serão responsáveis por fazer a diferença em números e em qualidade argumentativa, poucos, porém, atentam para este fator.

O Conselho Nacional de Justiça, através da divulgação de relatórios anuais, tem tornado pública a produtividade dos magistrados e principalmente as dificuldades que enfrentam. Em análise aos índices da Justiça Estadual em 2010, com relação à litigiosidade total é possível perceber a insuficiência de magistrados para a enorme contingência de demandas. Apenas no Rio de Janeiro cada juiz possui em média 14.015 processos pendentes de julgamento. Em São Paulo são 8.715 processos por magistrado e em Pernambuco para cada magistrado existem 6.288 processos.[4] Fica deste modo evidente que, apesar de possuírem servidores que os auxiliam no exercício da atividade, o trabalho é sobre-humano. Exige-se hoje dos magistrados, uma produção muito além do que qualquer trabalhador é capaz de realizar, o que fica mais complicado quando analisamos os números sobre o prisma da responsabilidade de cada um deles na condução do processo, uma vez que são responsáveis pelo destino das relações humanas.

Ao considerar a carga de trabalho apenas na magistratura estadual de primeira instância, composta por processos que estão nas fases de conhecimento e execução, mas excluídos os estão em trâmite perante os juizados especiais e turmas recursais, os três Estados em que os magistrados possuem maior carga de trabalho continuam sendo o Rio de Janeiro, com 18.183 processos por magistrado; São Paulo, com 9.300 processos pendentes por magistrado e Pernambuco, com 6.644 processos por magistrado.[5] O enfoque nestes números é apenas para ressaltar, mais uma vez, a insuficiência de profissionais na primeira instância do Judiciário e, principalmente, repensar se apenas a reestruturação das normas processuais e a mitigação de garantias constitucionais serão suficientes se administrativamente medidas efetivas não forem tomadas e os números de litígios continuarem a crescer.

Além disso, outro desafio destes magistrados, diante de toda a reestruturação do Judiciário para atender as demandas de massa, será consolidarem-se como seres pensantes no ambiente jurídico e não como meros reprodutores de decisões dos Tribunais Superiores. Conservar a autonomia na hora de decidir o caso concreto diante da jurisprudência vinculativa, sem medo de ousar para fazer valer suas convicções e argumentos diante dos dados fáticos apresentados se tornará cada vez mais difícil com as atuais reformas. O ideal é sempre que a justiça de massa não se sobreponha ao principal papel do Direito na sociedade, que ainda é fazer justiça. O papel do jurista envolve, também, jamais esquecer de que é articulador entre a sociedade e o Direito.

Dito isso, vislumbra-se agora repensar o papel das partes e dos advogados diante dos desafios da prestação jurisdicional neste século XXI. O uso indiscriminado de instrumentos processuais aumentando a burocracia na tramitação é atitude que merece repulsa e principalmente punição. O momento pede também prioridade para as soluções extrajudiciais de resolução de conflitos, como a mediação e a arbitragem, bem como as tentativas conciliatórias que possuem maior eficácia quando está em jogo a pacificação. Quando as próprias partes são levadas a realizar concessões recíprocas, a sensação de eliminação do litígio é maior, do que quando a solução é delegada ao desgastante contencioso judicial.

Neste mesmo prisma segue a atuação do Ministério Público, cujas funções ganham ainda maior relevo, uma vez que tanto quando assume a função de parte como a de custus legis, deverá preservar a observância da moralidade e boa-fé processual, bem como buscar soluções conciliatórias entre as partes envolvidas cuidando que não existam prejuízos exorbitantes para nenhum dos pólos da relação.

Como dito anteriormente, o aparelhamento do Judiciário é fundamental para a melhora na tramitação processual, sendo que partes e advogados também devem colaborar para a razoável duração do processo. Assim, partindo da análise de que o Estado é agente regulador e em inúmeras demandas também é parte, a atuação deste perfaz-se ainda com maior importância dentro dos desafios a serem superados para a prestação jurisdicional eficaz.

De acordo com os números divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, apenas na Justiça Estadual de primeiro e segundo grau o Poder Público é demandando em uma grande contingência de processos pendentes[6], sendo notório que este usa todos os meios que dispõe para retardar o cumprimento de decisões que lhes são impostas. Apenas para suscitar o debate, como está o processo executivo contra fazenda pública? Precatórios: quantos anos o jurisdicionado leva para receber seu crédito? Assim, a título exemplificativo, o mesmo Estado que tenta limitar a autonomia do particular para buscar a celeridade da prestação jurisdicional é aquele que sancionou a emenda constitucional dos precatórios (EC n° 62/2009), que retarda a satisfação real do jurisdicionado que após anos de litígio ainda deve se sujeitar ao arbítrio do Estado-vencido. Existe algo de sensato nisso?

Há os que dirão que as propostas partiram de setores diferentes. Para estes respondo: a Constituição que eles estão vinculados é a mesma, deve ser observada tanto pelas pessoas de direito público como pela iniciativa privada. Não existem duas Cartas supremas que garante razoável duração do processo e celeridade apenas para alguns. O Estado Democrático e soberano que tem por fim o interesse público não poderia deixar permear no ordenamento normas e diretrizes com sentidos tão contrapostos.

Algo está errado. Usar casos isolados de particulares para desprestigiar a prestação jurisdicional, acusando-os de usarem os recursos processuais disponíveis como meio de atrasar o julgamento definitivo da lide e, enquanto isso, o próprio Estado, que tenta forjar uma atuação célere, utiliza todo e qualquer meandro para atrasar a tramitação de seus processos e o cumprimento efetivo das decisões contra eles impostas. Se os advogados privados devem ater-se a utilizar as ferramentas processuais de maneira racional, assim também deveria fazer o Estado e recomendar aos seus defensores, utilizando menos as instâncias superiores para procrastinar o julgamento de ações contra os entes estatais.

A mudança passa pela consciência de cada um dos envolvidos. De nada adiantam medidas extremas para aumentar o quantitativo de julgamentos se esquecem que a proposta deve passar pela transformação das atitudes de todos os interessados. Não existe fórmula mágica. Uma avalanche de normas subtraindo ou minimizando prerrogativas e garantias na tentativa de eliminar entraves burocráticos, poderá se transformar em letra morta se os operadores do direito continuarem com o mesmo pensamento arcaico do início do século XX. Além disso, o mínimo que o Estado deve oferecer é um aparelhamento condizente com o ofício de julgar, tendo em vista que nenhum dos outros Poderes possui obrigação legal de agir conforme a sua finalidade principal. Apenas o Judiciário não pode se esquivar de cumprir sua missão precípua: julgar.[7]

Caberá a todos os operadores do direito a adequação às perspectivas de reforma efetiva, que implica a diminuição de demandas em tramitação, mas ao mesmo tempo, a satisfação do jurisdicionado. É desta satisfação que não pode olvidar o jurista. O Poder Judiciário também presta serviço à sociedade, não pode apenas implantar medidas de celeridade sem permitir a prestação de uma tutela que possibilite uma decisão justa e satisfatória.

Diante de todas as contingências que atingem essa nova sociedade, cada vez mais fragmentada, onde a igualdade ganha caráter isonômico, ou seja, é analisada diante das desigualdades existentes, na tentativa de dar “segurança jurídica” estamos concebendo uma justiça de massa. O Poder Judiciário não pode andar na contramão para corresponder a apenas uma expectativa. Se o problema é estrutural, como apontam as pesquisas, é necessário repensar a maneira de atuação, o que não significa adotar mecanismos de simplesmente conter o contencioso judicial, negar acesso a verdadeiras decisões. Ao julgar demandas em massa, os tribunais devem estar atentos que elas terão reflexo em cada caso, individualmente.

Retomando a frase que abre estas considerações, de autoria do Prof. Cândido Rangel Dinamarco, doutrinador que é plenamente favorável à releitura de princípios e a renúncia aos dogmas instaurados durante todo o positivismo jurídico, mas que também alerta para a necessidade de “ousar sem o açodamento de quem quer afrontar, inovar sem desprezar os grandes pilares do sistema[8], conclui-se que a revolução na aplicação e efetivação do direito contemporâneo é necessária, mas deve também priorizar, sobretudo, o respeito ao indivíduo.


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GISELLE BORGES ALVES é advogada em Unaí/MG, bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior Cenecista (INESC/CNEC) – Unaí/MG e pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Rede Luiz Flávio Gomes em parceria com o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e a Universidade Anhanguera Uniderp – Campo Grande/MS.


REFERÊNCIAS:

BOTELHO, Guilherme. Direito ao processo qualificado: o processo civil na perspectiva do estado constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números: justiça estadual. 2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-e-transparencia/pj-justica-em-numeros/relatorios>. Acesso em: 23 nov. 2011.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 8ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
__________________________. Nova Era do Direito Processo Civil. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999, 2ª. ed., 2001. Título original: Le guardien des promesses.
NUNES, Dierle. O Brasil entre o civil law  e o common law: a tendência de padronização decisória (uso de precedentes) – Iter mínimo para sua aplicação. Diritto brasiliano. Publicado em 07.07.2011. Disponível em: <http://www.diritto.it/docs/31927-o-brasil-entre-o-civil-law-e-o-common-law-a-tend-ncia-de-padroniza-o-decis-ria-uso-de-precedentes-iter-m-nimo-para-sua-aplica-o?page=1>. Acesso em 07.07.2011.


NOTAS
[1] Entre os estudiosos que sustentam a dificuldade de pacificação dos litígios, podemos citar Paulo Henrique dos Santos Lucon. Guilherme Botelho também traz o alerta de John Rawls e Galelo Lacerda sobre a prestação jurisdicional efetiva: “Jamais logrará concretizar uma justiça perfeita, como, aliás, já alertado por John Rawls. A prestação jurisdicional padece sempre de ‘[...] um passivo, material, e também moral – pelas energias gastas, esperanças desfeitas, paixões incontidas. Diminuir esse passivo, sem prejudicar o acerto da decisão, será tender para o ideal de justiça’[LACERDA, Galeno. Despacho saneador. 1990].” (BOTELHO, 2010, p.176).

[2] Neste sentido a clássica obra de Cândido Rangel Dinamarco, “A instrumentalidade do processo”, da qual seguiram estudos de toda a doutrina jurídica moderna.

[3] NUNES, Dierle (2011), sobre os precedentes no sistema americano, com base em relatório de Sellers sobre o precedente Payne v. Tennessee (501 U.S. 808, 827-8, 111 S.Ct. 2597, 260 de 1991). SELLERS, Mortimer N.S. The Doctrine of Precedent in the United States of America. American Journal of Comparative Law, Vol. 54, nº. 1, 2006.

[4] Os índices de litigiosidade total, sobre a carga de trabalho dos magistrados (K), divulgados pelo CNJ abrangem casos novos (Cn), pendentes (Cp), recursos internos e incidentes de execução novos (Rintinc), recursos internos e incidentes de execução pendentes (RintinP), divididos pelo total de magistrados (Mag) de cada Estado, segundo a fórmula: K = (Cn + Cp + RInt + RIntP) / Mag. (CNJ. Justiça em números: justiça estadual, 2010, p. 429-431).

[5] CNJ. Justiça em números: justiça estadual, 2010, p. 237-239.

[6] De acordo com o Relatório Justiça em Números – Justiça Estadual, divulgado pelo CNJ, o Poder Público é réu em 1.095.350 processos apenas na justiça estadual em primeiro grau. As causas em segundo grau de jurisdição somam 236.004 processos. É importante esclarecer que em ambos os dados apresentados, o Poder Judiciário de vários Estados não dispunha destes números e, portanto, a quantidade de demandas em nível estadual com certeza é ainda maior do que os números divulgados (CNJ, 2010, p. 459-464).

[7] Neste sentido Antoine Garapon, 2001, p.155-168.

[8] DINAMARCO, em “Relendo princípios e renunciando a dogmas”. In: Nova era do processo civil. 2009, p. 20-31.


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