Entrevista
realizada por Viviane Tavares, publicada originalmente no site Última Instância
(link), Zaffaroni aborda o
combate/descriminalização das drogas, a redução de maioridade penal e a
responsabilidade do Estado no que tange às políticas de encarceramento.
Vale a
leitura!
"Cada país tem o número de presos que
decide politicamente ter", diz ministro do Supremo argentino
O ministro da Suprema Corte Argentina e professor titular e diretor do
Departamento de Direito Penal e Criminologia na Universidade de Buenos Aires,
Raúl Eugenio Zaffaroni, fala em entrevista à Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio/Fiocruz sobre o direito penal na América Latina e como ele vem
sendo usado para fazer uma "limpeza social".
Segundo Zaffaroni, a demanda da redução da maioridade penal e o combate
às drogas seguem esta mesma linha de criminalização e exclusão do pobre.
Vivane Tavares/Fiocruz: Por que o sr.
defende a necessidade de uma identidade latina no direito penal?
Raúl Zafforoni: Nossos países estão vivendo
um crescimento da legislação repressiva, porém, deveríamos caminhar para
fortalecer a solidariedade pluriclassista em nosso continente. Não podemos
seguir os modelos europeus e, muito menos, o norte-americano, em que a política
criminal é marcada por uma agenda midiática que provoca emergências
passageiras, resultando em leis desconexas que, passada a euforia midiática,
continuam vigentes.
VT - No Brasil, estamos diante de um cenário
em que a guerra contra as drogas mata mais do que a droga em si. Como o sr.
analisa isso?
RZ - É um fenômeno mundial. Quantos anos
demoraria para que o México alcançasse a cifra de 60 mil mortos por overdose de
cocaína? No entanto, já alcançou, em cinco anos, como resultado da competição
para ingressar no mercado consumidor dos EUA.
VT - Atualmente, a grande questão do sistema penal brasileiro é a redução da maioridade penal. Qual é a sua opinião sobre isso? O que deve ser levado em conta para se limitar essa idade?
VT - Atualmente, a grande questão do sistema penal brasileiro é a redução da maioridade penal. Qual é a sua opinião sobre isso? O que deve ser levado em conta para se limitar essa idade?
RZ - A redução da maioridade penal é também uma
demanda mundial que se relaciona à política de criminalização da pobreza. A
intenção é pôr na prisão os filhos dos setores mais vulneráveis, enquanto os da
classe média continuam protegidos. Embora haja alguns adolescentes assassinos,
a grande maioria dos delitos que eles cometem são de pouquíssima relevância
criminal. O Brasil tem um Estatuto [Estatuto da Criança e Adolescente] que é
modelo para o mundo. Lamento muito que, por causa da campanha midiática, ele
possa ser destruído.
VT - Na Argentina existe um modelo de
responsabilidade penal para adolescentes de 16 anos. Como isso se dá?
RZ - Na Argentina, a responsabilização penal
começa aos 16 anos, de maneira atenuada, e somente é plena a partir dos 18
anos. Não obstante, somos vítimas da mesma campanha, embora os menores de 16
anos homicidas na cidade de Buenos Aires, nos últimos dois anos, sejam apenas
dois. A ditadura reduziu a idade de responsabilização para 14 anos e logo teve
que subir de novo para 16, ante ao resultado catastrófico dessa reforma brutal,
como tudo o que fizeram, claro. Ninguém pode exigir que um adolescente tenha a
maturidade de um adulto. Sua inteligência está desenvolvida, mas seu aspecto
emocional, não. O que você faria se um adolescente jogasse um giz em outra
pessoa na escola? Em vez disso, o que você faria se eu jogasse um giz no
diretor da faculdade de direito em uma reunião do conselho diretivo? Não se
pode alterar a natureza das coisas, uma adolescente é uma coisa e um marmanjo
de 40 anos, outra.
VT - Muitos especialistas consideram esse
modelo atual de encarceramento dos jovens falido. Por que a sociedade continua
clamando por isso? Qual seria a alternativa?
RZ - Não creio que a sociedade exija coisa
alguma. São os meios de comunicação que exigem, e a sociedade, da qual fazem
parte os adolescentes, é vítima dos monopólios midiáticos que criam o pânico
social. Melhorem a qualidade de vida das pessoas, eduquem, ofereçam
possibilidades de estudo e trabalho, criem políticas públicas viáveis. Essa é a
melhor forma de lidar com os jovens. O Brasil é um grande país, e tem um povo
extraordinário, o que vocês fazem é muito importante para toda a região, não se
esqueçam disso. E não caiam nas garras dos grupos econômicos que manipulam a
opinião através da mídia. O povo brasileiro é por natureza solidário e de uma
elevada espiritualidade, quase mística. Não podem se deixar levar por campanhas
que só objetivam destruir a solidariedade e a própria consciência nacional.
VT - Como o sr. avalia o sistema de encarceramento?
VT - Como o sr. avalia o sistema de encarceramento?
RZ - As prisões são sempre reprodutoras. São
máquinas de fixação das condutas desviantes. Por isso devemos usá-las o menos
possível. E, como muitas prisões latinoamericanas, além disso, estão
superlotadas e com altíssimo índice de mortalidade, violência etc., são ainda
mais reprodutoras. O preso, subjetivamente, se desvalora. É um milagre que quem
egresse do sistema não reincida. Enquanto não podemos eliminar a prisão, é
necessário usá-la com muita moderação. Cada país tem o número de presos que
decide politicamente ter. Isso explica porque os EUA tenham o índice mais alto
do mundo e o Canadá quase o mais baixo de todo o mundo. Não porque os
canadenses soltem os homicidas e estupradores, mas porque o nível de
criminalidade média é escolhido de forma política. Não há regra quando se trata
de casos de delinquência mediana, a decisão a respeito é política, portanto,
pode ser arbitrária ou não. Ademais, a maioria de nossos presos
latino-americanos não estão condenados, são processados no curso da prisão
preventiva. Como podemos discutir o tratamento, quando não sabemos se estamos
diante de um culpado?
VT - Como podemos explicar este foco no
tráfico de drogas como o principal mal da sociedade atual? Ele precisa ser
combatido?
RZ - A proibição de tóxicos chegou a um ponto que
não sei se tem retorno sem criar um gravíssimo problema ao sistema financeiro
mundial. A única solução é a legalização, porém não acho que seja possível. A
queda acentuada do preço do serviço de distribuição provocaria uma perda de
meio bilhão de dólares, no mínimo. Esta mais-valia totalmente artificial entra
na espiral financeira mundial, através da lavagem de dinheiro, que o hemisfério
norte monopoliza. Sem essa injeção anual, se produziria uma recessão mundial.
Como se resolve isso? Sinceramente, não sei. Só sei que isso é resultado de uma
política realmente criminal, no pior sentido da palavra.
VT - No Brasil estamos vivendo um fenômeno com o crack. Em estados como Rio de Janeiro e São Paulo, os usuários estão sendo encaminhados para uma internação compulsória, uma espécie de encarceramento para o tratamento. Como o sr. avalia isso?
VT - No Brasil estamos vivendo um fenômeno com o crack. Em estados como Rio de Janeiro e São Paulo, os usuários estão sendo encaminhados para uma internação compulsória, uma espécie de encarceramento para o tratamento. Como o sr. avalia isso?
RZ - Não sei o que é esse crack, suponho que seja
um tóxico da miséria, como o nosso conhecido "paco". O
"paco" é uma mistura de venenos, vidro moído e um resíduo da cocaína.
É um veneno difundido entre as crianças e adolescentes de bairros pobres,
deteriora e mata em pouco tempo, provoca lesões cerebrais. Como se combate?
Quem deve ser preso? Os meninos que são vítimas? Isso não pode ser vendido sem
a conivência policial, como todos os outros tóxicos proibidos. Porém, nesse
caso, é muito mais criminal a conivência. Seria preferível distribuir maconha.
Isso é o resultado letal da proibição. Nós chegamos a isso, a matar meninos
pobres.
VT - Existe alguma forma de combater a
violência sem produção de mais violência por parte do Estado?
RZ - Na própria pergunta está a resposta. Se o
Estado produz violência não faz mais que reproduzi-la. Cada conflito requer uma
solução, temos de ver qual é a solução. Não existe o crime em abstrato,
existem, sim, conflitos concretos, que podem ser solucionados pela via da
reparação, da conciliação, da terapêutica, etc., esgotemos antes de tudo essas
soluções e apenas quando não funcionarem pensemos na punição e usemos, ainda
assim, o mínimo possível a prisão. Não podemos pensar em soluções com a polícia
destruída, mal paga, não profissionalizada, infestada por cúpulas corruptas,
etc. Ou não estou descrevendo uma realidade latinoamericana ?